REPORTAGENS AMBIENTAIS

ESTRAGO DA NAÇÃO

quinta-feira, agosto 16, 2007

A PRAIA MAL-AMADA

Artigo publicado na revista NS de 11 de Agosto de 2007 - Direitos reservados

Algo que é preservado por lei ambiental – no conhecido dicionário organizado por António Houaiss, assim reza uma das acepções para o vocábulo protegido. O lexicógrafo brasileiro, por certo, não cometeu nenhum erro, mas garantidamente estava algo desfasado em relação à praxis ambiental lusitana. Talvez ele soubesse que áreas portuguesas, sujeitas a leis ambientais, existem – e muitas até. Porém, do papel com que são feitas as leis ambientais até à efectiva protecção vai uma grande distância. E maior ainda no caso da sua preservação.

Exemplos, para nossa infelicidade, abundam. Sabe-se, por exemplo, que as áreas protegidas em Portugal ardem mais do que as zonas não protegidas. Sabe-se também que em algumas – como na serra da Arrábida – as autorizações para construção de vivendas são mais fáceis de obter do que em zonas sem qualquer estatuto de conservação. E sabe-se ainda que o alegado interesse público da Conservação da Natureza facilmente se manda às malvas quando o Governo aprova um qualquer dos inúmeros e famigerados PIN – Projectos de Interesse Nacional.

Neste contexto, acaba assim por não ser uma surpresa que a Praia do Amado, em pleno Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, em vez de ser uma bela praia selvagem mais pareça uma bela praia de selvagens. Não surpreende, repete-se, mas irrita – muito, por sinal. E sobretudo porque nem sequer está em causa quaisquer aberrações urbanísticas do tipo Quarteira, Armação de Pêra ou Praia da Rocha. Na verdade, nesta praia junto à povoação da Carrapateira, no concelho algarvio de Aljezur, não se vislumbram prédios ou vivendas em redor nem qualquer campo de golfe. Nesse aspecto, embora apetites haja muitos, (ainda) está livre. O que choca nesta praia é, tão-só – e já é excessivo –, o desmazelo, a perniciosa incúria, o desleixo ofensivo com que o Ministério do Ambiente, ao longo dos anos, tem votado aquela faixa costeira. Uma linha de praia e mar que poderia – ou melhor, tinha a obrigação – de ser modelar por possuir condições naturais únicas. Por ser, enfim, uma praia numa área protegida.

A Praia do Amado é, bastando olhar os idílicos postais, um dom da Natureza, com o seu extenso e branco areal, as águas martinhas bravias mas convidativas, rodeada de falésias e com um pequeno ilhéu ao largo. Um cenário que delicia os sentidos. Delicia, porém, se os olhos estiverem tapados para o evitar a visão do amontoado caótico de carros que enxameiam as falésias. Ou se o nariz for tapado para não captar o odor que exala de um antigo apoio de praia, demolido há alguns anos, mas que ao bom estilo lusitano manteve as paredes ao alto. Ou se os pés não se importarem de calcar um excremento canino. Ou ainda se a depilação tiver sido bem feita e, portanto, não se eriçarem os pelos perante o risco de se levar com uma prancha de surf numa canela enquanto se toma banho – tanto mais que existem mais surfistas do que banhistas.

«Estamos perante uma praia desprotegida», insurge-se Manuel Marreiros, presidente da autarquia de Aljezur, um independente eleito nas listas do Partido Socialista, que durante grande parte dos 17 anos que leva à frente da autarquia esteve impotente para solucionar os problemas que se foram avolumando. Por uma simples razão: por estar integrada numa área protegida, a praia do Amado está a cargo do actual Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade (ICNB). E não fez nem deixou fazer. Não se diga, contudo, que foi por falta de tempo. A faixa litoral onde se integra a Praia do Amado até foi a primeira que teve aprovado um Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC), corria o ano de 1998. Porém, tudo ficou no papel. Nem um cêntimo foi investido. O ICNB sempre esteve nas lonas e não permitia que a autarquia metesse o bedelho. Melhor sorte, portanto, tiveram as praias que não estão em áreas protegidas, já que quase todas receberam remodelações profundas. «Durante anos, o Parque Natural foi insensível às nossas propostas de reabilitação desta praia; arrogava-se apenas do poder que queriam impor como tutelar, mas nada fazendo de concreto, a não ser dar pareceres», lamenta-se o presidente da autarquia.

Enquanto a Praia do Amado não caiu no goto, os males não foram exagerados. Contudo, nos últimos anos, a sua «descoberta» aumentou a procura para níveis elevados. Insustentáveis. Hoje, em qualquer dia estival, centenas de pessoas chegam, sempre de carro, ao areal. Nem faltam VIPs, como o ministro da Economia, Manuel Pinho, o ex-primeiro-ministro, António Guterres, ou o vereador de Lisboa, Sá Fernandes, além de conhecidos músicos, actores e músicos. E, com isto, perante tanta procura, foi-se recorrendo ao improviso e ao provisório condenado a ser definitivo. Assim, os dois bares existentes são temporários, mal localizados e desengraçados. A segurança é quase inexistente – para uma praia de quase um quilómetro existe um nadador-salvador. As instalações sanitárias são escassas e muito precárias. Mesmo assim muito por obra da autarquia – que, por exemplo, contrata um nadador-salvador e procede à limpeza possível da praia. E se não existem parques para os carros, muito menos há lugar próprio para as inúmeras caravanas.

Para completar o ramalhete, as dezenas de surfistas, com as respectivas escolas ad hoc sem lei nem roque, «convivem» perigosamente com os banhistas, sem que haja autoridade alguma que discipline tudo isto. Milagres não existem e, assim sendo, uma praia que poderia ser paradisíaca, numa área sujeita a um regime especial de conservação, não reúne sequer as condições mínimas para hastear a Bandeira Azul.

Perante este estado de coisas, o Ministério do Ambiente acabou por reagir: passou a batata quente para a edilidade de Aljezur. E a factura, que será pesada, mesmo recorrendo aos fundos comunitários: cerca de 800 mil euros, sem incluir eventuais expropriações de terrenos. «Através de um protocolo, a autarquia passará a ser a executora das obras previstas no POOC, embora estejamos a tentar alterar algumas das medidas, designadamente em relação aos locais de estacionamento e dos apoios de praia», refere Manuel Marreiros, que espera não ter de enfrentar problemas levantados pelo Parque. «Desejamos renaturalizar a actual zona de estacionamento, vedar o acesso aos carros pela estrada longitudinal à praia e retirar os mantos de chorões (uma espécie invasora)», acrescenta o presidente de Aljezur, que espera não ter de enfrentar mais as intransigências do Governo, que são longas e, aparentemente, perenes.

De facto, apesar de o Estado fornecer patentes demonstrações de desleixo na gestão de uma simples praia em área protegida, tem sido paradoxalmente zelosa na defesa de zonas sem qualquer interesse ambiental. É o caso do local onde está projectado um hotel de quatro estrelas. O equipamento – que serviria para colmatar uma falta crónica de alojamentos oficiais das praias em redor da Carrapateira – tem sido recusado pelo Parque Natural desde há quase uma década. Não é por ficar em cima de uma falésia. É simplesmente por estar, in extremis, dentro do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. E apenas isso, porque o hotel estará a cerca de seis quilómetros da linha de costa, junto ao aglomerado de Aljezur e paredes-meias com o polidesportivo e das piscinas da vila. «Do outro lado da estrada já nem se está dentro da área protegida», afirma Manuel Marreiros, enquanto mostra o descampado, de vegetação rasteira e rarefeita, da zona para onde está projectado o empreendimento turístico.

Este processo, que se arrasta há anos, é também paradigmático da actual situação de (des)ordenamento urbanístico de Portugal, mesmo havendo planos. De facto, enquanto alguns Projectos de Interesse Nacional são aprovados, apadrinhados e apaparicados pelo Governo mesmo não estando incluídos em plano director municipal, no caso deste hotel em Aljezur até está previsto naquele instrumento de ordenamento. Mas não pode avançar. «O plano do Parque Natural não autoriza o hotel naquele local, embora a comissão de acompanhamento por parte da Administração Pública quer desse plano quer do nosso PDM tenha sido quase a mesma», salienta Manuel Marreiros. E mais ainda: o PDM de Aljezur foi ratificado três meses depois do plano da área protegida, sem qualquer tipo de entrave. Ou seja, dois planos contraditórios – o que, em cereta medida, é infelizmente comum em Portugal. «Estamos perante um imbróglio que custa a chegar ao fim», critica o presidente da edilidade de Aljezur, que aguarda agora que haja uma revisão do plano de ordenamento do Parque Natural para fazer incluir o desejado hotel. O problema é que o dito plano deveria estar concluído em 2005, mas já estamos em 2007.

Em suma, em contraponto com o que se passa na Praia do Amado, eis um caso que mostra à saciedade a peculiar arte de preservar a Natureza em Portugal e de promover um turismo sustentável.