REPORTAGENS AMBIENTAIS

ESTRAGO DA NAÇÃO

quinta-feira, abril 29, 2004

Nota: Interdita a reprodução sem autorização do autor.

ICN CHUMBA BARRAGEM DO SABOR - Diário de Notícias, 29 de Abril de 2004

O Governo está impedido por leis comunitárias de autorizar a construção da barragem do Baixo Sabor, em Trás-os-Montes, e deverá mesmo estabelecer uma moratória para evitar qualquer grande aproveitamento hidroeléctrico naquele rio no futuro. Este é o teor do parecer do Instituto de Conservação da Natureza (ICN), a que o DN teve acesso, no âmbito da avaliação do impacte ambiental do polémico projecto da EDP, cuja decisão final do Ministério do Ambiente deverá ocorrer até amanhã, sob risco de uma autorização tácita.

O organismo que tutela as áreas protegidas e os sítios da Rede Natura classificados pela União Europeia defende que a barragem do Baixo Sabor deve ser uma opção a excluir e que a única alternativa, apesar de também apresentar impactes negativos, será construir uma barragem no Alto Côa.

Esta solução é, contudo, a menos apelativa em termos económicos para a EDP e contraria também a posição já assumida por José Eduardo Martins, secretário de Estado do Ambiente, que já defendeu a construção do empreendimento do Baixo Sabor não somente para regularizar os caudais do Douro, como também para contribuir para o crescimento das energias renováveis em Portugal. Tanto o Ministério do Ambiente como a EDP não se pronunciam sobre estas conclusões do ICN.

CÔA É A OPÇÃO. De acordo com o parecer do ICN, datado de 15 de Abril, este instituto considera que, de entre as três alternativas em estudo - Baixo Sabor, Alto Côa e «alternativa zero» -, se deveria optar por não construir qualquer barragem. No entanto, o ICN salienta que, «no caso de se optar pela implementação de um dos projectos, deva ser seleccionado o «Aproveitamento do Alto Côa». O extenso documento do ICN, com 65 páginas, avisa mesmo que não existem hipóteses legais para se optar pela alternativa Baixo Sabor, uma vez que a legislação nacional - transposta de uma directiva comunitária sobre a Rede Natura e Zonas de Protecção Especial (ZPE) - é taxativa ao impedir a construção dum projecto quando haja outra alternativa de localização com menor impacte ambiental.

No entanto, se o Alto Côa for aprovado, o ICN sugere que «deva ser equacionada, como medida compensatória pela perda de valores naturais prevista com a implementação do projecto, a determinação, pelo Governo português, da não construção no futuro de qualquer grande aproveitamento hidráulico ou hidroeléctrico no rio Sabor».

Em defesa da sua tese, o ICN argumenta com os impactes significativos na vegetação e na fauna existente no Baixo Sabor. A ser construída esta barragem, seria inundado um troço de 45 quilómetros de um rio ainda em estado natural e a albufeira que se criaria «eliminaria» cerca de metade da área classificada pela Comissão Europeia como Rede Natura e ZPE. Os impactes dessa submersão sobre a vegetação iria, segundo o parecer, afectar de forma drástica «espécies, comunidades e habitats raros e extremamente relevantes em termos de conservação».

Ao nível dos animais, são também apontados efeitos bastante negativos em várias espécies protegidas como a rã-ibérica, o cágado-mediterrânico, cegonha-negra e várias aves de rapina. Mesmo o lobo e a lontra veriam os seus habitats afectados e desapareceriam muitas zonas de refúgio de várias espécies de morcegos.

Se é verdade que o ICN aponta também efeitos negativos à alternativa do Alto Côa - tanto mais que afectaria 40% da área da ZPE deste vale -, em termos comparativos, sustenta o documento, o impacte seria inferior aos que se verificariam no Baixo Sabor.

PENALIZAÇÕES POSSÍVEIS. Este parecer do ICN pode, contudo, não ser seguido por José Eduardo Martins. Aliás, recorde-se que recentemente, no caso da construção do último troço da CRIL (Circular Regional Interior de Lisboa) , o secretário de Estado do Ambiente concedeu autorização mesmo contrariando as recomendações da sua comissão de avaliação - situação que foi inédita. Contudo, caso opte por não respeitar este parecer do ICN - permitindo a construção da barragem no Baixo Sabor -, o Estado português poderá sofrer penalizações da Comissão Europeia. Com efeito, em outros dois casos - Campo Maior e Odelouca -, Bruxelas aplicou sanções, entre as quais a suspensão de financiamentos, por desrespeito das normas de protecção de sítios da Rede Natura. As associações ambientalistas já ameaçaram recorrer judicialmente junto das instâncias comunitárias, caso a opção Baixo Sabor não seja abandonada.


Opção mais rentável mas mais prejudicial

O projecto de construção da barragem do Baixo Sabor tem sido uma autêntica dor de cabeça para a EDP. Após ter sido suspensa a construção da barragem de Foz Côa em 1995 - com a vitória das eleições legislativas de António Guterres - foi colocada como hipótese a construção de um empreendimento de fins múltiplos no Baixo Sabor, no concelho de Torre de Moncorvo. Este empreendimento, a ser construído, teria uma altura entre 114 e 123 metros e a albufeira ocuparia 2700 hectares ao longo de 47 quilómetros. Além disso, a jusante, está também previsto um contra-embalse (barragem do Feiticeiro) com uma altura de 69 metros. Com este empreendimento pretende-se, além de produzir electricidade, regularizar os caudais do rio Douro para, dessa forma, evitar as cheias na região do Porto.

Nos últimos meses, o Ministério do Ambiente pronunciou-se a favor da barragem do Sabor como sendo essencial para que Portugal cumpra a meta de produzir 39% de electricidade através de fontes renováveis, mesmo tendo em conta que o projecto nunca poderia estar concluído antes de 2012. O primeiro estudo de impacte ambiental do Baixo Sabor apresentado pela EDP acabou por ser chumbado no ano 2000 por não ter apresentado qualquer hipótese de localização alternativa. Esta exigência advinha do facto de entretanto a região do Baixo Sabor ter sido incluída nos sítios de Rede Natura e a Comissão Europeia exigir estudos alternativos de localização.

Essa segunda hipótese recairia no Alto Côa - a montante da abandonada barragem de Foz Côa -, mas a EDP sempre manifestou pouco interesse nessa alternativa, considerada menos apelativa em termos económicos, além de que a capacidade de regularização das cheias seria bastante inferior. Isto porque a albufeira do Alto Côa prevê uma menor área de inundação e da afectação do rio, tendo também uma capacidade de armazenamento muito inferior quando comparada com o aproveitamento que seria possível realizar com o projecto do Baixo Sabor.

sexta-feira, abril 16, 2004

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RELATÓRIO CIENTÍFICO COM CONTAS SUSPEITAS - Expresso, 27 de Maio de 2000


A COMISSÃO Científica Independente (CCI) terá cometido erros de cálculo que sobrestimaram a importância da emissão de dioxinas para a combustão de madeira e a cremação de cadáveres. Em causa está a eventual incorrecção na adopção de factores de emissão destes poluentes que, embora utilizem unidades ínfimas - em alguns casos, mil milhões de vezes inferiores ao grama ou ainda menos - são importantes para a contabilidade total das dioxinas, consideradas as substâncias químicas mais cancerígenas à face da Terra. A dose-limite diária de dioxinas ingeridas por um adulto, segundo a Organização Mundial de Saúde, deve ser inferior a 1 nanograma (ng) - um milhão de milhão mais pequeno do que uma grama.

Uma questão de peso
Num dos anexos do parecer apresentado no final da semana passada, a CCI pretendeu provar que as emissões poluentes da co-incineração de lixos perigosos eram irrelevantes em comparação com outras actividades mais banais do quotidiano. De acordo com as estimativas destes cientistas nacionais, bastariam 513 fogões de sala - com uma queima de quatro toneladas de madeira por ano - para formar uma quantidade de dioxinas equivalente às emitidas por uma cimenteira. Significaria isso que a combustão de um quilograma de madeira seria dez vezes mais poluente que a queima de idêntico peso de lixos perigosos.

Para estes cálculos, a CCI recorreu a um documento de trabalho de 1997 da Agência de Protecção Ambiental (APA) dinamarquesa, alegando que o factor de emissão para a queima de madeira era de 200 nanogramas por quilograma (ng/kg). Contudo, o factor expresso nesse relatório é substancialmente inferior: apenas 1,9 ng/kg. Aliás, este valor de emissões dinamarquês é semelhante ao adoptado pela Agência norte-americana para o Ambiente (EPA). Sebastião Formosinho, presidente da CCI, alega que «o factor usado está correcto e que os 1,9 ng/kg se referem a combustão industrial de madeira». Mas a leitura do relatório dinamarquês não deixa margem para dúvidas, uma vez que o factor de 1,9 ng/kg aparece no capítulo referente a fogões de madeira («wood stoves», em inglês).

Se se tomar por bom este valor de referência, a madeira - que estaria, segundo as opiniões dos cientistas nacionais, no topo das fontes de dioxinas nacionais - tem, afinal, pouca relevância. Embora a CCI não tenha divulgado a quantidade de madeira queimada em lareiras, o EXPRESSO obteve junto da Direcção-Geral das Florestas as quantidades relativas a 1998: 389 mil toneladas.

Fazendo as contas com base no factor dinamarquês, as emissões de dioxinas provocadas pelas lareiras e fornos portugueses não ultrapassam as 0,74 gramas por ano - um valor próximo dos 1,1 gramas por ano estimadas pelo Governo dinamarquês para um consumo de 578 mil toneladas de madeira -, ao contrário dos 74 gramas referidos no parecer da CCI. Aliás, a EPA estima que em todo o território norte-americano são emitidas 62,8 gramas por via da combustão de madeira residencial.


Critérios discutíveis
Também no caso dos crematórios, a CCI terá feito mal as contas. No estudo da APA dinamarquesa, o factor adoptado é de 4 microgramas por cadáver, mas os cientistas nacionais - apesar de referirem apenas a fonte dinamarquesa - decidiram usar um valor médio de 16 microgramas. A EPA, aliás, utiliza um factor de 0,5 e na Alemanha de 4,9. Se o valor dinamarquês fosse de facto seguido, o crematório de Lisboa não emitiria 32 miligramas de dioxinas por ano, mas sim 8 miligramas.

Mas não foi apenas nestes aspectos que a CCI terá sido pouco rigorosa. Por exemplo, foi apresentado um quadro com estimativas europeias das emissões para Portugal - sem quaisquer estudos a suportá-lo - que sobrestima o peso da queima da madeira e de lixos hospitalares, cujas incineradoras obsoletas estão em fase de encerramento. Mas é face a estes valores que a CCI conclui que as cimenteiras com co-incineração apenas representariam 0,2% das emissões totais de dioxinas em Portugal.

Por outro lado, apesar das diversas tecnologias existentes, a co-incineração apenas foi comparada com a incineração dedicada. E nos argumentos a favor da co-incineração foi quase exclusivamente usado um documento interno da Holderbank - a maior empresa mundial de cimento. José Cavalheiro, membro da CCI, alega que «se tentou obter também dados de empresas ligadas à incineração dedicada, mas essa informação não foi enviada».

Para Delgado Domingos, professor catedrático do Instituto Superior Técnico, «o parecer tem erros de termodinâmica graves e é tendencioso». «A passividade da maioria dos académicos perante a fraca qualidade deste parecer é preocupante», alega este especialista, receando que «a credibilidade de toda a comunidade científica vai sair 'chamuscada' deste processo