REPORTAGENS AMBIENTAIS

ESTRAGO DA NAÇÃO

segunda-feira, julho 24, 2006

O MUNDO EMPRESARIAL DAS AUTARQUIAS

Artigo publicado no semanário Expresso em 5 de Outubro de 2001, sobre as empresas municipais, integrando um conjunto de artigos que saíram nas edições seguintes até 17 de Novembro desse ano.

OS MUNICÍPIOS portugueses estão a transformar-se em autênticas «holdings» empresariais, beneficiando de regimes legais menos exigentes do que os impostos aos autarcas. Numa investigação feita pelo EXPRESSO, apurou-se que 269 das 308 câmaras nacionais — ou seja, 88% do total — têm participações directas no capital de empresas públicas e privadas. De acordo com este levantamento, as autarquias nacionais têm interesses económicos em 114 empresas municipais e intermunicipais, 187 sociedades anónimas, 58 sociedades por quotas, 19 instituições bancárias, 35 cooperativas e 21 fundações — num total de 434 entidades.

No total, há 41 autarquias com interesses directos em cinco ou mais entidades de carácter empresarial. De entre estas, destacam-se os municípios do Porto (com 22), Lisboa (17), Braga (15), Vila Nova de Gaia (14) e Aveiro, Loulé e Sintra (10, cada).

Crescimento em flecha

Foi sobretudo nos últimos dois anos que a criação de empresas com capitais autárquicos se generalizou, tomando proporções que o próprio Governo, Tribunal de Contas e Procuradoria-Geral da República desconhecem. Aliás, a Inspecção-Geral das Finanças é a única entidade do Estado que detém algumas informações, mas bastante desactualizadas. Por exemplo, no caso das empresas municipais, a IGF apenas identificou 34.

O «mundo» destas entidades de cariz empresarial — detidas, em parte ou na totalidade, pelas autarquias — é extraordinariamente complexo. No caso das empresas municipais, a seu fomento é fruto de uma lei de Setembro de 1998, que permite às autarquias ou respectivas associações a criação de empresas «para a exploração de actividades que prossigam fins de reconhecido interesse público», podendo, assim, «delegar poderes respeitantes à prestação de serviços públicos».

Face a este diploma, aquilo que antes era uma excepção — ou seja, empresas com capitais públicos substituírem os departamentos municipais na prestação de serviços públicos — passou a ser uma regra. Desde 1999 foram criadas empresas municipais com diversos fins, desde construção de habitações até gestão de equipamentos e actividades desportivas, culturais e de animação, passando pelo sector do saneamento básico, industrial e turístico.

Em relação às sociedades anónimas, a sua génese é mais remota, mas ganhou um novo incremento sobretudo a partir da criação da Parque Expo (no âmbito da Expo-98, em Lisboa), que viria a servir de modelo. O Ministério do Ambiente deu um importante contributo: até ao momento, constituiu 18 sociedades anónimas com as autarquias para o Programas Polis e 25 para a gestão de sistemas multimunicipais de saneamento básico.

De resto, as sociedades anónimas — quase sempre em parceria com privados — são, regra geral, entidades com fins muito diversificados e complexos, o mesmo se aplicando, aliás, às sociedades por quotas, cooperativas e fundações municipais.

Uma moda empresarial

Nem sempre são perceptíveis as razões que levam as autarquias a optar por uma empresa municipal, uma fundação, uma sociedade anónima ou uma por quotas. Parecem ser sobretudo razões casuísticas de ordem política e pessoal que orientam a escolha por um ou outro modelo, sobretudo quando as entidades foram criadas por iniciativa directa das autarquias. «Teremos de clarificar algumas normas e regras da lei de criação destas entidades», diz José Augusto Carvalho, secretário de Estado da Administração Local, governante que admite desconhecer o panorama geral do universo empresarial autárquico.

Mas, nos últimos anos, as empresas municipais tornaram-se uma autêntica moda para as câmaras. Com as suas actividades sujeitas às apertadas regras de contratação de pessoal e de serviços e sob o controlo do Tribunal de Contas (TC) e da Inspecção-Geral da Administração do Território (IGAT), os municípios têm aderido, de uma forma quase entusiástica, a este novo modelo.

Antes de 1998, existiam menos de uma dezena de empresas públicas — como, por exemplo, a EMEL, a empresa municipal de estacionamento de Lisboa — que exercia actividades autárquicas. Com a publicação da lei em meados daquele ano, as empresas municipais não têm parado de nascer.

Por exemplo, em Novembro do ano passado, num seminário realizado em Loures, estavam inventariadas 67 daquelas empresas. Actualmente, segundo o levantamento do EXPRESSO — com base em diversas consultas («Diário da República», Tribunal de Contas, IGF e Direcção-Geral dos Registos e Notariado) — estão já criadas, ou em fase de constituição, 107 empresas municipais e mais sete dinamizadas por associações de municípios.

Esta forte adesão tem razões que os próprios autarcas não escondem. As empresas municipais não necessitam de visto prévio do Tribunal de Contas sempre que realizam obras — evitando assim obstáculos legais para a adjudicação sempre que as obras ou serviços contratados tenham um custo superior a 25% do preço-base do concurso.

Também ao nível da contratação, as empresas municipais não estão sujeitas às regras da Administração Pública, podendo optar pelos contratos individuais de trabalho sem qualquer limitação orçamental. Na constituição do conselho de administração não existem também restrições em termos dos nomeados e respectivas remunerações.

A lei também possibilita que as autarquias celebrem contratos-programa com as suas empresas municipais sempre que estas «prossigam objectivos sectoriais, realizem investimentos de rendibilidade não demonstrada ou adoptem preços sociais».

Regime despenalizador

Estas situações podem vir a resultar — e, em alguns municípios, já existem fortes indícios — na transferência quase absoluta das competências dos autarcas para o sector empresarial.

E com uma «vantagem» subliminar: é que, de acordo com a lei, são as próprias empresas que respondem civilmente pelos actos ou omissões dos seus administradores. Situação que já não acontece em relação aos autarcas que podem ter que assumir responsabilidades financeiras e políticas por actos praticados à frente dos respectivos municípios.

Além disso, as empresas municipais não são abrangidas pelas auditorias da IGAT e da IGF. O Tribunal de Contas só pode realizar auditorias contabilísticas «a posteriori», mas nos últimos quatro anos apenas foram feitas a quatro destas empresas.

Estas empresas municipais também podem constituir uma forma de «privatização encapotada» dos serviços camarários. Com efeito, na maior parte dos casos, a sua criação mais não foi que a transferência de competências — que nem sempre significa extinção — de serviços ou departamentos autárquicos, com os correspondentes funcionários.

Em alguns casos, esta também é uma forma dos privados entrarem no capital das empresas municipais. Actualmente já existem quase duas dezenas de empresas municipais e intermunicipais que têm participação de privados e nada impede que, através de aumentos de capital ou alienação, as autarquias acabem por passar a deter uma posição minoritária. Nessas situações, as empresas teriam unicamente de abandonar a denominação «municipal».

Quanto às sociedades anónimas e por quotas, o seu regime é ainda mais permissivo em relação ao controlo de dinheiros públicos, já que estas se assumem como se se tratasse de uma empresa privada com fins lucrativos.