REPORTAGENS AMBIENTAIS

ESTRAGO DA NAÇÃO

domingo, fevereiro 24, 2008

Entrevista integral (não editada) publicada na edição de 23 de Fevereiro de 2008 da revista Notícias Sábado
GONÇALO RIBEIRO TELES

«As cheias são o resultado de erros de urbanismo»


É o pai da Reserva Ecológica Nacional, que conseguiu aprovar, quando foi ministro da Qualidade de Vida, nos últimos dias do Governo AD, já passaram quase duas décadas e meia. Mas é também o «pai» da escola da moderna arquitectura paisagista e das bases do planeamento em Portugal, que lamenta não ser ouvida nem achada nos momentos de decisão. Aos 85 anos, Gonçalo Ribeiro Teles, um defensor da Monarquia, foi já tudo: professor, construtor de jardins e corredores ecológicos, ministro e vereador, mas mantém ainda uma vivacidade e tenacidade que causa inveja aos mais jovens, temperado com o seu peculiar humor perante a comédia da vida.


P – As cheias desta semana na Grande Lisboa surpreenderam-nos?

R – Nada, absolutamente nada. E vão repetir-se, porque se tem aumentado a impermeabilização devido ao excesso de construção e continua a fazer-se más obras que impedem a circulação da água. E não se diga que a culpa é da intensidade das chuvas, nem é das alterações climáticas. Mesmo que assim fosse, é urgente adaptarmo-nos. As cheias são o resultado de erros de urbanismo. Não se podem continuar a cometer erros de planeamento e as autarquias têm de aplicar Planos Verdes. Alguns estão feitos, como em Loures, Sintra e Seixal, mas estão na gaveta. E em Lisboa estou à espera que a autarquia aprove as medidas cautelares para que possa ser aplicado.

P – As constantes inundações em Alcântara são inevitáveis?

R – Não. A autarquia tem mesmo um projecto, da minha autoria e do Instituto Superior Técnico, para solucionar aquele problema, que consiste basicamente em destruir o caneiro, renaturalizando a ribeira de Alcântara desde a Amadora e construindo duas pequenas barragens de retenção e recepção, de modo a conseguir-se amortecer os caudais mais intensos. Isso deveria ser feito noutras zonas da Grande Lisboa, como no Vale do Jamor. Mas há anos que está na gaveta.

P – Quatro anos depois das mortíferas cheias de 1967, disse na RTP que a culpa dessa catástrofe era, e digo textualmente, «a falta de planeamento, a inépcia, a ignorância e a incompetência». E agora?

R – É a mesma coisa. Talvez pior ainda. Não aprendemos nada com as catástrofes e continuamos a fazer intervenções erradas nos rios, com betão. Ainda agora no rio Sorraia fizeram-se canais de betão que aumentam a velocidade de escoamento e assim chega a água mais rápida aos pontos críticos, propiciando as cheias. Mesmo o serviço oficial que trata destas matérias [Instituto da Ágiua] não aprendeu, ainda está na rotina antiga. Mas não é por causa dos técnicos, é por causa das chefias.

P – Curiosamente, as cheias não afectariam muito os bens materiais se fosse aplicada, com rigor, o regime da Reserva Ecológica Nacional (REN). Mas este regime de protecção é muito mal amada no nosso país...

R – Não é só a REN, também acontece com a Reserva Agrícola Nacional (RAN). São poucas as pessoas que entendem o seu alcance, a importância que tem, para a comunidade, a preservação do território e da paisagem. O conceito de desenvolvimento aparece erradamente associado à produção de dinheiro a curto prazo, o que não é compatível com a boa gestão dos recursos naturais nem com a necessidade da sua renovação permanente.

P – Em que aspectos, em concreto, a REN tem sido essencial?

R – Tanto a REN como a RAN, que estão interligadas, e pese embora tenham sido mal interpretadas e também mal aplicadas – é uma velha história – têm sido fundamentais para termos até hoje um mínimo de paisagem rural e agrícola, de preservação do litoral e de protecção de zonas sensíveis.

P – E então as críticas, sobretudo de autarcas, devem-se a quê?

R – De certo modo, a REN contrariou a especulação, a transferência do uso do solo, do solo rural, para zonas urbanas e industriais. Funcionou como um travão, um obstáculo àquilo que se julgava ser o desenvolvimento.

P – Mas, por exemplo, um concelho com mais de 70% da sua área inserida em REN fica assim bastante condicionado...

R – Esse concelho não se deve suicidar, tanto mais que essa área da REN, esse obstáculo é afinal a sua sustentabilidade. Tem é de se adaptar a essa situação, dentro do contexto nacional.

P – Ou seja, não pode ambicionar a ter muitas casas, muitos empreendimentos turísticos, muitas zonas industriais...

R – Muitos autarcas vivem num mundo virtual. Aquilo que um autarca tem de exigir, de ambicionar, é que as pessoas que aí vivam tenham a mesma dignidade dos restantes habitantes do país. Mas o país não pode ser um puzzle em que tudo é igual e com o mesmo tipo de desenvolvimento. Acho espantoso que haja pessoas que pensam ser isso possível.

P – Acusa-se o regime da REN de ser demasiado fundamentalista, de proibir tudo e mais alguma coisa. Apresenta-se, por regra, do pobre agricultor que não pode fazer uma casa de banho por causa da REN...

R – Isso é uma falácia que determinadas pessoas com responsabilidade lançaram de que tudo é proibido. Mas, na verdade, tudo se pode fazer, mas não na REN. Há espaço noutros locais. Não podemos admitir que todo o país possa ser loteado de prédios, moradias e indústrias. A REN é uma estrutura biofísica que permite que o desenvolvimento se verifique noutras áreas.

P – Mas depois surgem alguns empreendimentos privados de grandes dimensões e conseguem-se desafectações por regimes especiais, como acontece com os Projectos de Interesse Nacional (PIN). Isso estava no espírito da lei?

R – Não estava nada. O espírito era olhar para o território de uma forma sustentável e não fazer-se especulação, transformando solo rural em urbano. Não é legítimo que um Governo faça isso. Temos de reconhecer a importância da REN e da RAN para o país. Repare naquilo que se está a fazer, por exemplo, na Arábia Saudita. Eles têm deserto e uma população a aumentar por causa do petróleo, estão ricos mas não têm solo. E estão a fazê-lo, estão a criar, do zero, solo, terra agrícola, as suas REN e RAN, usando água dessalinizada e resíduos orgânicos, sobretudo provenientes dos lixos urbanos. Começam já a fazer agricultura, para garantir o seu futuro, porque um dia o petróleo acaba. Aqui, a REN e a RAN são consideradas empecilhos.

P – Após a instauração da democracia, a agricultura em Portugal era vista como sinónimo de subdesenvolvimento...

R – Pois, e ainda hoje se pensa assim. Só não é sinónimo quando aparece por aí a agricultura intensiva, como a que veio, há uns anos, para Odemira [na Herdade do Brejão, do empresário Thierry Roussel, que produziu morangos em regime intensivo e entrou em falência, deixando os campos contaminado]. Ou como está agora a acontecer com os olivais.

P – Por causa da rega intensiva e das grandes densidades?

R – Sim. Aquilo é apenas negócio e falta de conhecimento de quem aprova estes projectos. Aquela olivicultura dura 10 anos, é uma espécie de eucaliptal de azeitona. Depois os empresários, que são sobretudo de Espanha e que trazem de lá os trabalhadores, vendem aquilo quando até as produções estão no auge. Mas depois caem abruptamente. Fazem como os alemães fizeram com os laranjais em Angola. Não podemos cair num jogo desses.

P – Qual o caminho então para a nossa agricultura?

R – Esta na produção baseada nas culturas mediterrânicas e feita de forma sustentável, mas sobretudo para consumo interno, não para exportação, para competição internacional. Mas para isso tem de se recuperar as aldeias, a massa de trabalhadores rurais que está envelhecida e não foi renovada.

P – Voltando à REN, este mês surgiu a intenção do Governo de entregar definitivamente às autarquias a delimitação destas áreas. Que significará isto, caso avance?

R – Julgo que as autarquias não têm um passado exemplar para se acreditar que compreendem um instrumento de nível nacional. E, portanto, basta olhar para as notícias na comunicação social para saber o que elas querem: fazer dinheiro com aqueles terrenos.

P – Mas já não era assim, na prática? Na esmagadora maioria dos PDM, embora a carta da REN fosse da responsabilidade da Administração Central, a delimitação era feita, na verdade, pela autarquia e depois aprovada pelas Comissões de Coordenação Regional...

R – Por isso, essas cartas da REN são um desastre completo, mal delimitadas, com erros. Basta, aliás, ver que até as legendas dessas cartas, que deveriam integrar-se no todo nacional, variam de concelho para concelho.

P – No contexto actual, julga que uma legislação como a do regime da REN poderia ser aprovada agora?

R – Não faço ideia. Se eu fosse ministro do Ambiente sim. Mas até poderia não haver condições políticas, mas havia uma necessidade tremenda. O país não pode continuar a ser destruído, a assistir ao fim do mundo rural, ao fecho de escolas, à concentração nas cidades e crescer em desordem. No interior não é com balões de oxigénio, como o baixar o IRS, que se resolve isto.

P – Como conseguiu, em 1983, aprovar uma legislação tão vanguardista numa altura em que as questões ambientais não estavam tanto na ordem do dia?

R – A situação já então era grave. Tinha então vingado a ideia da floresta industrial, que ameaçava entrar em determinadas zonas sensíveis. Existiam já problemas de erosão e de destruição dos sistemas hídricos, além das cheias e inundações.

P – A lei da REN foi aprovada poucos dias antes do Governo Balsemão cessar funções, em Junho de 1983. Os seus colegas de Governo tinham consciência daquilo que estavam a aprovar?

R – Não posso dizer que o Conselho de Ministros fosse uma «matilha» a pensar da mesma forma, embora estivesse no subconsciente de todos que esta legislação era basilar para o país. Também já se sabia que a Aliança Democrática (PSD/CDS/PPM) ia sair e daí não existiam tantas pressões. Foram condições muito favoráveis para a lei ser aprovada.

P – De entre os governantes que aprovaram a lei da REN, consta Basílio Horta, então ministro da Agricultura. Ou seja, o actual presidente da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) é um padrinho da lei da REN; logo ele que agora tanto tem batalhado para permitir grandes empreendimentos imobiliários e industriais nessas áreas. Não acha isso estranho?

R – Tem de perguntar a ele (risos).

P – Mais de três dezenas de Projectos de Interesse Nacional (PIN) já aprovados sob o patrocínio de Basílio Horta obrigaram à desanexação de áreas de REN. Será que em 1983 essas áreas eram importantes e agora já não são?

R – Tem de perguntar ao Basílio Horta. Ele não percebeu o que era aquilo, calculo. Não sei, não sei (risos).

P – Como vê o desempenho ambiental deste Governo? É diferente dos outros Governos, tendo em conta que é liderado por um antigo ministro do Ambiente?

P – Não existe desempenho. Vê-o? Não se vê política de ambiente! Veja-se o que está a acontecer com o Plano Nacional de Ordenamento do Território. E no que resultou o Plano Regional de Ordenamento do Território [aprovado em Fevereiro de 2002, quando José Sócrates era ministro do Ambiente]? Nada. E nada porque é um plano sem consistência.

P – Portugal tem uma tradição de fazer planos, que deveriam ser a base prévia para o planeamento das grandes obras públicas. Porém, na prática, os planos nada mandam, como se viu agora na escolha do novo aeroporto de Lisboa...

R – As coisas funcionam por lobbies ou por visões sectoriais. E avança quem tem mais força política ou económica.

P – Faz sentido que tenha sido o LNEC a fazer uma avaliação comparada das alternativas de local para o aeroporto e esteja agora a fazer um estudo sobre o traçado da terceira ponte sobre o Tejo, enquanto o Ministério do Ambiente, que tutela o ordenamento, está afastado?

R – Não faz sentido nenhum. Então agora é o LNEC que faz ordenamento do território em Portugal? Usar o LNEC agora é uma moda, como foi há uns anos a Parque Expo, que fez os Polis.

P – Foi professor no Instituto Superior de Agronomia e na Universidade de Évora, formando inúmeros técnicos de ordenamento. Estão a servir para alguma coisa?

R – Grande parte deles teve o mesmo travão que a REN. Muitos chegaram às autarquias e nunca lhes deram funções relevantes. Nas autarquias há uma grande rotina e um tipo que entra e vai contra a rotina está feito. Os autarcas lá vão arranjando uns engenheiros que lhes façam o que querem. Os tipos mais novitos, que querem fazer pela vida, sujeitam-se e há também os que se acomodam.

P – A década de 90 foi o período em que se começaram a aprovar planos de ordenamento que pretendiam conter a especulação e a construção maciça. Porém, nunca se construiu tanto como nessa década. Afinal, porque aconteceu isso?

R – Muitos planos eram maus, porque foram obrigados a adaptar-se ao meio. Antes do 25 de Abril até se fez algum bom planeamento – como nos Olivais e em Alvalade –, mas depois parou-se. Agora só se encontram alguns poucos casos de PDM que salvaram algumas coisas.

P – Consegue nomear um concelho modelo em termos de planeamento e ordenamento?

R – Eu não consigo falar de todos, mas escolher um concelho é difícil. Há casos pontuais de boas recuperações, como nos centros de Guimarães ou Braga, mas depois os arredores são uma vergonha. Constrói-se em leitos de cheia.

P – E concelhos desastrosos?

R – Isso encontra-se por todo o lado. Difícil é descobrir um concelho que não seja desastroso.

P – E os Polis, que foram apresentados como o paradigma do novo urbanismo?

R – Alguns têm interesse, mas estão desligados do contexto regional. Constituíram mais um embelezamento e uma decoração do que urbanismo.

P – Já falámos do mundo rural, e quanto às metrópoles? Lisboa e Porto perdem população que engrossa os subúrbios, sempre em crescente expansão urbana...

R – Aproximamo-nos muito do que acontece em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo com os bairros dos subúrbios cada vez mais problemáticos. Já se deveria estar a demolir muitos prédios dos anos 70, em zonas como Cacém e Odivelas, e construir aí em vez de abrir novas frentes urbanas. Os espanhóis já estão a fazer isso nas Baleares.

P – E julga possível fazer-se demolições em massa nessas zonas?

R – Se não se demolir, caem ou são abandonados, aumentando os problemas sociais. Quem alimenta a construção na Margem Sul são as pessoas que viviam melhor na Linha de Sintra e já não aguentam aquilo.

P – Ao longo das décadas de intervenção política e cívica sentiu-se, por certo, incompreendido muitas vezes. Por exemplo, em relação à sua defesa das hortas nas cidades, muitos achavam isso algo exótico ou mesmo esotérico...

R – Agora já não acham. Começaram finalmente a compreender a importância da agricultura junto dos centros populacionais. Aqui na zona de Lisboa já existem hortas, mas que é necessário fomentar e disciplinar.

P – Essa produção agrícola pode ter algum relevo, para além do auto-consumo ou do recreio?

R – Sim. Por exemplo, em 2006, a cidade de Chicago inaugurou 26 mercados só para escoar a produção local de produtos agrícolas.

P – Há quem diga que está à frente do tempo. O que sente quando se confirma o que diz?

R – Depois da catástrofe, não sinto nada. Agora, antes disso, vou insistindo.

P – A generalidade das pessoas fica possessa ao ver algo mal feito. Mas o senhor tem uma característica peculiar nessas circunstâncias: ri-se sempre, mesmo quando depois faz uma crítica demolidora...

R – Eu também fico possesso, mas depois rio-me. A vida tem muito de comédia e nós gostamos de comediantes. Eu rio-me dos outros, que se levam muito a sério. Ainda há pouco tempo fui convidado para visitar um espaço verde na Figueira da Foz e aquilo que vi foi um parque ridículo no meio do relvado, cortaram os arbustos todos só para ficarem uns penachos (risos). Cortaram o cabelo curto, à inglesa (risos).

P – Fazem-se bons jardins em Portugal?

R – Há de tudo. É das coisas mais heterogéneas. Mas a ideia do jardim público desapareceu. Ninguém já lá vai, querem os centros comerciais. Há sim uma procura maior pela grande paisagem, pelos corredores verdes, até porque hoje as pessoas têm maior mobilidade.

P – Fundou o Partido Popular Monárquico e sempre se assumiu como monárquico. Porquê?

R – Por uma questão de conceito e de princípio e também por experiência. O rei é uma referência histórica e de continuidade, é o transportador da bandeira da Nação, que só é substituído por morte, a não ser que se porte mal, o que não acontece com um presidente da República. Um rei não depende de ninguém, pode-se discutir tudo, enquanto um presidente da República está comprometido, foi apoiado por partidos.

P – Pensa que agora, em regime democrático, a República pode dar lugar de novo à Monarquia?

R – Tudo é reversível, desde que haja um consenso. Por razões históricas, estamos ligados a países com Monarquia, que são exactamente os países da Europa que têm melhores relações com o Mundo, como a Espanha e o Reino Unido. E isso não ocorre com outros três colossos europeus que são Repúblicas: a Itália e a Alemanha não têm ligações ao Mundo e a França está tendencialmente a perder influência internacional.

P – Se houvesse um referendo, julga que haveria hipótese dessa tese vingar?

R – Se existisse um debate sério e esclarecido, estou convencido que sim. A instituição democrática e a nossa projecção no Mundo vão precisar disso.

P – Foi professor, governante, autarca, construtor de jardins, elaborou planos. O que mais lhe agradou, nestas tarefas?

R – A vida (risos)! Eu misturei tudo. Esta variedade é que é boa.

P – Tem 85 anos. Não sente ser tempo para descansar da sua constante intervenção cívica e técnica?

R – Não conseguia viver sem isso (risos).

P – O que está fazendo agora?

R – Um projecto de enquadramento paisagístico para a Fundação Oriente e a participar num documentário sobre a vida do último rei de Portugal, D. Manuel II, para o Canal História.


Caixa
A mal-amada REN?

Prevista desde 1983, a Reserva Ecológica Nacional (REN), que é inserida nos planos directores municipais através de cartografia específica, serve sobretudo para impor regras em sítios de grande sensibilidade, designadamente zonas costeiras (dunas, falésias, arribas, etc.), margens de rios (incluindo leitos de cheia), áreas de máxima infiltração (para protecção de aquíferos) ou de interesse biológico (habitats específicos). Nestas áreas fica interdito todo o tipo de usos que implique ocupação artificial e movimentações de solos, o que na prática inviabiliza construções.
Desde o seu início que esta legislação foi alvo de críticas sobretudo pelos autarcas que assim ficavam sem possibilidades de expandir zonas urbanas, turísticas e industriais, mas também das populações, já que as ampliações de casas já existentes poderiam não ser autorizadas caso se estendessem para zonas de REN.
A legislação permite, porém, que estas zonas sejam desanexadas por razões de interesse público. Por regra, isso aplicava-se para as obras de saneamento básico, infra-estruturas rodoviárias e hidráulicas, mas nos últimos anos começaram a surgir desanexações para projectos privados (turismo e indústria, sobretudo), intensificando-se com a instituição dos Projectos de Interesse Municipal. Estes expedientes têm, contudo, que merecer a concordância da Administração Central, algo que a Associação Nacional dos Municípios Portugueses pretende mudar. Num parecer, a ANMP refere que «deverão ser drasticamente reduzidas as acções e projectos sujeitos a parecer das Comissões de Coordenação Regional», pretendendo também que «peso proibicionista» seja eliminado, passando a ser apenas uma carta de valores e de riscos, sem carácter vinculativo. os autarcas advogam também que deveriam os municípios a elaborarem estas cartas, pois «os técnicos das câmaras são tão competentes quanto os das comissões de coordenação».
Como óbice a esta mudança está a especulação que isso provocaria. Uma área de REN, sem possibilidades de construção, vale muito pouco dinheiro. Mudar para zona urbana provoca, de imediato, uma valorização enorme. Aliás, por regra, enriquece-se de um dia para o outro quando um terreno não urbano consegue passar a ter aptidão para a construção.

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

UMA LUZ QUE SE APAGA
Artigo (não editado) publicado na revista Notícias Sábado de 9 de Fevereiro de 2008

A Aldeia da Luz foi inaugurada há seis anos e prometeram-se mundos e fundos para dinamizar o mais novo povoado do país. Mas em política, as promessas ficam, muitas vezes, no papel. E hoje, nas margens do Grande Lago, os luzenses andam apagados e desmoralizados. Pelo andar dos tempos, em breve, poder-se-á visitar uma aldeia deserta e, paradoxalmente, novinha em folha.


Para o ano, caso se confirmem as pretensões do Ministério da Educação, já não será possível assistir ao passeio carnavalesco dos miúdos da escola básica do primeiro ciclo da Aldeia da Luz, que mascarados percorrem as ruas largas e desertas da mais nova povoação do país, construída de raiz por causa da albufeira de Alqueva. Para o ano, já não haverá um polícia, um cozinheiro, uma sevilhana, um palhaço, um mimo, um músico, uma hippie, um acordeonista e um mandarim, pois estes irão folgar para outras paragens. A escola, novinha em folha, cinco anos feitos, com duas salas que dão para 30 crianças, deverá encerrar no final deste ano lectivo, porque as crianças escasseiam. As crianças, os adultos e até os velhos…
Dir-se-á que estamos perante os sinais dos tempos, em que a desertificação do interior tudo extingue, tudo faz desaparecer, mas na Aldeia da Luz deveria ter sido diferente. Foi dito que seria diferente. Mas não foi. Quando em Fevereiro de 2002 se inaugurou, com pompa e circunstância, a trasladação da velha aldeia para o novo aglomerado, prometerem-se mundos e fundos para a revitalização deste pequeno povoado do concelho de Mourão que perdeu quase dois terços da sua área, engolidos pelas dolentes águas do Guadiana agora represado. Deram-se novas casas aos seus habitantes, um aglomerado espaçoso e supostamente moderno, garantiram-se apoios para compensar as perdas económicas de uma aldeia que, isolada, vive apenas da terra e da agricultura.
Porém, volvidos meia dezena de anos, entrar na nova Aldeia da Luz transmite uma estranha sensação ao visitante. Logo à entrada, na esquina da primeira rua, baptizada com o nome do antigo malogrado primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro – um indicador de ser esta freguesia um dos poucos bastiões sociais-democratas em terras alentejanas –, o Café Lanterna está fechado. Não é o único. No Largo 25 de Abril, encontra-se outro encerrado. Mais adiante, na Rua da Igreja, o Taskas Bar está também de portas encerradas. Sobrevivem agora somente dois – o Café Batista e o Café da Lousa, embora este último arrisque fechar nos próximos tempos.
Mas isto é apenas um pequeno sinal da fraca dinâmica económica da aldeia. Na verdade, os sinais exteriores de deserto ficam patentes, desde logo, quando se percorre o aglomerado. As portadas da esmagadora maioria das casas estão fechadas, não se vêem pessoas, mesmo que sejam apenas velhos, na rua – e que são uma das imagens de marca das aldeias despovoadas do Alentejo. Na Luz, o cenário é quase surrealista – olha-se para uma aldeia deserta, mas simultaneamente novinha em folha.

As «culpas» desta situação são variadas, mas têm a sua causa na forma como decorreu todo o processo de migração da antiga Aldeia da Luz para o novo aglomerado. «Perdeu-se o espírito de comunidade, de partilha que existia entre a população», salienta Maria João Lança, directora do Museu da Luz, gerido pela EDIA – a empresa responsável por todas as obras globais da barragem de Alqueva. Com efeito, a solução arquitectónica da nova Aldeia da Luz parece não ter sido a mais adequada. Ao invés de ruas estreitas e sinuosas – que permitiam estreitavam os laços de vizinhança –, a nova Aldeia da Luz tem agora autênticas avenidas gizadas a régua e esquadro que estão longe da tipicidade do Alentejo mais rural. Mas além disso, a forma como decorreu a distribuição das habitações não foi consensual e acabou mesmo por causar alguns atritos, animosidades e invejas. Por exemplo, houve quem não tivesse levado a bem que alguns vizinhos tivessem conseguido da EDIA alguns extras nas suas habitações somente porque tiveram maior poder de reivindicação. Ou ainda quem viu, por razões arquitectónicas insondáveis, a porta da sua casa dar logo para a estrada, enquanto que os vizinhos da frente ficaram com um passeio de três metros de largura, como acontece na Rua da Igreja. Acresce a tudo isto, os sucessivos problemas de má construção, sobretudo da rede de esgotos ou mesmo na estrutura das casas, fruto de obras atabalhoadas.
Contudo, para a actual situação, também ajudou a forma como, num projecto arquitectónico de raiz, não se procurou conciliar as vivências antigas para o novo aglomerado. Num trabalho publicado no ano passado pela antropóloga brasileira Clara Saraiva, investigadora do Instituto de Investigação Científica Tropical de Lisboa, sobre o impacte da mudança da Aldeia da Luz refere-se que «o Alqueva veio revolucionar as vivências e devassar intimidades», destacando que não foram previstas no projecto urbanístico a manutenção dos aspectos ancestrais que faziam parte da vida dos luzenses. Assim, os rituais da matança do porco, do fumeiro, do fazer do vinho e da preparação da azeitona, que faziam parte de um modo de vida, não foram consignados nas soluções de arquitectura. Como se se tivesse criado uma aldeia bonitinha para os visitantes, mas disfuncional e estranha para os habitantes.
Além disso, com a submersão do antigo povoado, outros hábitos deixaram de ser possíveis, como foi o caso das idas diárias de homens e mulheres até às nascentes de água – milagrosa para muitos –, que sempre permitiam, e sobretudo, dois dedos de conversa. «As pessoas tinham uma grande ligação ao rio e a albufeira não lhes diz nada», refere Maria João Lança, que tenta dinamizar, com o museu que dirige, formas de preservar a memória daqueles tempos, que agora parecem longínquos e que jamais poderão regressar.

Durante o processo de construção da nova Aldeia da Luz e nas primeiras fases após o abandono do antigo aglomerado, os luzenses viveram, em certa medida, anestesiados pelas luzes da ribalta. Não foi apenas por causa da animação devida às hordas de trabalhadores de construção civil que inundaram durante anos aquelas paragens, mas sobretudo pelo interesse de estudiosos, da comunicação social e de turistas. A Aldeia da Luz era então um corrupio de gentes de todos os cantos que, por vezes, causavam entupimentos no tráfego rodoviário. Por exemplo, o Museu da Luz chegou a ter mais de 20 mil visitantes por mês. Criaram-se muitas expectativas, o imaginário de que a albufeira de Alqueva criaria riquezas sem fim palpitava forte nos corações e cabeças de todos. Depois, bem depois tudo se esfumou com o tempo. «Estamos numa zona com falta de massa crítica e com algumas dificuldades de dinamização, as pessoas em certa medida acomodaram-se e não se conseguiu manter a projecção que a nova Aldeia da Luz teve no início», lamenta Maria João Lança. Mas não foi apenas isso. Faltou também, e sobretudo, a concretização de muitas promessas que os sucessivos Governos foram, ao longo dos anos, fazendo aos luzenses.
«Foi uma grande falsidade que nos fizeram», lamenta-se Ana Pimenta da Silva, uma reformada de 63 anos que tem saudades dos tempos em que «eram todos uma grande família» na antiga Aldeia da Luz. «Só se preocuparam em dar-nos casas, que estão mal construídas e apenas beneficiaram os mais ricos», acrescenta, referindo que «não há empregos e assim os mais jovens abalam todos».
Francisco Oliveira, presidente da Junta de Freguesia da Luz, é particularmente crítico sobre a forma como a aldeia tem sido tratada pelos poderes políticos. E não tem calado a revolta. «Arrependo-me de ter gasto tanto esforço, e dei a cara, para que o processo de migração corresse bem e sinto-me agora enganado. Sentimo-nos todos enganados. Estamos como as laranjeiras que plantaram nas ruas», salienta, fazendo alusão às raquíticas árvores que ladeiam a Rua Francisco Sá Carneiro e que ao fim de cinco anos ainda não ultrapassam, na maior parte dos casos, mais de um metro. Já no seu quarto mandato à frente dos destinos dos luzenses, este social-democrata sente-se cansado do rol de queixas que os seus munícipes se fazem chegar. Não apenas por causa da má construção das habitações, mas sobretudo pelo desleixo de muitas obras públicas da aldeia, que nunca chegaram a ser bem concluídas. Exemplo disso encontra-se no lavadouro público, que nunca funcionou por erros de concepção e que ameaça mesmo, tantas são as brechas, por fazer ruir o miradouro que lhe está por cima. Ou ainda da praça de touros, cujas bancadas estão também mal construídas. E, já agora, da praça central que está agora novamente em obras, porque o piso se levantou todo e não havia mais do que uma oliveira para fazer sombra nas quentes tardes de Verão.
Porém, Francisco Oliveira até já dá de barato estas anomalias. O pior, para ele, são os estrangulamentos económicos por não se terem concretizado as compensações prometidas aquando da construção da barragem de Alqueva. «Prometerem-nos um marina na albufeira, um centro artesanal, a construção de um largo para a feira e mercado, um centro de recolha de uva e azeitona e uma adega, mas nada disto foi feito; sinto que nos roubaram», insurge-se. «No próximo ano, começaremos a produzir azeitona nos novos olivais e não temos hipóteses de escoar, a bom preço, esses produtos que poderiam ser por nós produzidos, possibilitando também a criação de emprego que tanta falta faz para evitar a saída da população», acrescenta. Além disto, também a elaboração dos projectos e consequente apoio para a florestação de algumas áreas, que o Ministério da Agricultura prometeu fazer, ficaram como as águas da albufeira, ou seja, tudo parado. E a finalização de todo o processo de emparcelamento ainda não teve um fim. Para agravar, a zona industrial está também parada, porque não foram feitas as infra-estruturas e, portanto, ninguém se pode lá instalar. «Tive que mudar a minha loja e oficina de electrodomésticos para Mourão, porque aqui não a poderia fazer», refere Francisco Oliveira.
A fuga de população da Aldeia da Luz parece assim quase inevitável e a única coisa que, no futuro, se pode esperar, sem grandes surpresas. Tanto mais por a sangria parecer agora ainda mais galopante. «Entre as últimas legislativas e as recentes presidenciais, perdemos cerca de 30 eleitores num universo de pouco mais de 300», destaca Francisco Oliveira. Uns porque morreram, outros porque tiveram de sair por não terem possibilidades de emprego ou de se fixarem na aldeia. É que, por uma situação ridícula, não é possível construir mais uma casa sequer na Aldeia da Luz, devido a uma indefinição sobre a titularidade dos lotes. «A EDIA tem 50 lotes de terrenos, mas desconheço a razão porque não os vende, e mesmo a Junta de Freguesia, que possui 16, está impedida de os comercializar, uma vez que não os tem ainda registados em seu nome», adianta Francisco Oliveira. «Nos últimos anos já cerca de 20 casais foram viver para Mourão ou Reguengos de Monsaraz por causa disto, ainda mais grave porque tinham filhos», acrescenta.
Em suma, o deserto avança mesmo a passos de galope sobre a Aldeia da Luz, ironicamente por causa de um imenso mar de água doce. E da falta de vontade política.


Inundações (caixa)

A barragem de Alqueva não foi a primeira infra-estrutura hidráulica do país a submergir uma povoação inteira. No início da década de 70, no Gerês, a construção da barragem de Vilarinho das Furnas obrigou ao desalojamento daquela aglomerado populacional. No entanto, não foi construída nenhuma nova aldeia e as pessoas desalojadas foram dispersas por vários locais. Além disso, ao contrário da antiga Aldeia da Luz – que foi completamente demolida –, durante os períodos de estio naquela barragem minhota conseguem-se ver as antigas casas, muros e estradas.
Por todo o Mundo, a construção de barragens implicam, muitas vezes, a retirada de populações das áreas a submergir, por vezes causando tumultos. No Brasil, por exemplo, existe mesmo um organismo denominado Movimento dos Atingidos por Barragens, criado nos anos 90 do século passado – depois de vários projectos terem obrigado ao desalojamento de várias dezenas de milhares de pessoas – que instituiu mesmo o 14 de Março como o Dia Nacional de Luta contra as Barragens.
O número de desalojados por barragens a nível mundial foi, recentemente, aumentado de forma espantosa devido à construção da barragem chinesa das Três Gargantas, concluída em 2006 no rio Yangtze, que obrigou à saída de suas casas de, pelo menos, 2,3 milhões de habitantes.