REPORTAGENS AMBIENTAIS

ESTRAGO DA NAÇÃO

terça-feira, março 11, 2008

Artigo (não editado) publicado na revista Notícias Sábado de 8 de Março de 2008
AQUI CRESCEU PORTUGAL

A menos de três décadas de fazer meio milhar de anos, a Universidade de Coimbra quer manter-se jovem e activa, olhando para o passado e mostrando aos turistas que é mais do que um centro de ensino. A candidatura à Unesco ser classificada como Património Mundial é agora o maior desafio desta centenária instituição.


Se Coimbra é uma lição de sonho e tradição – como diz o mais conhecido fado académico –, também será, e talvez ainda mais, de História e de Património. Pelo menos é este argumento principal que implicitamente está subjacente à recente candidatura da Universidade de Coimbra a Património Mundial da Unesco, apresentada em sessão solene no final de Janeiro.

De muitas histórias, de muitas obras magníficas, está cheio, de facto, o local onde nasceu, cresceu e (se) vive a Universidade de Coimbra. No local onde se situa se fizeram guerras, nasceram infantes, se coroaram reis, se tomaram decisões políticas, se formaram estudiosos, se construíram obras de eminentes arquitectos. Se Guimarães reivindica o berço da Nação, então Coimbra – e particularmente o centro nevrálgico onde se situa a sua Universidade – é a cidade que fortificou a Nação, à sombra de um património que agora aguarda reconhecimento internacional.
São estas histórias, e o património onde estas ocorreram ao longo de quase mil anos, que agora se pretende conservar e divulgar, de modo a potenciar o turismo numa interacção perfeita com o buliço do mundo académico. «Com a candidatura e a consequente classificação como Património Mundial conseguiremos projectar ainda mais as potencialidades turísticas da Universidade», salienta António Filipe Pimentel, pró-reitor e doutorado em História de Arte, acrescentando que, mesmo na situação actual, «o número de visitantes atinge os cerca de 200 mil, apenas ultrapassado pelo Museu dos Coches».

A Universidade de Coimbra é, de facto, um manancial de História e Arquitectura em movimento. Quem hoje entra pela famosa Porta Férrea – magnífico pórtico construído no século XVI – para os Paços da Escola, centro nevrálgico da Universidade, talvez desconheça que está no coração de uma antiga fortificação muçulmana, ainda existente quando Fernando Magno, em meados do século XI, conquistou Coimbra aos mouros e a entregou a Sesnando Davides, um moçárabe que seria o último Conde de Coimbra – antes da sua integração no Condado Portucalense – e que aí tratou logo de construir uma igreja cristã.
Antes de ser local de ensino, a antiga alcáçova islâmica foi sendo profundamente alterada – ao ponto de hoje apenas existirem vestígios arqueológicos no interior dos actuais edifícios –, passando a ser um paço real, ainda no tempo do Condado Portucalense. Aí terão nascido, com excepção de D. Pedro I, todos os reis da primeira dinastia, incluindo D. Afonso Henriques.
Foi, porém, com D. João I – aí coroado, nas famosas Cortes de 1385 – que começaram a implantar-se edifícios mais condignos, mas que viriam a ser demolidos por ordem do seu filho, D. Pedro, então Duque de Coimbra. Este infante da Ínclita Geração preferiu construir um novo edifício perpendicular ao primitivo recinto, mandando também edificar uma nova igreja que sucessivas alterações tornariam na actual Capela de São Miguel. Foi, no entanto, nos reinados de D. Manuel e de D. João III que os edifícios começam a tomar a forma actual, em forma de U, em volta do terreiro, tornando-se num autêntico palácio.
Quem acabou por beneficiar com tudo isto foi a Universidade de Coimbra. Embora a cidade tivesse tido academia por várias ocasiões desde 1290 – ano em que foram criados os estudos superiores pelo rei D. Dinis –, só em 1537 se fixou definitivamente em Coimbra por decisão de D. João III, seguindo a lógica renascentista de privilegiar a criação das universidades em pequenos centros urbanos e não em grandes cidades.
Com esse novo desígnio, o novo Paço das Escolas viria então a ser sucessivamente enriquecido, mas como um maior ímpeto no século XVIII. Primeiro no reinado de D. João V, com a construção da Casa da Livraria – a famosa biblioteca joanina com um riquíssimo espólio – e da Torre da Universidade, pela mão de António Canevari, o primeiro arquitecto do Aqueduto das Águas Livres. E, numa segunda fase, de forma mais estruturante, no reinado de D. José, como consequência da denominada Reforma Pombalina dos Estudos Superiores. Com efeito, depois da expulsão dos jesuítas, o Marquês de Pombal quis encetar, imbuído do espírito iluminista da Europa, uma profunda remodelação ao nível do ensino que necessitava também de novos edifícios. Num curto prazo de cinco anos – entre 1772 e 1775 – foram então construídos, entre outros, o Laboratório Químico, o Gabinete de Física Experimental, o Observatório Astronómico e o Museu de História Natural, ao qual ficou acoplado o magnífico Jardim Botânico. Foi a partir deste momento que a Universidade de Coimbra se consagrou como o centro de ensino por excelência do país, que manteve até à Primeira República.
Porém, do ponto de vista de arquitectura, apenas a partir do Estado Novo surgiram mais edifícios emblemáticos na zona alta de Coimbra, designadamente as novas Faculdades de Letras, Medicina, Ciências, Economia e Engenharia, dentro de uma lógica de arquitectura de poder. Depois do 25 de Abril, houve mais intervenções, mas já em outras zonas de Coimbra. Mesmo assim destaca-se o edifício destinado ao curso de Direito, concebido pelo arquitecto Fernando Távora.

O grande desafio dos promotores da candidatura (Universidade e autarquia de Coimbra) é agora articular todo este manancial de património ligado ao ensino com o turismo, simultaneamente salvaguardando e melhorando os edifícios e a sua envolvente. Um trabalho que não se circunscreve aos edifícios universitários. Com efeito, a área candidata, incluindo a zona de protecção, engloba não só o Paço das Escolas – que inclui a Biblioteca Joanina e os antigos Colégios – como também o Jardim Botânico, o Museu Nacional Machado de Castro e Igreja de São João de Almedina, a Sé Nova e o Colégio de Jesus, a Igreja de Santa Cruz, o Jardim da Manga e o Jardim da Sereia, o Laboratório Químico, a Sé Velha, as repúblicas da Alta de Coimbra e os edifícios universitários do século XX.
Para uma correcta integração deste património, bem como para uma melhoria da componente turística dos espaços, está previsto um conjunto de obras de arquitectura. «Convidámos vários arquitectos conhecidos para estes projectos, porque queremos fazer a interligação entre a arquitectura antiga e a moderna», salienta António Filipe Pimentel. Assim, por exemplo, Gonçalo Byrne foi encarregue do enquadramento paisagístico do terreiro dos Paços das Escolas, enquanto Souto Moura desenhará o edifício que constituirá o Centro de Interpretação na zona adjacente à biblioteca joanina. No antigo Colégio da Trindade, actualmente em ruína, está também previsto um novo edifício para a Faculdade de Direito, da autoria do arquitecto Alves Costa.
Outro tipo de medidas passará por algumas melhorias nos edifícios do Paço das Escolas. O pórtico com a estátua de D. José já está de cara lavada e seguir-se-á agora outras intervenções, nomeadamente a ligação de todos os edifícios – incluindo a possibilidade de entrada pelo interior para a Torre da Universidade, que beneficiará de obras de restauro para permitir visitas turísticas – e a colocação de vidros nas varandas da famosa Sala dos Capelos, onde se realizam os doutoramentos. «Isso permitirá manter as visitas mesmo quando se realizam as provas», refere António Filipe Pimentel. «Queremos criar, para o exterior, uma Universidade activa mas também um museu vivo de portas abertas», sintetiza.


Caixa
Uma luta pelo lugar ao sol

Não será fácil o percurso até que o sonho da autarquia e da Universidade de Coimbra se concretize. Portugal conseguiu, desde 1983, que a UNESCO classificasse 13 bens nacionais (vd. mapa ao lado) como o estatuto de Património Mundial. Um bom ritmo português que a própria Comissão Nacional desta instituição das Nações Unidas admite que «não é susceptível de se repetir, seja pela dificuldade em individualizar bens com idêntico carácter de excepcionalidade dos restantes bens portugueses incluídos.
Além disso, a candidatura da Universidade de Coimbra tem de convencer a UNESCO a dar-lhe preferência, em vez de classificar antes os outros bens portugueses que actualmente aspiram pelo mesmo estatuto: Arrábida, Baixa Pombalina de Lisboa, Cerca dos Carmelitas Descalços do Buçaco, Costa Sudoeste, Fortificações de Elvas, Convento e Tapada de Mafra, e ainda Marvão.
Em todo o caso, nenhum tem garantias de aprovação nos próximos anos, pois os critérios da UNESCO têm vindo a ser cada vez mais apertados. Por exemplo, cada país não pode apresentar mais do que uma candidatura de cada vez, num conjunto de 30 candidaturas a apreciar entre as que possam ser submetidas ao Comité do Património Mundial pelos 182 Estados que ratificaram a Convenção para a Protecção do Património Mundial. Por outro, a UNESCO concede preferência aos países com poucos bens classificados e a categorias de património pouco salvaguardadas.
Neste último aspecto, a Universidade de Coimbra, mais do que o seu valor patrimonial, até tem uma vantagem sobre as demais. Actualmente, só duas universidades (Caracas e Alcalá de Henares) constam da Lista do Património Mundial da UNESCO. E um dos fundamentos para a classificação da universidade espanhola foi a sua importância para a consolidação da língua castelhana. Por certo algo que Coimbra também pode, e deve, reivindicar face a uma língua que está, há séculos, disseminada nos quatro cantos do Mundo.