REPORTAGENS AMBIENTAIS

ESTRAGO DA NAÇÃO

domingo, novembro 06, 2005

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A FEBRE DAS EÓLICAS
- Grande Reportagem, 5 de Novembro de 2005

De enteado, a energia dos ventos passou a filho predilecto. O Governo está apostado em construir cerca de uma centena de parques eólicos nas montanhas do país para produzir electricidade limpa. Mas apesar das vantagens ambientais, existem limitações técnicas e os aumentos dos consumos eléctricos podem atenuar os seus benefícios económicos. E entretanto, como não há planeamento, o país arrisca-se a ficar enxameado de imponentes ventoinhas.


A ventura vai guiando nossas causas melhor do que acertáramos desejar; porque vês ali, amigo Sancho Pança, onde se descobrem trinta ou mais desaforados gigantes, aos quais penso dar batalha e a todos tirar a vida, com cujos despojos começaremos a enriquecer, que esta é boa guerra, e é grande serviço de Deus arrancar tão má semente de sobre a face da terra.
in O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Miguel de Cervantes



Há menos de uma década, se D. Quixote tivesse percorrido terras de Portugal porventura teria esporeado o seu Rocinante e, de lança em riste e adaga em punho, aprestar-se-ia a dar batalha aos modernos moinhos de vento que campeavam pelas serranias lusitanas. Mesmo escaldado pelo insucesso da sua luta eólica em La Mancha, quatro séculos antes, esta ventura lusitana parecer-lhe-ia mais guinada ao sucesso. Afinal, em 1998, nenhum dos cinco parques eólicos em Portugal tinha tantos moinhos quanto os que o engenhoso fidalgo desejou tirar a vida em honra de Deus e da sua amada Dulcineia; se bem que, em abono da verdade, pouco enriqueceria com os despojos daquela má semente. Portugal então apenas possuía 89 desaforados gigantes com mãos de pá.

Porém, se fosse hoje, a afoiteza de D. Quixote de La Mancha para intentar tão temerária cruzada seria menor. Não que Sancho Pança o conseguisse dissuadir que, afinal, os desaforados gigantes eram tão-somente aerogeradores. Não que recuasse porque os moinhos de vento já são 536, distribuídos por oito dezenas de locais. A sua vontade bélica seria sim, porventura, acalmada pelo primeiro-ministro José Sócrates que lhe diria, por certo, que implantar aerogeradores sobre a face da teria é uma boa guerra e um grande serviço de Deus.

Durante anos, exceptuando as barragens hidroeléctricas – cujos impactes ambientais acabam por ser significativos nos rios e na promoção da erosão costeira –, a produção de energias por fontes renováveis, sobretudo a eólica, era vista em Portugal quase com desdém. Os seus defensores eram reputados de líricos ecologistas, mesmo no estrangeiro. Mas as coisas mudaram e em alguns países aplicação da energia eólica passou a ser um sinal de modernidade, de evolução tecnológica e de poupança de recursos económicos. Em 2003, na Dinamarca já 12% da electricidade provinha do vento. Em Portugal, porém, mesmo sendo um país ventoso, não chegava a atingir 1%.

Enquanto os consumos de electricidade em Portugal se mantiveram relativamente baixos em comparação com os países europeus, o nosso país não se preocupou muito em diversificar as energias renováveis, como a eólica, a fotovoltaica, a biomassa e o biogás. Afinal, até tinha sido beneficiado pela Natureza: a água dos rios permitia a produção de electricidades nas barragens. Contudo, com o incremento da electrificação do país, da industrialização e da melhoria do conforto, a hidroelectricidade deixou de ser suficiente para suprir as necessidades. E o país virou-se cada vez mais para a solução mais fácil, mas mais onerosa: as centrais térmicas, primeiro a fuel e a carvão, mais recentemente a gás natural.

Com isto as importações de combustíveis fósseis foram crescendo, os consumos também, a poluição atmosférica e as emissões de dióxido de carbono idem. Tudo aumentou, menos a eficiência energética. Portugal é actualmente um dos países europeus que mais desperdiça energia. Chegou-se mesmo ao ponto de se gastar actualmente mais 10% de energia para produzir a mesma quantidade de riqueza de há uma década atrás. Não admira: afinal, basta olhar para os dois últimos anos. O produto interno bruto estagnou, mas o consumo de electricidade cresceu 12%!

Ainda por cima, os sucessivos Governos deixaram-se ficar reféns de uma política energética baseada no estabelecimento de contratos ruinosos para as finanças públicas e gravosas para os consumidores. «Até agora, o Estado garantia a compra da energia às empresas das centrais térmicas e assumia as variações dos preços dos combustíveis; logo, as empresas lucravam sempre, independentemente do mercado do petróleo e do carvão. E quem acabava por pagar tudo isto era o consumidor», salienta Carlos Pimenta, ex-secretário de Estado do Ambiente e actual empresário de energias renováveis. Uma situação que, segundo Miguel Barreto, director-geral da Energia, irá ser alterada em breve com o término dos actuais contratos e a aplicação das normas do mercado ibérico de electricidade (MIBEL). No futuro, nenhuma central térmica terá a garantia de venda da energia para o território português. Ao invés, as empresas gestoras de parques eólicos passarão a usufruir de um regime que lhes permitirá sempre vender a sua energia, independentemente da quantidade, o que acaba por ser um benefício extremamente aliciante.

Até chegar a esta etapa foi, no entanto, necessário percorrer um espinhoso caminho. A grande ajuda veio da União Europeia com a aprovação da directiva comunitária sobre energias renováveis – que obriga até 2010 que os Estados-membros produzam 39% da electricidade sem ser pela queima de combustíveis fósseis. Mais decisivo ainda foi a bonificação económica – a chamada «tarifa verde» – que passou a ser atribuída às energias renováveis: a Rede Eléctrica Nacional começou a assegurar um preço mais vantajoso à energia «limpa» comparativamente com a «suja» proveniente das centrais térmicas, chegando mesmo a cerca de 3 euros por KWh. Estavam assim reunidas as condições económicas para a energia eólica ir de vento em popa. Mesmo os grandes grupos empresariais começaram a olhar as renováveis como outros olhos, com os olhos de negócio lucrativo.

Porém, a instabilidade política em Portugal e alguns «lobbies» da energia térmica «boicotaram» durante alguns anos uma efectiva promoção das energias renováveis. «Em três anos tivemos seis secretários de Estado da Energia que, com excepção do professor Oliveira Fernandes em finais de 2001, não tinham sensibilidade para estas questões. Quando ficavam sensibilizados, já estavam de saída», lamenta Carlos Pimenta. Além disso, é bom recordar que nos anteriores Governos sociais-democratas – entre 2002 e inícios de 2005 –, houve uma clara aposta em travar as energias renováveis. Numa entrevista ao Diário de Notícias em Fevereiro de 2004, o então secretário de Estado do Ambiente, José Eduardo Martins, defendia mesmo que a «produção (de electricidade por fontes renováveis) não é economicamente competitiva com as fontes convencionais». E mais tarde, o ministro da Economia, Álvaro Barreto, haveria de conceder direitos de expansão da produção eléctrica por centrais térmicas, que poderia ter posto em causa a expansão das energias renováveis, num processo de contornos nebulosos que haveria de ser suspenso pelo actual Governo.

Mesmo apesar destes obstáculos, a energia eólica foi crescendo, alimentada pelos preços bastante apelativos entretanto aplicados. No final do ano passado já estavam em funcionamento aerogeradores com uma potência total de 616 MW, um crescimento mais de cinco vezes em relação a 2001 – embora seja conveniente salientar ser fácil aumentar percentualmente valores iniciais bastante baixos. Porém, este foi apenas um pequeno sinal. De acordo com a Direcção-Geral de Geologia e Energia (DGGE) até Junho deste ano estavam já licenciados 2325 MW de potência eólica, sendo previsível que dentro de dois anos já estejam em funcionamento pelo menos 2000 MW ligados ao sistema eléctrico nacional.

Além disto, no âmbito do Programa de Investimentos em Infra-Estruturas Prioritárias, o Governo prometeu recentemente um investimento de 2530 milhões de euros para a construção de parques eólicos, associado a um cluster tecnológico para a construção de aerogeradores. Contas feitas, contabilizando os vários concursos que serão abertos para a construção de mais parques, Portugal deverá assim atingir no início da próxima década cerca de 5000 MW de potência eólica, ou seja, cerca de 30% da potência total para a produção de electricidade no país.
Contudo, refreie-se esta exaltação. Jamais os 30% de potência eólica corresponderão a 30% da electricidade produzida. Muito longe disso. A razão é simples: um aerogerador perde em produtividade em comparação com outras tecnologias mais convencionais, como a térmica e a hídrica. Por exemplo, raramente se conseguirá em Portugal que 1 MW de eólica produza anualmente mais do que 1,5 GWh (a energia suficiente para manter acesas cerca de 1700 lâmpadas de 100 W durante um ano), enquanto que, em ano médio, 1 MW de uma central hidroeléctrica chega a produzir o dobro e 1 MW de uma central térmica quase três vezes mais. Ou seja, na verdade, 5000 MW de potência eólica – que correspondem, pelo menos, a 2500 aerogeradores – produzirão sensivelmente o mesmo que a central térmica do Ribatejo (1200 MW de potência). Claro está que sem importação de gás natural nem qualquer emissão de poluentes, o que não é nada irrelevante. «A aposta nas energias renováveis vai poupar-nos imenso dinheiro quando for aplicados os normativos do protocolo de Quioto», refere Carlos Pimenta, tendo em conta que cada tonelada de dióxido de carbono emitida a mais do que o plafond estabelecido custará entre 20 e 30 euros.

A menor produtividade unitária de um aerogerador não se deve tanto a razões tecnológicas, mas sobretudo ao fornecimento de «combustível». Se uma central térmica tem, sempre que se queira, combustível disponível (carvão, gás natural ou fuel) e se a maioria das centrais hidroeléctricas conseguem gerir as descargas de água ao longo do dia e do ano, com os parques eólicos tal não acontece. Se não há vento, não há electricidade. Além disso, por norma, um aerogerador apenas funciona, nos melhores locais, em 25% das horas do ano, mas sem garantias de que, em determinada hora, esteja a colocar electricidade na rede. Ora, esta situação coloca uma limitação bastante grande num sistema eléctrico nacional, pois a produção de electricidade tem de ser sempre igual ou superior ao consumo instantâneo. Caso contrário, sucedem os famosos «apagões» gerais.

Este acaba por ser, aliás, um dos maiores óbices técnicos para uma expansão ilimitada dos parques eólicos, segundo a Rede Eléctrica Nacional, a entidade estatal que compra a electricidade aos produtores e, por norma, a disponibiliza depois para a EDP Distribuição vendê-la aos consumidores. «Os organismos internacionais aconselham que o sistema eléctrico de um país não deve ter mais de 30% da sua potência instalada baseada em fontes eólicas, pois apenas se tem a certeza de dispor, a todo o momento, de 3 a 4% da sua capacidade de produção eléctrica», salienta Artur Lourenço, consultor da Rede Eléctrica Nacional. Este responsável acrescenta outro perigo: «Os aerogeradores são muito sensíveis em caso de quebras de potência numa central térmica, pois podem entrar em ‘colapso’ sucessivo, originando um apagão». Contudo, Miguel Barreto, director-geral da Geologia e Energia, adianta que, no âmbito do concurso aberto pelo Governo, «existem especificações técnicas para que os aerogeradores aguentem essas quebras e continuem a funcionar».

Delgado Domingos, professor catedrático do Instituto Superior Técnico, admite que a eólica tem estas limitações, mas advoga que a sua função é sobretudo fundamental como complemento da produção energética. «Se se instalarem pequenas centrais de cogeração, que têm uma rápida capacidade de meter electricidade na rede quando não existe vento, essas limitações não se colocam», defende. Além disso, salienta este especialista, «uma das grandes vantagens dos parques eólicos é a de se aproveitar a electricidade que produzem para bombear água dos contra-embalses para as barragens com centrais hidroeléctricas, de modo que estas aumentem a sua produção de electricidade em períodos de maior procura. Isso já se faz e pode fazer-se com maior intensidade». Por sua vez, Carlos Pimenta desconsidera os receios da Rede Eléctrica Nacional em relação à «imprevisibilidade» dos parques eólicos. «Existem sistemas meteorológicos que estabelecem previsões muito precisas, dando assim garantia da quantidade de electricidade que os parques eólicos conseguem obter». O antigo secretário de Estado do Ambiente acredita mesmo que com o avanço tecnológico seja possível a criação de «pilhas» que armazenem a electricidade dos aerogeradores, de modo a colocá-la na rede quando necessário.

No entanto, indiferente a estas questões, o Governo está apostado em «vender» a ideia de que a energia do vento é quase o salvador da Pátria. O primeiro-ministro José Sócrates, imbuído do seu conhecido espírito de missão – do mesmo que prometeu revolucionar o urbanismo com o Programa Polis, cujos relógios «countdown» pararam no tempo –, apregoou em Julho aos sete ventos que a dependência energética do país em relação ao estrangeiro quase terminaria somente com a instalação de parques eólicos. Optimismo em demasia, por certo. Ou então sinal de que se espera um milagre perante o imparável aumento do preço do petróleo e a situação de seca que está a afectar profundamente a produção de hidroelectricidade.

Com efeito, a produção das barragens no ano hidrológico que terminou em Setembro quedou-se em um terço daquilo que se regista em ano médio. Isto significou que em vez de cerca de 25% do consumo de electricidade ter vindo da água – como seria expectável –, se conseguiu apenas cerca de 6%. Ora, como ainda por cima o país continua a ser pouco dado a poupanças – este ano, até Agosto, o consumo de electricidade aumentou 6,1% em comparação com o período homólogo de 2004 –, tal implicou que as centrais térmicas tiveram de ser reforçadas de combustível fóssil importado. Para ser mais preciso, em cerca de 30%!

Mas mesmo em ano hidrológico médio, o contributo da energia eólica pode vir a manter-se a níveis pouco relevantes. De facto, caso os aumentos dos consumos se mantenham ao ritmo dos últimos anos, a electricidade que venha a ser produzida pelos novos aerogeradores a construir até 2012 não chegam para cobrir esse incremento. Ou seja, as centrais térmicas poderão vir mesmo a aumentar ainda mais as emissões de poluentes, designadamente dióxido de carbono.
Além disto, torna-se importante realçar que a energia eólica em nada influirá nas importações de petróleo, como o próprio director-geral da Energia admite, pois o grosso dos derivados deste combustível destina-se sobretudo para o sector dos transportes. E Portugal praticamente não tem veículos eléctricos. «Aí ainda há muito trabalho a ser feito, mas algumas medidas deveriam ser já aplicadas, como a introdução de biocombustível (proveniente de óleos vegetais) na gasolina», refere Carlos Pimenta, acrescentando que «sem qualquer adaptação nos veículos, a gasolina e o gasóleo poderiam receber uma mistura entre 5% e 10% de biocombustível com grandes vantagens económicas».

Por outro lado, apesar deste incremento da «electricidade limpa» por via do crescimento dos parques eólicos, não está previsto o encerramento de nenhuma central térmica, sobretudo daquelas que queimam fuel, o combustível mais poluente. É mesmo provável que sejam construídas mais, sobretudo recorrendo ao gás natural, sobretudo porque o MIBEL permitirá que Portugal tenha vantagens económicas em produzir mais electricidade do que aquela que necessita. Porém, Miguel Barreto está optimista e considera que as centrais a fuel poderão ter os dias contados, por deixarem de ter garantia de venda da electricidade. Mas a EDP não tem a mesma opinião. A maior empresa eléctrica nacional diz mesmo que a ser encerrada qualquer velha central – como a de Setúbal, que é uma das térmicas mais poluentes da Europa –, isso se deverá apenas ao «aparecimento de novas centrais de ciclo combinado, bem como ao seu fim da vida técnico». Na verdade, caso não haja prudência por parte das autoridades nacionais, o MIBEL poderá implicar um «dumping» ambiental: ou seja, a Espanha passa a preferir comprar parte da electricidade que necessita a Portugal, fazendo assim diminuir as suas emissões poluentes.

Existe ainda um outro aspecto controverso em relação aos parques eólicos. Embora considerados não poluentes, os aerogeradores «sujam» a paisagem, sobretudo por os locais mais apetecíveis serem as cumeadas nas zonas do interior. Além disso, a abertura de estradas de acesso e a implantação de linhas de alta tensão causam também significativos impactes ambientais. Por isso mesmo, em vários países, os parques eólicos estão a sofrer já forte contestação, mesmo nos meios ambientalistas. Por exemplo, na Escócia, o célebre botânico David Bellamy tem liderado uma campanha contra a implantação de aerogeradores em alguns espaços rurais. Noutros países têm sido impostas limitações e, por exemplo, as autoridades da vizinha Extremadura espanhola já a estabeleceram zonas ecológicas onde não se devem instalar.
No entanto, em Portugal esta questão quase não é aflorada, tanto mais que existe a percepção de que as ventoinhas até transmitem um ar bucólico. Mas uma coisa é um parque eólico aqui, outro acolá; uma coisa são 536 aerogeradores, outra serão cerca de 3000 dentro de meia dúzia de anos, quando então estiverem instalados todos os projectos.

Ainda recentemente, Pacheco Pereira – insuspeito de ser um ambientalista fundamentalista – lançava os seus receios no blog Abrupto. Defendendo ser «inteiramente a favor da energia eólica», o ex-deputado social-democrata profetizava: «Qualquer coisa do que conheço do meu país, me diz que daqui a anos não haverá cumeadas livres de ventoinhas», lançando. Mais adiante, questionava: «Não deve aqui também haver um esforço de ordenamento antes de ser tarde de mais? Ou já é tarde de mais?».

As preocupações de Pacheco Pereira fazem todo o sentido. E a qualquer pessoa que se desloque, por exemplo, às regiões montanhosas do interior dos distritos de Coimbra, Viseu e Vila Real: já quase é impossível vislumbrar o horizonte sem deparar com imponentes aerogeradores encimando todo e qualquer cume. Gostar ou não gostar da paisagem com as ventoinhas é sempre subjectivo; quem não goste rume para outros locais. Mas o caso mudará de figura se, quem não goste, deixar de conseguir encontrar sequer um local sem ventoinhas. Convinha, portanto, alguma prudência; talvez, como escreveu Pacheco Pereira, um esforço de ordenamento antes de ser tarde de mais. Antes que nos arrependamos.

Contudo, não é isso que está a acontecer. Em Portugal, embora os planos de ordenamento estabeleçam onde se pode ou não construir uma urbanização, em relação aos projectos de energia qualquer zona pode ser escolhida. E se até recentemente as áreas protegidas – que ocupam 7% do território do país – estavam a salvo dos parques eólicos, a situação pode vir a alterar-se, uma vez que se abriu um precedente com a concessão de uma licença para a instalação de aerogeradores no Parque Natural da Serra de Aire e Candeeiros. Esta hipótese é bastante provável sobretudo porque desde o início do ano passado o Instituto de Conservação da Natureza deixou de ter parecer vinculativo em relação a projectos energéticos dentro das suas áreas de jurisdição. E convém salientar que as zonas mais ventosas em Portugal são, regra geral, montanhas integradas em áreas protegidas.

Humberto Rosa, secretário de Estado do Ambiente, garante que «os locais propostos pelo consórcio vencedor serão depois alvo de uma avaliação de impacte ambiental. Poderemos ‘chumbar’ alguns». Mas, nas palavras do governante, existe uma grande abertura para que haja ventoinhas em plenas áreas protegidas. «A conservação da natureza é apenas um aspecto a ter em consideração numa decisão do Ministério do Ambiente», advoga Humberto Rosa. A posição do Ministério do Ambiente mostra algum incómodo em «chumbar» projectos em áreas protegidas, porque as pressões das autarquias destas zonas são bastante forte para receber aerogeradores e os Governos jamais conseguiram compensar as comunidades das áreas protegidas por promoverem a conservação da natureza. As razões das pressões são simples e económicas: por lei, 2,5% da venda de electricidade entram nos cofres das autarquias, e muitos dos terrenos escolhidos para parques eólicos pertencem aos municípios ou baldios, que recebem assim um aluguer. É um bom «negócio» para todos... mesmo se o ambiente perde.

Aliás, as preocupações de âmbito ecológico estão mesmo ausentes nas normas do concurso público aberto pelo Governo e o Ministério do Ambiente tem um papel quase irrelevante. Com efeito, nos critérios de avaliação das candidaturas é apenas valorizado o impacte económico, a criação de um cluster industrial, a gestão técnica do sistema e o apoio à inovação. Caso um consórcio seja «ambientalista», e tenha o cuidado de não propor qualquer parque numa área protegida, nada ganha com isso. E não se diga que é coisa impossível. «Pode-se perfeitamente esgotar o potencial eólico sem entrar dentro das áreas protegidas», assegura Carlos Pimenta. «Por mim, todos os projectos que lidere não serão feitos aí, mas essa é uma opção minha», acrescenta. Mas, convém recordar mais uma vez, que Carlos Pimenta não é governante. Nem um empresário típico. Como em muitas outras campanhas feitas apenas na base da paixão, os resultados desta febre das eólicas ver-se-á apenas dentro de anos. Se algo correr mal, resta-nos lamentar uma paisagem perdida.