REPORTAGENS AMBIENTAIS

ESTRAGO DA NAÇÃO

sábado, fevereiro 28, 2004



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O PADRE INVENTOR - HIMALAYA - Grande Reportagem, 20 de Dezembro de 2003

Manuel António Gomes deveria ter sido apenas mais um padre. Daqueles que, no final do século XIX, depois de caírem nos seminários de Braga mais por imposição familiar do que vocação, fugindo a uma existência miserável nos campos, acabavam os dias rezando homilias e tratando de salvar almas. Se é certo que acabou mesmo os seus dias como capelão na Congregação da Caridade de Viana do Castelo, no Asilo de Velhos e Entrevados, aos 65 anos de idade, em21 de Dezembro de 1933, a existência deste padre foi tudo menos normal e rotineira. Foi tão-só um dos maiores humanistas portugueses da primeira metade do século XX.

Embora originário de uma família minhota humilde, desde cedo o jovem seminarista mostrou um espírito que chocou nos cânones mais tradicionalista da Igreja, quando, por exemplo, sustentou, entre outras doutrinas, “a imortalidade da alma, dos animais, a indestrutibilidade do princípio vital dos vegetais e a transmissão da alma pelos processos ordinários da geração, a acção da alma sobre a matéria e sobre as forças cósmicas e vice-versa”. Por isso, chumbou no segundo ano; não apenas por essas atitudes, é certo, mas também por refilar contra o repetido prato de macarrão com feijão, a que se chamava o “365”. Essas ousadias granjearam-lhe, contudo, veneração e admiração dos seus colegas. Um deles seria mesmo responsável por lhe colocar a alcunha de “Himalaya, devido à sua imponente estatura física. Adoptaria esse nome, mesmo em documentos oficiais.

Mas seria apenas após o seminário, em 1890, quando chega ao Colégio da Formiga para se tornar padre, que começa a aplicar o seu espírito inventivo. A dica surge pela leitura de um artigo no jornal “A Província”, dirigido por Oliveira Martins, que aborda as experiências de energia solar do francês Mouchot. Mesmo sem uma profunda formação académica, o jovem padre Himalaya começa as suas investigações para criar uma máquina solar, mas mesmo isso não lhe basta. Em paralelo, mostra um frenesim de ideias, de observações, de reflexões e de inventos, que seriam uma das suas imagens de vida. Até ao final do século XIX, distribuiria também o seu tempo na escrita de artigos para jornais, no aprofundamento do “kneippismo” – tratamento através de infusões de plantas medicinais, partindo assim à cata de flora na serra do Gerês, Estrela, Condeixa, Sintra, Arrábida e Monchique – e terá também estado em missões missionárias em África, onde terá contraído malária.

Em Portugal, entretanto, Himalaya conseguiria, no último ano do século XIX, arranjar uma mecenas para o seu principal projecto, partindo então para França. Durante vários meses faz estudos, recebe aulas no Colège de France e na Universidade de Paris e pouco depois começa a construir a sua máquina, o “pirelióforo”, que significa “trago o fogo do sol”. Os ecos das suas investigações chegam então a Portugal. Em Julho de 1900, o jornal “A Nação” relata que “este ilustre e já sábio sacerdote, encontra-se no ‘plateau’ dos Pirinéus Orientais, procedendo à instalação duma máquina (...) para produzir, com o calor solar, a conversão do carvão fóssil em diamante”. Na verdade, o padre Himalaya não aspirava a tanto; o seu objectivo era sobretudo produzir fertilizantes azotados através do ar. Os primeiros resultados são animadores, mas o dinheiro escasseou. Finalmente, consegue um mecenas de maior peso: a Condessa da Penha Longa. Daí até ao seu “pirelióforo” atingir o estrelato foi um pequeno passo: na Exposição Universal de Saint Louis em 1904, o invento do padre Himalaya recebe a medalha de ouro, o Grand Prix, apesar incredulidade da representação portuguesa que, receando um fiasco, nem o incluiu oficialmente no certame.

O “pirelióforo” – com centenas de pequenos espelhos, vestindo uma estrutura metálica de 10 metros de altura e 80 metros quadrados de área, que calcinava madeira e derretia pedra num pequeno forno – impressionava os visitantes. Contudo, apesar da imprensa internacional fazer eco deste fantástico invento e existirem propostas para a compra da patente, o negócio nunca se concretizaria. A própria estrutura, que deveria ser desmontada, acabaria por desaparecer em pedaços.
Apesar disso, o padre Himalaya não esmoreceu, nem descansou sob os louros. Regressado a Portugal aposta num invento que já iniciara: um substituto da dinamite, mais seguro e de igual efeito, que pretendia vir a usar em pedreiras, na arborização de serras e mesmo para fazer chuva artificial. Durante vários meses testa o explosivo que baptizaria de “himalayte”. As propostas para venda da patente chegam de vários lados, inclusive dos Estados Unidos, mas não a cede. O seu patriotismo falava mais alto do que o dinheiro, embora não o desdenhasse. “Recusei essa proposta que me faria um milionário e me daria uma posição distinta, porque para isso teria de nacionalizar-se cidadão americano e por nada daria esse passo, que sendo honroso para qualquer outro homem, para mim significaria uma traição à pátria”, escreveria em 1908 no Boletim Marítimo da Liga Naval Portuguesa.

Desta vez, o invento tem aplicação prática. No final da primeira década do século XX, com o nascimento da era industrial no Barreiro, o padre Himalaya e a Condessa da Penha Longa conseguem reunir quase quatro dezenas de investidores, alguns deles estrangeiros, e criar a Companhia Himalayte. Contudo, mais tarde, as guerras comerciais e a verdadeira Guerra Mundial abalam a empresa que acaba por ser vendida em 1918.
Paralelamente aos inventos, o padre Himalaya mostra uma faceta pioneira em áreas que hoje catalogaríamos de desenvolvimento sustentável. Em várias palestras em congressos e na Academia de Ciências assume-se como um defensor da arborização do país, da irrigação dos solos – sugerindo locais para a construção de barragens – do aproveitamento das energias renováveis e da promoção da aquicultura. Numa dessas palestras, em Março de 1909, apresenta um plano para a instalação de um cais portuário de Santa Apolónia aos Olivais, bem como uma ponte levadiça na zona do Beato até ao Montijo, ou seja, no actual traçado da Ponte Vasco da Gama. E numa época em que o petróleo era visto como um recurso inesgotável, insiste na sua paixão pelas energias renováveis, propondo que o fornecimento de electricidade a Lisboa seja feito usando a energia das marés do estuário do Tejo.

Também na ecologia está à frente do seu tempo. Insurge-se contra o aniquilamento de animais considerados destruidores e de mau agoiro, por serem úteis à agricultura, além de patentear estruturas percursoras do tratamento de esgotos urbanos e de lixos para reaproveitar a massa fertilizante. Mas a diversidade de inventos é enorme: durante a vida ainda patenteia um turbo-motor directo, bastante inovador para a época, e mais tarde um processo de transformação de crustáceos em alimentos completos para animais e a espécie humana.
Tamanho afã intelectual e científico chega mesmo a surpreender o exigente Almada Negreiros que, dois anos depois de ter zurzido na sociedade tradicionalista e no país limitado através do “Manifesto Anti-Dantas e por extenso”, escreveria sobre o padre Himalaya, considerando-o um “digno representante do cientista português”

Mas as preocupações do padre Himalaya também se situaram na saúde pública, criticando “a impureza do ar respirado onde abundam inúmeras poeiras e micróbios patogénicos e venenos, resultante da excessiva aglomeração humana”, bem como o excesso de carne na alimentação, bebidas alcoólicas, chá, café e tabaco e o abuso de medicamentos.
Entre 1920 e 1922 desloca-se aos Estados Unidos, para estudar medicina, regressando maravilhado com o milagre americano, tentando que esse modelo seja adoptado em Portugal. Numa entrevista ao Diário de Notícias diz, por exemplo, ser “preciso promover o culto da ordem pública, dando universal e sincera expressão ao voto eleitoral, para a escolha livre dos governantes”, defendendo, por outro lado, que “deve haver uma restrição severa (à distribuição demográfica do país), para que se ponha termo à loucura de acumular o povo onde não há que fazer, nem que comer, deixando a terra inculta onde há muito que fazer e donde deve provir a abundância de tudo o que é necessário para a vida”.

A partir dessa altura, a actividade febril do padre Himalaya diminui um pouco. Pensa-se que durante cinco anos tenha tentado criar uma escola da Ordem Terceira Franciscana, viajando também pelo Oriente. Certo é que em 1927, desiludido com o rumo do país e arruinado, parte para a Argentina, onde se fixa durante anos tratando dos negócios de terras de uma rica latifundiária e desenvolvendo trabalhos de agricultura e de botânica. Terá sido porventura num auto-teste a uma planta medicinal que se terá envenenado e contraído mielite. Em Maio de 1933 regressa a Portugal, já bastante doente, mas com a esperança de acabar um livro, que representaria “43 anos de constante reflexão, observação, estudo e investigação”, com um objectivo nada modesto: apresentar “um sistema da estrutura geral de todo o Universo”.

Se conseguiria ou não, nunca se saberá. A morte levou-o, mas não para sempre. No seu testamento escreveu: “Não receio a morte natural porque creio que a alma é imortal e que Deus misericordioso lhe dá o prémio das boas obras e lhe perdoa as faltas humildemente confessadas”. O prémio terá sido, certamente, recebido. Até porque, como escreveu ao seu irmão Gaspar, a bordo do navio Oceanic que o levaria em 1904 a Saint Louis, o seu modo de vida era linear: “ser útil ao meu semelhante, satisfazendo ao mesmo tempo a vocação de me dedicar à leitura do grande livro que Deus escreveu – a Natureza – e que o espírito humano ainda pouco conseguiu decifrar”.


Caixa 1 - Celebrações

As posições liberais do Padre Himalaya – que defendia, por exemplo, o fim do celibato dos clérigos, insistindo que deveria existir um referendo interno sobre essa matéria – e o Estado Novo terão sido os principais motivos para que, durante anos, a sua obra tenha caído no esquecimento. Tirando alguns eventos no Minho – de onde era natural – e da existência de uma escola do ensino básico na Damaia com o seu nome, o Padre Himalaya é um desconhecido para a generalidade dos portugueses. Quem tem tentado desde os anos 70 recolher o espólio e traçar o percurso de vida deste inventor e humanista tem sido Jacinto Rodrigues, professor da Faculdade de Arquitectura do Porto. Nos últimos anos, esse esforço tem-se intensificado tendo publicado entretanto o livro “A Conspiração Solar do Padre Himalaya”, que nos próximos meses será também o título de um documentário, produzido pela LX Filmes e realizado por Jorge António.
Mas durante o próximo ano existe outro desafio: na comemoração do centenário do prémio obtido em Saint Louis pelo “pirelióforo”, Jacinto Rodrigues pretende fazer uma réplica em tamanho natural dessa máquina solar, contando já com o apoio de Collares Pereira, investigador de energias renováveis do INETI. Falta apenas o financiamento: 200 mil euros. Será muito para celebrar tão imensa obra de um português?

sexta-feira, fevereiro 27, 2004



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MARÉ CHEIA - Grande Reportagem, 14 de Fevereiro de 2004

Em 1971, um arquitecto paisagista aparecia na RTP explicando as causas para a catástrofe que ceifara a vida a quase 300 pessoas, quatro anos antes, numa noite diluviana de Novembro. Não era a primeira vez que dissertava sobre este assunto na televisão pública. Meses antes dessa calamidade que transformou as ribeiras dos subúrbios de Lisboa num mar de lama e pedra que soterrou casas, animais, homens, mulheres e crianças, esse técnico já alertara para os riscos de se construir habitações nas zonas baixas, nos leitos de cheia, de alterar as margens e de provocar estrangulamentos e obstáculos à livre passagem das águas das chuvas. Mesmo se a Censura ainda estava em vigor, o tal arquitecto paisagista terminava as suas explicações, com desenhos e esquemas que qualquer criança entenderia, denunciando que a causa para a catástrofe das cheias eram “a falta de planeamento, a inépcia, a ignorância e a incompetência”.

Hoje, mais de três décadas depois, as palavras desse arquitecto paisagista, de seu nome Gonçalo Ribeiro Telles, mantêm-se tristemente actuais. Na verdade, as circunstâncias para se repetirem as consequências nefastas de uma grande cheia em Lisboa e nos seus subúrbios até aumentaram, com a intensificação da urbanização, a impermeabilização dos solos e os estrangulamentos dos fluxos de água, quer superficiais e subterrâneos. “Enquanto as cheias em meio rural são fruto de precipitações abundantes e contínuas, ao longo de vários dias, as inundações em zonas urbanas podem ocorrer repentinamente, mesmo no espaço de uma hora”, salienta Fátima Espírito Santo, técnica do Instituto de Meteorologia. Para esta meteorologista, “as cidades estão mais susceptíveis aos fenómenos extremos por razões de escoamento de água, sobretudo se os índices de impermeabilização forem muito elevados”. Segundo os especialistas em meteorologia, existe o risco de inundações em meio urbano quando as chuvas caem com uma intensidade superior a 9 milímetros numa hora ou então mais de 25 milímetros durante 24 horas. Pode parecer pouco à primeira vista, mas o caso muda de perspectiva se se disser que uma queda de 25 milímetros de chuva significa, na cidade de Lisboa, qualquer coisa como 2,1 mil milhões de litros de água.

Aliás, durante as cheias de 1967 registou-se em Lisboa uma pluviosidade de cerca de 100 milímetros no espaço de 24 horas, um valor que entretanto apenas foi excedido por mais duas vezes. No primeiro caso, em Novembro de 1983, Cascais ficou completamente inundada e mais tarde, em Janeiro de 1997, repetiu-se a situação um pouco por toda a região de Lisboa. Contudo, esses são casos bastante extremados, pois as inundações são o pão-nosso de cada dia; de dias de chuva mais intensa, está visto. “Quando existe uma chuva mais forte em Lisboa e sobretudo se a maré está cheia surge o caos”, salienta Fernando Curto, presidente da Associação Portuguesa dos Bombeiros Profissionais, que acrescenta “haverá sempre grandes dificuldades se surgir um caso idêntico a 1967”. Para este responsável, a principal culpa está na falta de cultura de planeamento e de prevenção, o que potencia os danos”.
Não deixa de ser estranho que essa cultura não exista em Portugal – ou se calhar não é assim tanto; basta recordar os fogos florestais –, sabendo-se que os fenómenos extremos de chuva intensa têm aumentado em Portugal nas últimas décadas. Atendendo aos dados meteorológicos de Lisboa, nos anos 80 verificaram-se 65 ocorrências com pluviosidade superior a 9 milímetros, na década de 90 registaram-se 85 situações e na actual década já ultrapassaram as duas dezenas. É certo que não se repetiu, felizmente, casos tão graves como em 1967, mas todos estão recordados do pandemónio dos dias em que estradas e casas são inundadas, causando prejuízos avultados.

O incremento destes fenómenos extremos de chuva intensa tem sido associado aos fenómenos das alterações climáticas, para os quais a própria Organização Mundial de Saúde tem vindo a alertar com cada vez maior insistência. “Estima-se que com o aquecimento global, mesmo havendo em algumas regiões um decréscimo da precipitação anual, haverá maior concentração dos dias chuvosos”, salienta Fátima Espírito Santo. Aliás, após as cheias de Agosto de 2002 no Centro da Europa (ver caixa), foi divulgado um estudo do Instituto de Meteorologia Max Planck, de Hamburgo, onde se estimava que para uma bacia hidrográfica alemã o número de dias com precipitação diária superior a 10 milímetros quase duplicará dentro de quatro décadas, passando dos actuais 25 dias por ano para quase meia centena.

Perante estes cenários, torna-se quase criminoso que se mantenha “a falta de planeamento, a inépcia, a ignorância e a incompetência” – pegando nas palavras de Ribeiro Telles ditas no longínquo ano de 1971 – que poderá vir resultar numa calamidade. Em Lisboa não faltam áreas críticas que poderão ser bastante afectadas em caso de cheias repentinas. De acordo com estudos deste arquitecto Ribeiro Telles, feitos no âmbito do Plano Verde de Lisboa – que o presidente da autarquia, Santana Lopes, se prepara para engavetar para dar espaço a mais urbanizações na revisão do plano director municipal – existem actualmente cerca de 80 zonas críticas de escoamento de águas superficiais e subterrâneas.

Embora grande parte dessas zonas críticas se localize em áreas baixas da cidade, sobretudo entre o Poço do Bispo e Alcântara, muitas outras estão distribuídas por várias zonas da cidade. Sobretudo naquilo que Ribeiro Telles denomina de “sistema húmido” que, para além da zona ribeirinha do Tejo, se desenvolve desde o vale da ribeira de Alcântara até Benfica e Carnide, desde Sete Rios até às Avenidas Novas, passando pelas Avenidas da Liberdade e Almirante Reis e pelo vale de Chelas.

Apesar de já praticamente todas as pequenas ribeiras lisboetas se encontrarem canalizadas – não sem riscos de aumentar os efeitos das inundações, bastando verificar em que zonas as caves e parques de estacionamento ficam alagados quando chove mais –, aquelas que ainda conseguem ver o sol e a chuva a tocar-lhes estão a ser tapadas ou aterradas. Para se construirem urbanizações em cima ou defronte delas. Esquecendo, contudo, pequenos pormenores. “A água se não poder correr livremente à superfície, se tiver obstáculos ou dificuldades em circular no subsolo, arranja o seu próprio caminho, provocando inundações”, afirma Ribeiro Telles. Por vezes, onde menos se espera. “Em alguns casos, os empreiteiros optam por desviar essas águas para as redes de drenagem pluvial que não têm capacidade de vazão suficiente, causando inundações em outras zonas, sobretudo se as marés forem desfavoráveis”, acrescenta.

Além disto, o arquitecto paisagista é um crítico acérrimo de soluções que metam obras de engenharia civil pura e dura quando os problemas surgem, como é o caso do caneiro do Vale de Alcântara. Com os aluimentos que têm surgido nos últimos meses, a autarquia de Lisboa já anunciou a intenção de canalizar e impermeabilizar por completo a ribeira de Alcântara, cujo caneiro foi construído durante o Estado Novo. “Se tal se fizer pode-se evitar mais aluimentos, mas como assim se evita que as águas que drenam pelo vale de Alcântara entrem no caneiro, o que vai acontecer é o surgimento de cheias naquela zona”, alerta. Alternativa à betonização até já está estudada. No anterior mandato autárquico, Ribeiro Telles apresentou um projecto para destapar a ribeira, criando cinco bacias de retenção, evitando assim a chegada repentina de águas às partes baixas de Alcântara. Chegou-se mesmo a desinstalar um posto da Shell para a localização de uma dessas bacias, mas o projecto aparentemente foi abandonado. “O problema daquela zona não é hidráulico; é hidrológico, mas os ‘lobbies’ do betão preferem obras que metam canalizações”, acusa Ribeiro Telles.

Aos exemplos de erros de planeamento do passado somam-se os mais recentes. Um dos mais chocantes ocorre no Vale de Chelas – que até poderia ser um local aprazível, desempenhando o seu papel de circulação de água – onde se está a assistir a uma ocupação selvática com fins urbanísticos. Em redor do bairro social do Armador, vislumbra-se já uma estrada ravina abaixo com uma quantidade colossal de aterro que ameaça barricar a ribeira. Na zona entre o Centro Comercial do Colombo e Carnide, as urbanizações recentemente construídas encontram-se em leito de cheia e mesmo a ampliação do cemitério de Benfica aí está localizada, o que aliás tem vindo a colocar problemas de gestão por a terra estar constantemente empapada. Ribeiro Telles receia que esta ocupação anárquica feita pelo imobiliário invada ainda mais zonas sensíveis, que para além de colocarem em causa o Plano Verde de Lisboa – sobretudo o Parque Periférico e o Vale de Chelas – podem vir a potenciar ainda mais as cheias. “As áreas de leito de cheias das ribeiras de Lisboa deviam ser ocupadas por hortas sociais, que além do seu papel ocupacional, dariam zonas verdes de custo zero para as autarquias, além de desempenharem um papel fundamental na prevenção de cheias”, advoga Ribeiro Telles.

Mas se Lisboa é um mau exemplo, o resto do país, de Norte a Sul, não lhe fica atrás na imprudência. E quando o azar bate à porta, já se sabe: os políticos culpam sempre a Natureza madrasta. Mesmo se desde os anos 80 do século passado houve várias tentativas legislativas para evitar a ocupação destas áreas. Por exemplo, durante a sua passagem pelo Ministério da Qualidade de Vida, há 20 anos atrás, Ribeiro Telles conseguiu aprovar em 1983 a lei da Reserva Ecológica Nacional (REN) que proibia edificações em leitos de cheia. Contudo, estranhamente, Lisboa e Porto foram municípios isentados da elaboração da carta da REN, argumentando que este diploma apenas se deveria aplicar em zonas não exclusivamente urbanas. De qualquer modo, no resto do país, sobretudo em zonas de expansão urbana, muitas áreas de leito de cheia foram excluídas da carta da REN. Em muitos casos, sobretudo nas Áreas Metropolitanas do Porto e de Lisboa, foram canalizadas e entubadas no subsolo ribeiras e mesmo rios, como foi o caso de troços urbanos do Leça. Dessa forma, deixando de existir um curso de água superficial passou a considerar-se que não existia leito de cheia e, portanto, não se estava em área de REN. Puro engano, está bem de se ver. Nos períodos de chuva mais intensa, as inundações são frequentes e muitas casas deterioram-se devido ao humedecimento das paredes. “As cartas da REN foram elaboradas pelas Direcções Regionais do Ambiente por vezes sem um conhecimento apurado do terreno e sujeitas às fortes pressões das autarquias para que não se incluíssem determinadas zonas sensíveis que eram apetecíveis para a construção”, refere Francisco Ferreira, dirigente da Quercus.

Não há, certamente, ninguém que deseje que algo corra mal para que prove a sua razão. Mas uma coisa parece certa: o fogo e a água são elementos da Natureza antagónicos entre si, mas semelhantes na acção destrutiva perante acções erradas e omissões negligentes. Portugal sofreu no ano passado o flagelo dos fogos em resultado de anos de desordenamento e falta de gestão florestal. Quem for religioso, bem que pode rezar para que não haja – mais ano, menos ano; mais mês, menos mês; ou mesmo mais dia, menos dia – uma nova calamidade. Desta vez chamada cheias.


Caixa 1 - Sem data marcada

Todos sabem: a época das chuvas é no Outono e Inverno. Mas quando estamos a falar em cheias em meio urbano, o caso muda de figura. Por exemplo, em Lisboa, desde a década de 40 do século passado, em 15 anos o dia com maior precipitação ocorreu fora do período principal de precipitação: cinco vezes em Março, três em Setembro, duas em Junho e outras tantas em Abril, e uma em Maio, Junho e Julho.
Curiosamente, o único mês que nunca foi recordista em qualquer ano foi Agosto. Aliás, se qualquer jornalista propusesse ao seu editor elaborar uma reportagem sobre riscos de cheias no início desse mês, provavelmente recomendavam-lhe meter férias. Contudo, em Agosto de 2002, o tema que marcou os noticiários da Europa foi a maior inundação do último século que afectou as bacias hidrográficas do Danúbio e do Elbe, afectando desde o dia 12 desse mês vastas áreas da Saxónia, da República Checa e da Áustria. No rescaldo dessa tragédia, além das perdas humanas, os prejuízos contabilizados ascenderam aos 15 mil milhões de euros. No período de maior precipitação, foi registado na região de Zinnwald-Georgenfeld cerca de 380 milímetros de chuva em apenas 24 horas e na zona de Berlim cerca de 100 milímetros. Ninguém queira imaginar o que aconteceria se estes valores atingissem Portugal...



Caixa 2 - Águas mortíferas

Embora os terramotos sejam os mais temíveis desastres naturais, as cheias são mais mortíferas em todo o Mundo. Portugal não é excepção.

1967 – 26 de Novembro

Cheias destrutivas causaram a morte de 462 pessoas e desalojaram ou afectaram cerca de 1100, submergindo centenas de casas e infra-estruturas num rio de lamas e pedras. O Estado Novo nunca permitiu apurar as verdadeiras consequências desta catástrofe. O Internation Disaster Center (IDC) da Universidade de Louvain aponta para prejuízos da ordem dos 3 milhões de dólares a preços da época.

1979 – Janeiro

Inundações na Madeira causam a morte de 19 pessoas, ferem 220 e afectam cerca de 20 mil pessoas. Os prejuízos estimados pelo IDC são de 30 milhões de dólares.

1979 – Fevereiro

Considerada a maior cheia do século XX, afectou todo o vale do Tejo, sobretudo o distrito de Santarém, durante nove dias. Os dados do Serviço Nacional de Protecção Civil indicam que terão causado dois mortos, 115 feridos e 1187 pessoas evacuadas, além de avultados prejuízos materiais. O IDC aponta, contudo, para quatro mortes, 10 mil pessoas desalojadas e 15 mil afectadas, causando um prejuízo de 2,1 milhões de dólares.

1981 – 29 de Dezembro

Chuvas intensas na região de Lisboa, mas afectando também outras zonas do país, incluindo o oeste de Espanha, causam 30 mortos e afectam 900 pessoas.

1983 – 18 de Novembro

Cheias provocadas por chuvas intensas na região de Lisboa, Loures e Cascais causam a morte de 10 pessoas, mais nove são dadas como desaparecidas e cerca 1200 ficam desalojadas. Os prejuízos apontados pelo IDC são de 95 milhões de dólares.

1989 – Dezembro

Cheias nos rios Tejo e Douro provocam um morto, 61 pessoas são evacuadas no distrito de Santarém e 1500 ficam desalojadas na Régua.

1997 – 6 de Novembro

Chuvas torrenciais atingem o Baixo Alentejo causando a morte de 11 pessoas e desalojando 200.

2001 – Janeiro

Devido a chuvas prolongadas do Inverno, verificam-se deslizamentos de terras e inundações em vários pontos do país. Cerca de uma dezena de pessoas perdeu a vida. No Baixo Mondego, os diques longitudinais não aguentam a força das águas e rompem em mais de uma dezenas de sítios, causando inundações em todo o vale, em especial na zona de Montemor-o-Velho.

2001 – 3 de Março

A ponte Hintze Ribeiro entra em colapso devido aos caudais intensos do Douro e Tâmega – e à excessiva exploração de areia no leito do rio – arrastando uma camioneta de turismo e dois automóveis. Morrem cerca de 60 pessoas.

Fonte: Serviço Nacionais de Bombeiros e Protecção Civil; OFDA/CRED International Disaster Database, Université Catholique de Louvain (Bruxelas, Bélgica)



Caixa 3 - Inundações e cheias: Descubra as diferenças

Embora sejam considerados sinónimos pelo senso comum, as cheias e as inundações têm diferentes comportamentos e causas. No primeiro caso, este fenómeno é repentino e localizado, afectando sobretudo os meios urbanos: Já as inundações ocorrem, regra geral, em áreas de vale após um período de chuvas prolongado – se bem que por vezes intenso – ao longo de toda a bacia hidrográfica. Ou seja, os estragos de uma cheia atingem, em especial, os locais onde cai a chuva, enquanto uma inundação pode afectar uma área bastante distante da zona onde ocorre maior precipitação. Por vezes, um e outro fenómeno conjugam-se – e confundem-se.

Existem vários factores para o agravamento dos efeitos das cheias e das inundações. Em geral, a “culpa” é sobretudo da localização incorrecta de edifícios em áreas consideradas de leito de cheia – onde, aliás, deveria ser proibida a construção por serem consideradas áreas de Reserva Ecológica Nacional. No entanto, existem outros factores. Em zonas urbanas, a contínua impermeabilização dos solos – que não permitem a infiltração das águas pluviais –, a obstrução e canalização de ribeiras e a falta de gestão das redes de águas pluviais agudizam os problemas quando ocorrem precipitações intensas. A prática de limpeza da vegetação das ribeiras em áreas rurais e urbanas – feitas muitas vezes sob o argumento de se evitar as cheias – tem, regra geral, um efeito contraproducente. Se bem que na zona dessas limpezas a água se escoe mais rapidamente, isso significa que chega em maior volume nas zonas de jusante. Se aí existir algum estrangulamento ou falta de escoamento pode provocar uma inundação mais intensa.

Outros factores anormais para a ocorrência de cheias são os colapsos de barragens ou os deslizamentos de terras em albufeiras, que originam ondas de cheias para jusante. Nas últimas décadas esta situação ocorreu um pouco por todo o Mundo. Ficou tristemente célebre o colapso da barragem de São Francisco, na Califórnia, que em 12 de Março de 1928 causou a morte de 450 pessoas. Em Agosto de 1963, um deslizamento de terras para a albufeira italiana de Vaiont provocou uma gigantesca onda que galgou o paredão da barragem, provocando o afogamento de 2600 pessoas. Depois disso, em 1995, a ruptura de uma outra barragem indiana causou um número similar de mortes. No mesmo ano, uma barragem chinesa também ruiu e matou 240 pessoas. Mais recentemente, em Junho de 2002, uma barragem na Síria entrou em colapso e provocou a morte de uma dezenas de pessoas.



Caixa 4 - Uma força da Natureza

O tempo não existe em Gonçalo Ribeiro Telles. Durante uma visita a vários locais de Lisboa para verificar in loco alguns dos erros de planeamento de Lisboa, o cicerone da GR nem parecia ter idade para ser avô do redactor e do fotógrafo que o acompanharam. Se é mais que evidente que Ribeiro Telles mantém a lucidez e clarividência que todos conhecem, o seu fulgor físico torna-se invejável.

Durante o almoço não prescindiu de uma saborosa cerveja, que ajudou a digerir o pernil de borrego num restaurante de Carnide. Mais tarde quando junto à Quinta da Granja de Baixo, nas imediações do Colombo, não se mostrou rogado em aceitar um bom copo de água-pé oferecida por um agricultor de uma das hortas que por lá sobrevivem.

Quando foi necessário mirar do alto mais uns quantos atentados urbanísticos, junto ao cemitério de Benfica, Ribeiro Telles subiu, e depois desceu, um inclinado e enlameado talude de uma estrada, não deixando a tarefa apenas para os jornalistas da GR. Andou quilómetros e mais houvessem se entretanto a noite não chegasse.

Ribeiro Telles foi, e ainda é, o mestre dos mestres do planeamento urbanístico e paisagístico em Portugal, foi por duas vezes membro de Governos, é um dos técnicos mais activos e conceituados do país, ainda é um visionário que pensa que a utopia está à mão da vontade humana, e mantém uma humildade e simpatia únicas. E tem 82 anos. Portugal não tem muitas forças da Natureza como ele.