Não tenho um sítio exclusivo, depende com quem almoce.
Esses restaurantes já foram inspeccionados pela ASAE?
Há cerca de oito meses decidimos fazer, nos estabelecimentos em redor da ASAE e das direcções regionais, acções de fiscalização, para obviar críticas. E fizemo-las com brigadas mistas, ou seja, não apenas com inspectores locais.
E o grau de infracções foi diferente do que, por hábito, encontram noutras zonas.
Não. O grau foi sensivelmente semelhante, na casa dos 20%.
Houve já algum restaurante que frequentava muito onde se tenha encontrado uma situação particularmente grave?
Sim, num caso que até foi bastante noticiado: o restaurante Galeto [na Avenida da República, em Lisboa], onde durante muitos anos comi, porque estava muito próximo do meu então local de trabalho [Direcção-Geral de Viação]. Não estava em causa a qualidade e manipulação dos produtos, mas como a acção de fiscalização encontrou situações de más condições higieno-sanitárias no controlo de pragas foi encerrado temporariamente.
Já lá voltou depois de ter sido reaberto?
Ainda não, mas não tenho problemas em lá regressar.
O caso do Galeto foi dos poucos estabelecimentos encerrados por imposição da ASAE que se tornou público. Qual a razão para isso não ser regra?
Enquanto os processos estão em cursos encontram-se em segredo de justiça e nós não podemos divulgar. Nessa situação ficou-se a saber porque é um restaurante que sempre estivera ininterruptamente aberto. E como era também frequentado por jornalistas, a sua curiosidade fez com que se soubesse a causa desse encerramento. Não vemos inconveniente, se houver um compromisso com as associações do sector, que isso seja feito, se for útil para o consumidor. Mas talvez seja mais útil que seja feita pela positiva, que os operadores visitados pela ASAE o digam. Se estiverem bem até podem publicitar.
A ideia de que uma tasca ou casa de pasto pode ter piores condições higieno-sanitárias do que um restaurante de qualidade é mesmo verdadeira?
É evidente que sim, até pelo tipo de confecção que se faz. Quem está a fazer bifanas produz um grau mais elevado de vapor e de gordura do que quem está a fazer um peixe grelhado com todas as condições. As casas de petiscos ou os restaurantes chineses são grandes produtores de gorduras e se não houver uma grande atenção à limpeza quase diária acumula-se matéria orgânica e poeiras, que levam a condições de degradação. Mas também temos estabelecimentos de petiscos com boas condições. Eu acho que estes problemas têm mais a ver com a formação dos operadores. Muitas das tascas e casas de petiscos têm pessoas já com alguma idade, que não se adaptaram a um novo fenómeno de qualidade imposto pelas normas comunitárias. E por essa falta de formação e por o negócio não ter lucros elevados acabam por ter dificuldades em cumprir.
E nesses casos sociais mais complexos, como age a ASAE?
Pode ter de actuar com uma multa ou mesmo com o encerramento. Os nossos inspectores são humanos, mas a questão será sempre saber se deveremos ter uma relação pessoal ou institucional. E é por demais evidente que, independentemente de se gostar ou não de se aplicar uma sanção, tem de se fazer a inspecção à luz dos regulamentos, caso contrário deixa de existir capacidade de aplicação de um juízo imparcial. Eu admito que alguns dos meus inspectores que encerrem um estabelecimento nesse tipo de situações o façam com angústia, mas não nos compete o julgamento desses casos pessoais. Temos de ter uma espécie de parede opaca em que não se vê quem está por trás.
Não se poderia ter alguma ponderação para esses casos?
Não fazemos inspecções pedagógicas do género «limpe isto que voltamos daqui a meia hora». A legislação no âmbito alimentar é maioritariamente comunitária, não é nacional. E ultimamente a União Europeia em vez de fazer directivas com alguma margem de manobra impõe regulamentos rígidos.
Está a tornar-se extremista?
Não sei se é extremista. Quando se faz uma legislação comunitária é para a generalidade dos países. E esses casos que falávamos são marginais. Além disso, a maior parte desta legislação segue um modelo nórdico que é mais seco, com menores relações pessoais, em que a crítica social é muito elevada. Quando isso é aplicado em países do Sul da Europa começa a ser mais complicado, porque nós gostamos de argumentar, discutir, regatear.
Porém, muitos operadores queixam-se da demasiada severidade, que a ASAE encontra sempre qualquer coisa...
A função da ASAE tem de ser vista em duas perspectivas. A nossa função é defender o consumidor e garantir a livre e justa concorrência. Neste último caso significa que os operadores económicos que se encontram bem têm também de ser defendidos. Por exemplo, quando recentemente fomos ao Porto fiscalizar os bares recebemos críticas da respectiva associação por termos feito encerramentos. Mas aquilo que a associação se esqueceu de referir foi que fechámos 13 em 62 estabelecimentos inspeccionados. Ou seja, uma minoria estava mal. E essa minoria estava a fazer concorrência desleal.
Na situação dos bares portuenses, os encerramentos deveram-se à falta de licenciamento, que é concedido pela autarquia. Alguns estavam abertos há muito tempo sem que a Câmara Municipal tenha intervindo. Como foi isso possível?
Não perguntei à autarquia nem é essa a nossa função. Digo-lhe apenas que quando visitamos um local e detectamos algo contra a lei são levantados autos, quando constatamos que existe crime fazemos a detenção, se possível em flagrante delito, e quando não existe licenciamento encerramos. E a questão da burocracia do licenciamento já não é assim tão complexa como era há anos.
Nas acções da ASAE fica-se com a sensação de que em cada tiro cai um melro. Significa que há um excessivo rigor ou isto mostra que agora se está a dar cacete quando durante anos se deu cenoura?
Não sei se alguma vez se deu cenoura. Admito que, no passado, houvesse menor rigor por indefinição do quadro normativo. Por exemplo, na área alimentar havia quatro ou cinco organismos que fiscalizavam, que acabavam por empurrar uns para os outros. Era fácil não actuar porque se pensava que alguém viria atrás. Agora, e sobretudo desde a recente legislação de Julho, a ASAE é a única entidade com funções de fiscalização no sector da restauração e bebidas. Isto também veio dar um rosto, com toda a carga positiva e negativa.
Negativa em que aspecto?
Qualquer entidade que faz fiscalização acaba por ter essa carga negativa.
Se entrar, apenas como cidadão, num estabelecimento onde o reconheçam, sente algum nervosismo no proprietário?
(risos) Não sinto nervosismo nenhum.
Mas quando entra uma brigada da ASAE no seu estabelecimento, o proprietário pensará sempre «estou tramado»...
Temos que desdramatizar essa ideia. A taxa de incumprimento anda nos 30%. É alto, mas não é catastrófico.
Esse é o valor médio. Mas em determinado sectores parece-me catastrófico. Por exemplo, a ASAE em Julho inspeccionou 161 operadores de apoio de praia. Resultado: 115 contra-ordenações, 19 encerramentos e dois processos-crime...
Esse é o sector, no âmbito da restauração e bebidas, onde encontraremos situações mais gravosas. O problema dos apoios de praia é serem estruturas temporárias que estão abertos quatro ou cinco meses por ano, sendo as licenças muito precárias. Nessas circunstâncias, o operador monta o estabelecimento com o mínimo de investimento, pois há o risco de não abrir no futuro.
Isso parece uma situação quase kafkiana. O Estado concede licenças precárias, que não permite investimento; depois multa, porque não houve investimento...
A questão é outra: se esses operadores optarem por não manipular aí os alimentos não há taxa de incumprimento. Podem recorrer à compra de alimentos pré-embalados, não usar copos de vidro, etc.. Mas os incumprimentos verificam-se também em estabelecimentos novos. Por exemplo, recentemente fomos a uma casa de espectáculos e constatámos que os sete bares estavam a funcionar de forma ilegal, sem licença, com produtos à vista, sem afixação de preços e livro de reclamações, sem caixa registadora. E era um espaço novo! E até o proprietário se emendar, a ASAE fez visitas ao longo de quatro semanas. Eu não se quanto ele vai pagar de coimas, mas vai ter muita coima para pagar...
Será que o crime compensa?
Eu acho que não. Para uma sociedade, uma coima pode atingir os 47.500 euros, por coisas até menores. Por más condições higieno-sanitárias vai até aos 3.500 euros. Está a ver que não compensa.
Referia-me a médio ou longo prazo. Quantas inspecções a ASAE conseguiu fazer este ano?
Cerca de 17 mil.
Como sei existirem entre 80 mil e 90 mil operadores, isso dá uma frequência média de uma inspecção em cada cinco anos para cada estabelecimento...
Pode não ser assim. A metodologia não é essa. O nosso objectivo este ano é fiscalizar 34 mil operadores e conseguir que em cada freguesia [4.050 em Portugal Continental] haja pelo menos um operador inspeccionado. Quando se visita, por exemplo, um restaurante não significa que não se regresse lá muito brevemente.
Existem então listas negras?
Não, mas há informações negras.
Que significa isso?
Normalmente quando estamos a preparar uma operação partimos com um conjunto de informações bastante vasto. Por exemplo, recebemos por ano cerca de 100 mil reclamações dos consumidores. No ano passado enviaram-nos cerca de 7.500 queixas e denúncias. E estamos também atentos ao que vem na comunicação social. Além disto, temos ainda estudos internos sobre os sectores com um grau maior de prevaricação. Quando há duas semanas fomos aos bares do Porto não íamos cegos. As brigadas sabiam onde iam em concreto, a que horas.
Nos casos em que a ASAE intervém de surpresa há «agentes infiltrados»?
(risos) Se tivesse não lhe poderia dizer. Temos trabalho de investigação no terreno, como é evidente. A ASAE é um órgão de policiamento e investigação criminal. E, por isso, temos investigadores com a função de recolher informação.
A fiscalização aos bares do Porto, de que falou, foi uma iniciativa da ASAE ou surgiu por orientação do Governo?
O Governo não dá orientações à ASAE sobre os casos em concreto que deve fiscalizar.
A vossa autonomia é total?
O Governo apenas deu orientações – e essa é sua competência – sobre a estratégia para a defesa dos consumidores e da livre concorrência, e atribui-nos os meios.
Em 2006, as estatísticas de saúde apontam para cerca de 500 casos de doenças infecciosas intestinais (febre tifóide e salmoneloses), que são causadas por via alimentar. Houve uma ligeira melhorai em relação aos anos anteriores. Qual deve ser o objectivo? Descer para quanto?
O objectivo é tolerância zero.
Mas isso é uma utopia, como é em relação à sinistralidade rodoviária...
Nas questões toxicológicas não se pode ter uma meta. Temos sempre de fazer uma fiscalização apertada. Esse tipo de doenças resulta dos ovos e da tipologia da comida. Em três dos quatro surtos que já ocorreram este ano constatou-se que foi do consumo de bacalhau à Brás. E basta uma festa para que a estatística fique logo derrotada.
O que pode acontecer a um restaurante onde ocorra um problema desse género?
Muitas vezes a culpa nem é do restaurante, mas sim do produto. Daí que uma das questões que se discute neste sector é a identificação dos pontos de risco. Se houver um bom controlo de qualidade dos ovos, esses problemas não existem.
Como se consegue detectar então de quem é a culpa num caso de surto?
Normalmente é do produto. Mas isso é detectável sobretudo quando ficam restos de comida. Aliás, na grande restauração é obrigatório fazer uma amostra do produto alimentar e guardá-lo para ser possível analisá-lo, no prazo de 48 horas, em caso de problema. E isso faz-se até para segurança do próprio operador, pois uma grande empresa de catering não quer arriscar o seu nome.
Já se notam efeitos positivos na saúde dos portugueses por via da actuação da ASAE?
A nossa preocupação é a segurança alimentar. As questões de saúde, de obesidade ou de consumo excessivo são matérias do Ministério da Saúde. Não temos essa competência nem devemos ter. Eu costumo dar este exemplo: embora possa não ter qualidade alimentar, normalmente o fast-food tem segurança alimentar.
A ASAE não deve, portanto, pegar em matérias de qualidade nutricional...
Isso está mais próximo da educação. Não há nenhuma fiscalização que resolva o problema da alheira ou do cozido à portuguesa. Nunca com imposições, porque até se poderia, por absurdo, proibir as chouriças, mas garanto que se continuariam a consumir.
Mas há pratos tradicionais que deixaram de aparecer nos restaurantes...
Eu não conheço nenhum que não possa ser feito, desde que se cumpram as regras. Mesmo aquele que causa a guerra total: a galinha de cabidela. Hoje é possível comprar a galinha e comprar o sangue. O que não é possível é matar a galinha para dentro do tacho.
A matança do porco já nem sequer é possível de se fazer...
Isso não é verdade. Tudo o que diz respeito ao auto-consumo não tem as regras da restauração. Pode matar-se o porco entre amigo, depois de ser visto pelo veterinário municipal. Aquilo que não é possível é levar o porco para o restaurante, matá-lo no pátio e dá-lo aos clientes. E quem mata sete ou oito leitões por semana também não pode dizer que é para auto-consumo.
Como se consegue, de um ano para o outro, alterar hábitos culturais bastante enraizados nos portugueses?
Esse é um argumento que se utiliza, mas que não corresponde à verdade. A maior parte da actual legislação, embora em estilo diferente, é semelhante à existente em 1994. Há mais de uma década que existe lei. A diferença é que agora se aplica.
Estamos perante, então, um problema cultural...
A primeira coisa que se faz em Portugal quando sai uma lei é pensar como a contornar. O português pensa sempre: «como é que eu faço para não cumprir esta norma?». Está intrínseco.
Apesar actuação positiva da ASAE, independentemente das críticas que se possam fazer...
... poucas, poucas...
... fica-se com a sensação de ser caso único no país. Estou a recordar-se das suiniculturas. Durante anos, poluíram impunemente, sem que nada fosse feito pelo Ministério do Ambiente. E agora, a ASAE mandou encerrar algumas e deteve mesmo os proprietários, por razões de bem-estar animal e segurança alimentar. Por que razão a ASAE actua assim e as outras não?
Não faço ideia. Vai ter de fazer o favor de perguntar isso às 16 inspecções que existem no país (risos).
Mas se fosse inspector-geral do Ambiente já teria actuado para acabar com a poluição das suiniculturas?
Não conheço a legislação dos outros organismos, por isso tenho dificuldade em lhe responder. Alguma legislação de controlo ambiental tem prazos, se calhar demasiado alargados, para que as suiniculturas corrijam processos.
Pois, prazos que duram há décadas...
Terá de fazer uma entrevista, sobre essa matéria ao inspector-geral do Ambiente. No nosso caso, verificámos que as águas e as rações não estavam em condições e que o número de efectivos era excedido largamente. E como os proprietários não retiraram os animais a mais, detivemo-los cinco dias depois por crime de desobediência.
Isso parece-me aquele filme dos mafiosos que não se prendem por homicídios, mas sim por evasão fiscal...
Não sei o que é isso. A função da ASAE é fazer inspecções e cumprir a lei. Qualquer que seja o equipamento ou operador.
É um bom negócio para o Estado a receita das multas?
Não sei se é. Nós temos um orçamento de 20 milhões de euros. Este ano, as coimas deverão atingir os 800 mil euros de receita, o que representa entre 20% e 30% do total. Por isso, quando dizem que nós fiscalizamos para ir buscar dinheiro estão equivocados. Não há nenhuma acção de fiscalização que seja lucrativa.