REPORTAGENS AMBIENTAIS

ESTRAGO DA NAÇÃO

segunda-feira, novembro 26, 2007

NEGÓCIOS DA ELITE
Texto não editado publicado na edição de 24 de Novembro de 2007 da revista Notícias Sábado

A ideia romântica, talvez cinéfila, de que um advogado todo-poderoso apenas colecciona prestígio e cifrões na conta bancária à medida que usa sibilinos argumentos para vencer processos na barra do tribunal, está já muito longe da realidade. Pode ser assim em alguns, poucos casos, mas será agora uma excepção. Para muitos advogados, as togas são agora um adereço do passado, guardado nos baús, a ganhar traça ou a cheirar naftalina. Na verdade, no mundo mais rentável da advocacia quase não se tem de cruzar os olhos com um juiz, veste-se sobretudo fato e gravata, ou então tailleur – porque, como em todos os sectores, as mulheres começam a dominar neste sector, que há décadas era quase exclusivamente masculino. E a argumentação jurídica faz-se à volta de computadores ligados a bases de dados jurídicas e de jurisprudência e em redor de mesas de reuniões, onde se fazem negócios, se elaboram pareceres e se representam empresários em chorudas transacções.

Num mercado global, em que o capital fala mais alto, o direito societário, e as suas inúmeras ramificações, tornou-se já principal ganha-pão da esmagadora maioria dos advogados. E sobretudo das sociedades de advogados que, actualmente, atingem as 744, embora cerca de dois terços sejam de pequena e média dimensão – ou seja, com até cinco sócios. «Dado a maior complexidade e inter-relação legislativa, as sociedades têm assim a vantagem de poder chegar a mais áreas e satisfazer todas as necessidades dos grandes clientes», salienta Duarte de Athayde, presidente da Associação das Sociedades de Advogados de Portugal (ASAP) e um dos sócios da Abreu Advogados, a quarta maior do país em número de juristas.
Por isso, os advogados de maior sucesso acabam por ser os especialistas num determinado sector. Já não há muito espaço para os generalistas que sabem de tudo um pouco, pois não é suficiente em processos onde se precisa mais dos poucos que sabem muito. O resto é integração e trabalho de equipa, dentro da mesma sociedade.

Actualmente, se é certo que quase todas as grandes sociedades de advogados não prescindem de manter as suas equipas para tratar questões menos rentáveis e mais «corriqueiras» – leia-se, por exemplo, crimes contra as pessoas e património –, as baterias são apontadas sobretudo para as áreas jurídicas que envolvem contratos empresariais, fusões, aquisições, privatizações e imobiliário, já que estes negócios nunca se fazem sem um batalhão de advogados especialistas na vanguarda e retaguarda. Por vezes, várias dezenas. «Por exemplo, uma OPA é uma operação muito complexa, uma vez que tem que se ter em conta legislação de mercado de capitais, de reestruturações, de regulação e concorrência, de relações com o mercado mobiliário, etc.», destaca Duarte de Athayde. Se bem que alguns processos sejam mediáticos – como foram os casos recentes das OPA do BCP sobre o BPI e da Sonae sobre a PT –, estão longe de serem raros num mercado novamente em ebulição. «O trabalho nestas áreas acompanha os ciclos económicos; quando existe um bom momento é quando se fazem as operações de aquisições e de fusões», refere José Miguel Júdice, um dos sócios da PLMJ, a maior das sociedades de advogados do país.
Embora confirme que o direito societário seja a fonte maioritária das receitas da PLMJ, este ex-bastonário da Ordem dos Advogados diz que outras áreas começam a ter um peso significativo, designadamente o contencioso fiscal e tributário. Sintoma da luta contra a fraude fiscal encetada pelo Estado nos últimos anos – que quase sempre, sobretudo em montantes elevados, acabam nos tribunais tributários, e, portanto, necessitam dos auspícios de bons advogados.

Evitar que os clientes acabem a dirimir as questiúnculas nos habituais tribunais é também um dos «mercados» mais atractivos e lucrativos destas sociedades ou de juristas reconhecidos. «Por um exemplo, um processo de falência pode levar mais de uma década a estar concluído», salienta Menezes Cordeiro, professor catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa e um dos mais reconhecidos jurisconsultos portugueses, daí que «os centros de arbitragem sejam uma solução». Estes centros – que existem para as pequenas e grandes questões, embora geralmente em separado – recorrem a dois peritos, um por cada uma das partes, que nomeiam um terceiro elemento que preside. «Por norma têm um prazo de resolução de seis meses, em questões que poderiam levar anos num tribunal comum», refere Menezes Cordeiro, que é um dos vogais do Conselho do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (CCIP), que patrocina e medeia este tipo de processos. «As partes em conflito conseguem assim resolver mais rapidamente os problemas porque o prazo é, por regra, de seis meses, além de que evitam que seja um juiz a tratar de questões que, por vezes, são de elevadíssima complexidade», afirma Menezes Cordeiro.
Mas embora até possa ser mais barato para as partes conflituantes do que os tribunais, os árbitros podem facturar boas maquias em pouco tempo. Por exemplo, uma causa que tenha um valor de cinco milhões de euros pode implicar o recebimento, por parte dos árbitros de cada uma das partes e do presidente, de até cerca de 45 mil euros. Em contratos internacionais, em que os litígios são moderados pela Câmara Internacional de Comércio, sediada em Paris, os honorários podem ser muito superiores. «Muitas empresas, sobretudo em contratos que envolvem países diferentes, colocam cláusulas no sentido de os litígios serem resolvidos por uma comissão arbitral, de modo a que nenhuma esteja sujeita aos tribunais de outro país», refere José Miguel Júdice, que este ano já foi nomeado para quatro destas comissões internacionais de arbitragem.
Porém, esta tarefa não é para todos, o que até tem lógica e justificação, porque não «é» quem quer, mas sim quem pode. Ou seja, só há espaço para quem tem conhecimentos – sem aspas, saliente-se. Por exemplo, na lista de árbitros do Centro de Arbitragem da CCIP constam apenas pesos-pesados do direito, como Lobo Xavier, Menezes Cordeiro, Carlos Osório de Castro, Proença de Carvalho, Germano Marques da Silva, Medina Carreira, Sérvulo Correia, Vera Jardim, Sáraaga Leal, Marcelo Rebelo de Sousa, Rui Machete, Rui Pena, Vasco Vieira da Silva, bem como os antigos bastonários António Osório de Castro, Pires de Lima, José Miguel Júdice, Castro Caldas, Maria de Jesus Serra Lopes e Mário Raposo. Praticamente todos são sócios das principais sociedades de advogados portuguesas.

Na mesma linha, os pareceres são outra «indústria» promissora no direito, que «obriga» que qualquer grande sociedade de advogados necessite de nomes sonantes para os fazerem em questões mais complexas. Porém, neste caso, muitos jurisconsultos trabalham nesta área em escritórios de pequena ou média dimensão, ou mesmo a título individual. Mas, neste caso, vale sobretudo o grau académico do autor, que para ter um peso significativo deverá ser professor catedrático, sendo conveniente ter escrito também vários livros de direito. Por isso, embora pareceres haja muitos, os mais conceituados na praça portuguesas são, por regra, os de Costa Andrade, Gomes Canotilho, Marcelo Rebelo de Sousa, Vital Moreira e Menezes Cordeiro.
A elaboração de um parecer pode, em casos especiais, atingir montantes elevados, até 40 mil euros – mas há quem, em casos especiais, os possa até fazer graciosamente –, mas tudo depende daquilo que o cliente pretende, bem como da consciência do jurisconsulto. Até porque é sabido que, mesmo existindo pareceres contraditórios de doutos jurisconsultos, ninguém faz pareceres como «advogado do Diabo» – isto é, defendendo teses jurídicas sobre aquilo que não acredita, apenas para receber os honorários. Mas estes valores elevados por um parecer valem bem o seu preço, porque os juízes não podem omitir esses argumentos, sob risco do acórdão poder mesmo vir a ser considerado nulo.

Mas para singrar na advocacia não basta saber: é também, e muito, necessário ter contactos privilegiados para cativar clientes. E se no caso das empresas privados a escolha tem critérios preferencialmente de qualidade – mesmo se a publicidade directa é proibida pelo código deontológico e não existem estatísticas sobre processos ganhos e perdidos pelos escritórios de advogados –, já o mesmo não acontece com o cliente mais apetecível e com maiores orçamentos. Ou seja, o Estado! Há cerca de dois anos, José Miguel Júdice causou polémica por ter recomendado que o Estado deveria consultar as três maiores sociedades de advogados – incluindo, portanto, a «sua» PLMJ – quando necessitasse de trabalhos jurídicos, tendo mesmo sido alvo de um inédito processo na Ordem dos Advogados. Júdice diz, porém, que a sua intenção não era que fossem entregues, mas sim que as maiores sociedades não fossem arredadas, como é hábito. «Não existe transparência na contratação de trabalhos de advocacia para o Estado; são entregues não se sabe bem como nem com garantias de melhor preço e de melhor qualidade», lamenta o antigo bastonário. Pela mesma bitola vai também Duarte de Athayde e Menezes Cordeiro que defendem a existência de concursos para estes casos.
Certo é que, apesar desta situação, política e advocacia andam de mãos dadas nos corredores do poder, com advogados saltitando de um lado para o outro da «barricada», ou tendo mesmo a benesse da ubiquidade. E não há muito interesse em mudar. Por exemplo, actualmente, existem quase 80 licenciados em direitos que são deputados e muitos exercem advocacia. A Ordem dos Advogados até pretende que haja incompatibilidades entre advocacia e corredores de São Bento, mas como se exige uma mudança legislativa, nada é alterado. Em todo o caso, também nenhuma das grandes sociedades de advogados desdenha em ter ex-governantes como sócios ou colaboradores, mesmo se como advogados as suas prestações anteriores sejam medianas. Ou então apostam na contratação de figuras que estejam em ascensão no panorama partidário, mesmo que estejam conjunturalmente na oposição.
Nesse aspecto, também aqui houve uma mudança radical no mundo da advocacia ao longo das três décadas de democracia. Muitos dos políticos do período imediatamente posterior ao 25 de Abril começaram na advocacia, dando cartas, e pela sua experiência acabaram «recrutados» para a política – e muitos regressaram depois à advocacia. Mas agora existem muitos advogados que necessitam do trampolim político para conseguirem, enfim, singrar na advocacia. Os tempos estão difíceis para todos.


Caso 1

Nos últimos dois anos, a Autoridade da Concorrência pronunciou-se, em extensos relatórios, sobre cerca de 150 processos de fusão e aquisição. Todos grandes negócios, mas que nem sempre chegaram a bom porto. Dois desses foram dos mais mediáticos de sempre: a OPA da Sonae sobre a PT e a do BCP sobre o BPI, cujos anúncios surgiram no primeiro trimestre do ano passado. A intensa guerra que se sucedeu ao longo de inúmeros meses, até ao fracasso de ambas, teve vários protagonistas, mas na «sombra» trabalharam as melhores sociedades de advogados. Uma delas – a Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados –, acabou, porém, de sair sempre derrotada. Apesar de contar com advogados prestigiados como João Soares da Silva (no apoio ao BCP), de Lobo Xavier e Carlos Osório de Castro (no apoio à Sonae), as duas OPA saíram abortadas. As estratégias do outro lado da barricada para o aconselhamento jurídico foram bem distintas. Enquanto o BPI praticamente fez a defesa com a prata da casa, a PT não se poupou: contratou as portuguesas Vieira de Almeida & Associados, a PLMJ e a Gonçalves Pereira, Castelo Branco & Associados, além da espanhola Garrigues e da norte-americana Simpson & Bartlett.
Para se ter uma ideia da complexidade desta operação, que teve muito de jurídico, basta dizer que as versões não confidenciais dos relatórios da Autoridade da Concorrência tinham 849 e 672 páginas, respectivamente para as OPA sobre a PT e sobre o BPI...


Caso 2

O caso Eurominas – uma antiga unidade de produção de ligas de manganés no Seixal – ficará, porventura, nos anais como o mais «brilhante» trabalho dos advogados em prol do seu cliente... mas em prejuízo do erário público. E também o paradigma da promiscuidade entre política e advocacia, bem como dos perigos dos acordos extrajudiciais em que o Estado é uma das partes.
Depois do então primeiro-ministro Cavaco Silva, em 1995, ter decretado a reversão dos terrenos para o Estado por entretanto a empresa ter deixado de pagar à EDP e estar então, desde 1986, com laboração suspensa, a empresa teve melhor sorte para satisfazer um pedido de indemnização com o Governo socialista. Até aí os tribunais não estavam a ser meigos para as pretensões daquela empresa de capitais sul-africanos e franceses, mas mesmo assim a Eurominas conseguiu entrar em negociações com o gabinete do então ministro António Vitorino. Este governante entretanto demitiu-se em Novembro de 1997, sendo seguido pelos seus colegas José Lamego e Alberto Costa. Mas os três socialistas não perderam o olho no negócio, pois a partir daí passaram a interceder ao serviço da Eurominas. E assim, mesmo se numa primeira fase a Administração do Porto de Setúbal recomendou que o caso fosse resolvido nos tribunais – que quase garantidamente não daria razão à empresa –, o Estado, através do Governo socialista, concedeu um montante de 12 milhões de euros. Perante o escândalo, ainda se abriu um inquérito parlamentar, mas deu em «águas de bacalhau».


Caso 3

Por todo o Mundo, sucedem-se as guerras comerciais e uma marca chega a ser mais protegida do que uma pessoa, mesmo a nível internacional. Uma história saborosa, onde os advogados tomam uma posição preponderante, passou-se entre Joe Berardo e a poderosíssima Philips Morris. E que também mostra a lentidão de um processo judicial, o que mostra as conveniências de alguns acordos extrajudiciais – para o bem e para o mal.
Em 1996, o empresário madeirense – que possui uma vivenda denominada Mar Belo – decidiu começar a fabricar cigarros e tentou inscrever no Instituto Nacional da Propriedade Industrial, mas esta entidade recusou, alegando que se confundia com a marca Marlboro e que o grafismo e cores da Marbelo eram semelhantes à dos cigarros da empresa norte-americana. Nas duas primeiras instâncias, Joe Berardo perderia, mas depois de mais uns quantos pareceres, o Supremo Tribunal de Justiça dar-lhe-ia razão em Maio de 2003. Joe Berardo começaria a comercializar essa marca na Madeira e Continente a partir desse ano – embora sem grande sucesso – e anunciou um pedido de indemnização nos tribunais norte-americanos devido aos prejuízos causados pelos anos em que esteve impedido de fazer vendas. Ou seja, mais trabalho para advogados.

domingo, novembro 25, 2007

A extinção do mundo rural
in livro Estrago da Nação

Portugal deixou de ser um país rural. Se esta ideia já era uma percepção muito enraizada, concretizou-se estatisticamente apenas na década de 90. Em 1991, o recenseamento geral da população ainda revelava que uma ligeira maioria dos portugueses – cerca de 52 por cento – vivia em aglomerados com menos de dois mil habitantes. Dez anos depois, reduziu-se, pela primeira vez na história do país, para uma posição minoritária de 45 por cento. Na última década, Portugal assistiu impávido a um dos maiores êxodos rurais de que há memória. Cerca de um milhão de portugueses, em apenas uma década, optaram por abandonar aldeias para rumar até às vilas e cidades. Os aglomerados populacionais com mais de dois mil habitantes registaram um ritmo de crescimento quatro vezes superior ao crescimento global da população.
Em termos populacionais, a macrocefalia bicéfala – ou se calhar, acéfala – formada pelas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto, acentuou-se, concentrando-se aí cerca de 60 por cento da actual população portuguesa. E a litoralização populacional é outra das imagens de marca do país. Cerca de 80 por cento da população portuguesa e três quartos das localidades estão encaixadas na estreita faixa costeira que se estende do Minho-Lima até à Península de Setúbal. Se acrescentarmos o Algarve chega-se quase aos 85 por cento. Os 23 concelhos com mais de 100 mil habitantes – todos na faixa litoral, dos quais apenas três (Coimbra, Feira e Leiria) não pertencem aos distritos de Lisboa, Porto, Braga e Setúbal – possuem 40 por cento das “almas lusitanas” apinhadas em menos de quatro por cento da área do país.
Neste cenário, se Portugal fosse uma jangada já se tinha virado, transformando-se numa Atlântida. Não a sendo, também não está muito longe de um “naufrágio”. Como se um “buraco negro” insaciável se tivesse criado no litoral do nosso país, a população portuguesa está a transformar o interior num autêntico deserto. Como se a democracia necessitasse de “matar” o mito da ruralidade defendida pelo Estado Novo e que vem desde a monarquia. Actualmente, os distritos de Beja, Bragança, Castelo Branco, Guarda, Vila Real e Beja têm menos população do que há um século atrás, quando Portugal tinha então cerca de metade dos habitantes.
A actual sangria demográfica do interior do país não é um problema inédito nem recente da história contemporânea de Portugal. Os distritos de Beja, Castelo Branco, Guarda e Portalegre vêem desaparecer habitantes paulatinamente, década após década, desde os anos 50. E os distritos de Bragança, Évora, Vila Real e Viseu perdem população desde a década de 60, embora os três últimos tenham registado uma pequena correcção na ressaca da democracia e devido ao regresso das ex-colónias. Contudo, os fenómenos que justificam esta fase mais recente do processo de desertificação do mundo rural são distintos dos que concorreram para os processos análogos dos anos 50 e 60 e dos da segunda década do século XX. Sobretudo ao nível das causas: já não são conjunturais, passaram a ser estruturais.
Na segunda década do século passado, as epidemias de gripe pneumónica – que matou cerca de 103 mil pessoas em 1918 e 1919, ou seja, quase cinco por cento da população dessa época –, a Primeira Guerra Mundial e alguns fenómenos de emigração foram factores que estiveram na base de perdas populacionais significativas no mundo rural. Durante aquela década, por exemplo, o distrito de Bragança perdeu 11 por cento dos seus habitantes. Nessa altura, Lisboa, Porto e a emigração para a América do Sul começavam a ser um dos principais destinos dessa população.
Na década de 60, foi a pobreza do meio rural e também uma ainda mais forte emigração para o estrangeiro – em parte também devido à repressão política – que estiveram na base do êxodo rural. Nessa década Portugal perdeu dois por cento dos seus habitantes, embora os distritos de Lisboa e Porto até tenham aumentado a sua população em mais de 10 por cento. O interior só tinha um sentido: o estrangeiro ou a grande cidade. Por isso, todos os seus distritos, sem excepção, registaram nos anos 60 perdas populacionais entre 15 por cento e 26 por cento.
Entretanto, a democracia chega e a esperança no país renasce. Mas enganou-se quem esperava que o regresso dos então chamados retornados, dos exilados políticos e a estabilização da democracia – que, aliás, culminou num pequeno “baby-boom” – trouxessem um novo alento ao país, em geral, e ao interior, em particular. Contudo, não só o Alentejo continuou a perder população, como nos anos 80 se lhe juntou todo o resto do interior. E quando todos estavam preocupados com a desertificação alentejana, silenciosamente o fenómeno estava a ser ainda mais dilacerante na região de Trás-os-Montes e Beira Interior. Desde 1981, os distritos de Bragança, Vila Real e Guarda tiveram um decréscimo populacional de 19 por cento, 15 por cento e 13 por cento, respectivamente. Isto é, superior aos dos distritos alentejanos: Beja, com uma redução de 14 por cento, Portalegre de 11 por cento e Évora de quatro por cento.
Actualmente, nos 118 concelhos dos distritos mais deprimidos do continente português – Beja, Bragança, Castelo Branco, Évora, Guarda, Portalegre, Vila Real e Viseu – apenas vive cerca de 15 por cento da população nacional, apesar de ocuparem quase 60 por cento do território. Estes distritos perderam, no conjunto, aproximadamente 250 mil habitantes em duas décadas. Isto quando, durante o mesmo período, a população nacional cresceu quase seis por cento. Por isso, se a causa das sangrias populacionais da década de 10 e de 60 do século passado foram a doença, a pobreza e a repressão política, a das últimas décadas só pode ter sido uma: irresponsabilidade política.

Interior vazio

Custa, de facto, a acreditar que na segunda metade dos anos 80 e em toda a década de 90, com tantos mil milhões de euros de investimentos da União Europeia, se tenha chegado a este ponto. A fixação das populações rurais é um logro e as promessas de criação de emprego no interior está nos “neurónios” mais remotos dos políticos e decisores. Em Portugal, esqueceu-se que o país tem 92 mil quilómetros quadrados.
O cenário que o país apresenta no mundo rural é, de facto, arrepiante. Dos 122 concelhos que perderam mais de 10 por cento de população desde 1981, apenas cinco estão a menos de 50 quilómetros do mar. E mesmo estes – Lisboa, Porto, Barreiro, Alcoutim e Monchique – são casos bicudos, como noutros capítulos se referiu. Existem mesmo casos dramáticos: Sernancelhe, Vimioso, Montalegre, Oleiros, Vinhais e Carrazeda de Ansiães perderam mais de um terço da população em apenas duas décadas.
Um olhar para a evolução demográfica do interior do país é bastante esclarecedora e permite, além disso, detectar um outro problema ainda mais grave: a morte irreversível das aldeias. Sobretudo as sedes de distrito exercem, cada vez mais, uma forte atracção sobre os concelhos vizinhos, significando isso que, além da perda populacional do interior, há um esvaziamento ainda mais expressivo nos pequenos concelhos. Em 1981 existiam 89 municípios com menos de 10 mil habitantes, dos quais 19 não ultrapassavam os cinco mil. Duas décadas depois, são já 109 e 32, respectivamente. As freguesias com menos de 200 habitantes passaram de 220, em 1991, para as actuais 331.
São poucos os concelhos do interior que, não sendo sedes de distrito, evitaram sangrias populacionais, o que diz quase tudo sobre a vida no campo ou nas pequenas vilas. E mesmo sedes de distrito do interior não evitaram perdas. Por exemplo, no distrito de Bragança, todos os municípios viram diminuir a sua população nos últimos 20 anos. E em sete concelhos registaram-se mesmo perdas superiores a 25 por cento. No vizinho distrito de Vila Real, o principal concelho foi o único que ganhou população (cerca de seis por cento), mas a esmagadora maioria “mirrou” mais de 20 por cento.
Na Beira Alta, a Guarda também foi a única excepção da sangria populacional (ganhou nove por cento), num distrito em que quase todos os concelhos perderam mais de 10 por cento da população. No distrito de Castelo Branco – onde a maioria dos concelhos registou perdas demográficas superiores a 20 por cento – houve um caso curioso: Belmonte registou mesmo um ganho significativo (12 por cento), bem superior ao município albicastrense. Neste distrito, os concelhos do Fundão e Covilhã não conseguiram aguentar o declínio de uma indústria outrora pujante e também perderam população nas últimas duas décadas. Em Viseu, a história repete-se: além da sede de distrito, apenas Oliveira de Frades não perde população; o resto dos concelhos, quase sem excepção, perdeu mais de 10 por cento.
No Alentejo, o cenário também é negro, essencialmente nos distritos de Portalegre e Beja. No primeiro caso, Ponte de Sôr, sobretudo devido à indústria da cortiça, foi o único concelho que não perdeu população – embora com um ganho insignificante – e a maioria dos outros municípios registou decréscimos superiores a 20 por cento. No segundo distrito, Castro Verde foi a excepção – aqui por causa das minas de Neves Corvo –, mas com um mísero ganho absoluto de 131 pessoas em duas décadas. De resto, neste distrito, as perdas foram avassaladoras. Beja e Alvito foram os únicos concelhos que perderam menos de 10 por cento. Ao invés, o distrito de Évora até apresentou, na generalidade, alguns sinais de recuperação demográfica. Além do município de Évora, Vila Viçosa e Vendas Novas registaram ganhos populacionais e não houve nenhum concelho que tivesse uma perda superior a 20 por cento.
Torna-se interessante reparar que embora, no conjunto, o Alentejo continue a perder população, esse fenómeno está associado à elevada mortalidade dos mais idosos, que ainda não é “compensada” pela natalidade. Mas se, na última década, nenhum dos 47 concelhos desta região teve um saldo natural positivo, o processo migratório está mesmo a inverter-se: dois em cada três concelhos já registaram mais entradas do que saídas de população durante os anos 90.
A desertificação do mundo rural não está circunscrita aos distritos do interior. Basta ir para as zonas de serrania dos distritos de Coimbra, Leiria ou interior do de Santarém e observam-se também vários concelhos com perdas populacionais superiores a 20 por cento, sobretudo na zona central do país, num triângulo com os vértices em Góis, Pampilhosa e Mação, onde, aliás, se concentram os mais intensos e destrutivos incêndios florestais dos últimos anos. Saem as pessoas, entram os fogos. Decididamente, o mar deve ter um íman.
A uma escala mais micro, ao nível de freguesia, ainda se torna mais evidente a morte do mundo rural. Grande parte dos concelhos, mesmo pouco populosos e em forte contracção populacional, registam um fenómeno já bastante característico: as freguesias da sede do concelho até chegam a registar aumentos populacionais, enquanto as freguesias rurais sofrem uma razia. Veja-se, a título de exemplo, o caso do concelho de Bragança, que perdeu dois por cento da população nas últimas duas décadas. Nos anos 90 – em que até registou um ganho demográfico de dois por cento –, das suas 49 freguesias, 80 por cento perderam população, das quais duas dezenas mais de 20 por cento. Contudo, na cidade e em seu redor, os crescimentos populacionais foram significativos. A freguesia citadina da Sé registou mesmo um crescimento populacional de quase 30 por cento em apenas 10 anos.
Quase sem excepção, este é um fenómeno generalizado em todos os concelhos do interior. E, neste caso, nem é preciso fazer muitas contas para confirmar isto. O Instituto Nacional de Estatística publicou, em sete livros regionais, os resultados preliminares dos Censos que contêm mapas de todos os concelhos com a evolução de cada freguesia, utilizando cores. Em quase todos os concelhos do interior, as cores dominantes em todas as freguesias são o azul-escuro e o roxo – que significam perdas populacionais superiores a 10 e 20 por cento, respectivamente, com excepção de uma ou outra freguesia. Nesses poucos casos, a cor é quase sempre o vermelho vivo, que significa um crescimento populacional superior a 20 por cento. E depois confirma-se que essas freguesias são sempre as sedes de concelhos e zonas limítrofes.
Ora, isto tem um significado simples: o mundo rural ainda perde população a um ritmo muitíssimo superior àquele que se descortina pelos valores a nível concelhio. Note-se, por exemplo, a situação de Boticas, o concelho do país que registou maior quebra populacional nos anos 90. Embora tenha perdido quase 20 por cento da população a nível concelhio, a vila manteve-se estável. Significa isso que, em termos de balanço, os cerca de 1500 habitantes – ou seja, os tais 20 por cento – que este pequeno município transmontano perdeu em 10 anos viviam todos em pequenas aldeias. Cada vez mais envelhecidas.
De facto, basta visitar o interior do país e as aldeias. Quem ficou no mundo rural são, quase sempre, os idosos. E se alguns concelhos estão, neste aspecto, com uma pirâmide etária calamitosa, imagine-se então como estarão as suas aldeias. Encontrar gente nova em alguns concelhos do interior é como procurar agulha em palheiro. Em 2001, existiam 25 concelhos onde três em cada 10 dos seus habitantes estavam acima da idade da reforma. Um valor que é, sensivelmente, duas vezes superior à média nacional, que, diga-se, já não é um indicador apreciável.
No outro extremo etário, os jovens escasseiam nestas paragens. Existem mesmo concelhos que, sem exageros, caminham para a extinção humana. Os municípios de Idanha-a-Nova, Penamacor, Alcoutim e Vila Velha de Ródão – que tiveram perdas demográficas que rondaram os 30 por cento nas últimas duas décadas – têm actualmente uma desoladora pirâmide etária: cerca de 40 por cento de idosos e menos de 10 por cento de jovens com menos de 15 anos. Neste último concelho, por cada jovem, existem cinco velhos. E como já só existem pouco mais de quatro mil pessoas, está-se a ver qual vai ser o seu futuro.

Alma rural

Sem gente, ficam as casas. Embora por razões distintas, o interior do país rivaliza com o Algarve e outros concelhos do litoral num indicador: a percentagem de casas de segunda habitação. Das 26 freguesias que têm mais de 70 por cento das casas desocupadas na maior parte do ano, mais de metade são do interior, estando em pé de igualdade – embora por motivos obviamente distintos – com Armação de Pêra, Carvalhal (península de Tróia), Quarteira, Torreira ou Moledo. No concelho da Pampilhosa e Sabugal existem mesmo mais casas do que pessoas residentes.
Há outro aspecto em comum: a especulação. Nos últimos anos tem havido, de facto, uma corrida às casas de campo ou em pequenas aldeias, mesmo do interior mais profundo, por parte da população urbana, com os efeitos perversos que se imagina quando a procura é elevada. Desde a mais imponente herdade alentejana até à mais degradada casa do interior remoto, os preços colocados no mercado chegam a atingir preços completamente absurdos. É a alma citadina que ainda não se libertou da ruralidade, mas que não consegue mudar-se da urbe.
Num inquérito de 1997 do Observa – uma entidade ligada ao Instituto de Ciências Sociais e ao ISCTE – revelava o “corpo urbano” e a “alma rural” dos portugueses. Contrariando a tendência de migração para as Áreas Metropolitanas e cidades do litoral, os portugueses consideravam que se vive melhor exactamente nos sítios de onde mais saem: no campo e nas aldeias. Com efeito, cerca de 42 por cento dos portugueses dizia então que gostaria de lá viver, enquanto que apenas sete por cento mencionava, como locais preferenciais, as grandes cidades e somente quatro por cento a praia. No campo, as pessoas valorizavam, nesse inquérito, sobretudo a calma (26 por cento), a beleza e o aspecto saudável (23 por cento) e a proximidade com a Natureza (18 por cento). Em contraponto, num segundo inquérito do Observa, feito há cerca de dois anos, as pessoas que desejavam sair das grandes cidades apontavam, como factores principais, o excesso de agitação e o stress (quase 70 por cento), a poluição do ar, ruído e lixo (cerca de 60 por cento), a criminalidade e falta de segurança (quase metade) e o excesso de trânsito (42 por cento).
Perante tanta vantagem do campo e tantas desvantagens das cidades, quais são então os motivos por que a generalidade das pessoas estão onde não querem e não estão onde desejavam? Existem várias explicações, mas nada melhor do que aproveitar novamente os resultados do segundo inquérito do Observa. Colocada a questão sobre o que faltava ao campo ou à pequena cidade do interior para ser um local mais atractivo para se viver em permanência, a maioria dos portugueses não teve dúvidas: maiores oportunidades de emprego e garantia de serviços de saúde. No caso do emprego, os resultados dos Censos mostram mesmo uma situação dramática em algumas regiões do interior. Cerca de quatro dezenas de concelhos tinham taxas de desemprego superior a 10 por cento. E o desemprego feminino ainda era maior: cerca de 20 concelhos registavam taxas superiores a 20 por cento. Outros factores também apontados no inquérito do Observa eram a falta de estabelecimentos de ensino para todos os níveis (citado por 34 por cento das pessoas), as carências em termos de acessibilidades e de redes de transportes (cerca de 30 por cento) e a pouca oferta cultural e de lazer (quase 25 por cento). Faltou-lhes focar outros problemas, como a falta de saneamento em muitos dos pequenos concelhos e aldeias, bem como a fraca qualidade da água para consumo.

A lenta agonia

Com um sistema económico débil, uma indústria incipiente e em constante crise, sem condições dignas ao nível da saúde, educação e cultura, o interior está assim quase moribundo. Sem opções, com a crise na agricultura – trucidada que foi pela Política Agrícola Comum, onde só sobreviveram os grandes latifúndios –, a saída foi a única hipótese. Os sucessivos Governos não conseguiram ou nem quiseram – ou se calhar nem tinham essa noção – que a entrada de Portugal no espaço comunitário iria ter um impacte brutal na economia rural. E que se não fossem encontradas alternativas económicas, o mundo rural desertificava-se e definhava.
Deixou-se passar uma década e os resultados estão aí. O recenseamento agrícola de 1999 constatou uma diminuição de cerca de 183 mil explorações em relação à década anterior – um decréscimo de 31 por cento – e o desaparecimento de uma em cada três explorações com menos de cinco hectares. Em apenas uma década “desapareceram” quase 750 mil trabalhadores agrícolas, muitos dos quais sem alternativa de emprego no mundo rural ou citadino. Tanto mais que a população que trabalha na agricultura nacional tem ainda níveis de iliteracia assustadores: 34 por cento não têm qualquer nível escolar e outros 57 por cento não mais que o ensino básico.
Mas isto são problemas com quase nenhum peso político. Hoje, graças ao método de Hondt, o interior está também votado ao esquecimento político, por muito que os partidos e o Governo insistam em querer mostrar o contrário. O “interior político” tem uma voz cada vez mais sumida à medida que se transforma num deserto de pessoas e de ideias. Se Portugal fosse uma democracia em 1950, os deputados eleitos pelos oito distritos do interior do país ocupariam 27 por cento dos lugares do hemiciclo. A desertificação humana faz com que sejam, actualmente, apenas 16 por cento dos deputados da Assembleia da República.
De resto, sem excepção, os sucessivos governos da Nação preocuparam-se mais com aspectos transcendentais da política e menos com o encerramento sucessivo de mais de meio milhar de escolas primárias nos distritos do interior, por falta de jovens e de casais novos. Pouco fizeram, para além das palavras de circunstância e das promessas em romarias eleitorais, para solucionar as crescentes dificuldades na satisfação das necessidades sociais, médicas e culturais mais básicas das populações dos concelhos rurais. Inaugurar um centro de saúde no interior – coisa cada vez mais rara – nem merece a visita de um adjunto de secretário de Estado-adjunto. Ao invés, a inauguração, vezes sem conta, de um mega-hospital nas urbes – que quando aberto ao público já está saturado – tem garantida a presença do primeiro-ministro. O fecho dum ramal ferroviário ou da supressão duma carreira rodoviária em Alguidares de Baixo é justificada com frases do tipo “não é rentável porque só servia uma centena de pessoas”. Mas os milhões e milhões de euros em investimento rodoviário – que pela sua dimensão dão belas imagens televisivas – são um petisco para qualquer governante. E se neste caso, mas só neste, for no interior, melhor ainda; dá-se um ar de investimento no interior, esquecendo-se que as estradas são óptimas passagens para o litoral. Também o abandono das terras aráveis e florestais do interior é visto como uma consequência “natural” da política agrícola comum. E depois acontecem os incêndios devastadores que são proporcionais à desertificação desses locais.
Parte do país de 92 mil quilómetros quadrados que, durante os primórdios de Portugal, tantas décadas demorou a ser conquistado, está agora entregue ao abandono e ao desleixo. Não é uma pena: dá raiva.

quinta-feira, novembro 08, 2007

Textos (não editados) sobre o microcrédito publicados na revista Notícias Sábado de 3 de Novembro de 2007


Se alguém tem fome, recomenda o provérbio chinês, não se deve dar-lhe um peixe, mas sim ensiná-lo a pescar. Este princípio, por óbvias razões, não se deve aplicar em sentido literal para a faixa da população que esteja em situação de pobreza absoluta, até porque é necessário ter forças para se aprender a pescar. Mas também é certo que, em muitos casos, não basta ter a barriga meio cheia, empenho em aprender a pescar e ficar a saber todas as artes. É preciso ter uma cana ou uma rede, que por regra custam dinheiro. E, assim sendo, se nunca se conseguir arranjar dinheiro para apanhar o peixe, aumenta ainda mais a frustração e daí até cair numa situação de pobreza vai um passo.
Recentemente, o Instituto Nacional de Estatística, no âmbito do Dia Internacional de Erradicação da Pobreza, revelou que aproximadamente um em cada cinco portugueses vivia em risco de pobreza, ou seja, sobrevivia com menos de 360 euros por mês provenientes dos seus próprios rendimentos. Destes, quase metade (49%) tinha entre os 16 e os 64 anos – ou seja, eram população em idade activa. Esta entidade alertava também para o facto de que, se não existissem apoios estatais (pensões de reforma, subsídios de doença, de desemprego e de inserção social), a população pobre ou em risco de pobreza em Portugal atingiria os 41%.
Estes valores podem ter muitas leituras, mas mostram sobretudo que o Estado e outras entidades não têm capacidade, por si só, de suprimir a pobreza apenas através de subsídios – do tal peixe doado –, tanto mais que não chega para todos. E assim, muitas pessoas mantêm-se ou caem nas redes da pobreza apenas porque não têm posses suficientes para comprar a tal cana de pesca, mesmo se vontade e projectos existam na sua mente. Foi a pensar neste grupo de pessoas que a Associação Nacional de Direito ao Crédito (ANDC) tem incidido a sua acção. Desde finais de 1999, a sua principal preocupação tem sido de encontrar financiamentos bancários para o desenvolvimento de pequenos projectos empresariais. Ou seja, o chamado microcrédito – que basicamente consiste em empréstimos de pequeno montante (por regra até sete mil euros) para investimento, em condições de juro bastante favoráveis e destinado a pessoas que, noutras circunstâncias, nem teriam crédito junto da banca.
«Criámos a associação porque constatámos que existe uma faixa importante da população que pode, por sua própria iniciativa, sair de situações de dependência ou pobreza, se forem apoiadas numa primeira fase para desenvolver os seus próprios projectos», refere Manuel Brandão Alves, presidente da ANDC e professor do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG). «Quisemos acabar com o situacionismo de muitas pessoas que, sendo pobres ou estando em risco, se conformavam», acrescenta.
A ANDC tem sido, por isso, o «intermediário» entre essas pessoas e as instituições bancárias. Mas essa intermediação tem aspas porque o seu trabalho começa por ser de filtragem e somente depois de apoio técnico. «Apenas 20% das pessoas que nos contactam acabam por desenvolver os projectos até ao fim», salienta Brandão Alves. Isto porque a associação apenas acolhe as pessoas que já tenham uma ideia concreta de negócio com pernas para andar e exige que não haja, por parte do candidato ao microcrédito, quaisquer infracções com bancos. Depois disto, a ANDC – que recebe apenas uma comparticipação do Estado por este trabalho e não exige que os candidatos sejam seus associados – acompanha as primeiras fases de implementação dos projectos, mas sempre, como diz Brandão Alves, incentivando as pessoas a autonomizarem-se.
Este método faz com que a taxa de sucesso destes microempresários seja bastante elevada. Com cerca de 800 projectos de microcrédito aprovados desde 1999, abrangendo uma multiplicidade de sectores, somente 18% já não existem, embora o montante do capital total não reembolsado aos bancos se situe apenas em cerca de 10%. «São valores muito bons, se tivermos em conta que 67% das empresas em Portugal acabam por ser encerradas num prazo de cinco anos após a sua criação», destaca o presidente da ANDC. «Com este nosso trabalho não estamos apenas a apoiar essas pessoas, mas a sociedade no seu todo, porque muitas estavam a receber subsídios e deixaram assim de ser um encargo para o Estado, passando a produzir e a pagar impostos», acrescenta Brandão Alves. E, mais importante ainda, o sucesso obtido aumenta a auto-estima e tem um efeito mimético junto das comunidades mais desfavorecidas.


Caixa 1

O microcrédito é já considerado uma das mais fortes armas de luta contra a pobreza e, dessa forma, um dos elos mais importantes para a paz social do Mundo. Essa evidência acabou por ficar patente com a atribuição do Prémio Nobel da Paz do ano passado a Muhammad Yunus e ao Grameen Bank pelo sucesso do modelo do microcrédito na luta contra a pobreza no Bangladesh. A ideia de generalizar o microcrédito surgiu-lhe na década de 70 quando 42 mulheres da vila bengali de Jobra, a quem ele tinha emprestado o equivalente a 27 dólares para montarem um negócio autónomo de móveis de bambu, o reembolsaram. Desde aí, o banco fundado por Yunus, sempre dedicado ao microcrédito para os desfavorecidos, cresceu e expandiu-se para cerca de 60 países. No final da década passada tinha apoiado mais de 2,3 milhões de famílias com empréstimos a totalizarem 3.100 milhões de euros.

Perfis

Manuel de Almeida, 49 anos, barbeiro em Frazão (Paços de Ferreira)
Empréstimo concedido: 5.000 euros, aplicados em material da barbearia
Rendimento anterior: 0 euros
Rendimento actual: cerca de 750 euros

Deve ter-lhe sabido bem o ar da liberdade que respirou no dia 12 de Agosto de 2006, quando se lhe abriram as portas do Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira, mas Manuel de Almeida tinha consciência que muitas nuvens negras pairavam no seu horizonte. Ter 48 anos, depois de passados uma dúzia na prisão, não se lhe augurava um futuro muito promissor. De dentro da prisão trouxera, porém, um sonho que lhe recordava a adolescência: ser barbeiro. «Esse foi o meu primeiro emprego na minha aldeia, em Santa Maria de Cárquere, em Resende, quando tinha 16 anos», recorda, embora salientando que, naquela altura, não era trabalho muito apelativo porque «a higiene era muito má».
No entanto, mesmo quando se paga a factura de erros do passado, o recibo entregue não abre portas, pelo contrário. «Durante cerca de um ano, enquanto ainda estava preso, fui falando às doutoras do Instituto de Reinserção Social deste meu projecto, mas via o tempo a passar e não me ajudaram em nada», relembra Manuel de Almeida. «Só me deram 100 euros quando sai da prisão e tive que me fazer à vida». Para sua sorte, uma pessoa amiga – que ele carinhosamente trata por D. Rosinha – deu-lhe apoio e informações, enquanto ainda estava preso, para conseguir montar a sua barbearia. A tarefa não foi, no entanto, nada fácil. «Da primeira vez que me dirigi a um banco, logo que souberam que era um ex-presidiário não me deram esperanças de crédito». A D. Rosinha intercedeu e ele acabou por ser recebido pelo banco. Contudo, os juros eram proibitivos.
Foi então que surgiu a ideia de recorrer ao microcrédito. «A D. Rosinha pôs-me em contacto com a Associação Nacional de Direito ao Crédito e foi tudo muito rápido». Recebeu um empréstimo de cinco mil euros, mais uma pequena ajuda de um familiar de Resende e montou o negócio em Frazão, uma vila no concelho de Paços de Ferreira. «Com esse dinheiro comprei cadeiras, tesouras, secadores e rampas de lavagem», diz. A primeira tosquiadela deu-a menos de duas semanas após sair da prisão.
O negócio está a correr de vento em popa. Os fregueses não param de aumentar, apesar de se concentrarem sobretudo ao final das tardes e ao sábado. Embora haja variações, consegue já ter um ganho de cerca de 750 euros mensais, o que lhe permite pensar em prescindir, a breve prazo, de um part-time num restaurante, onde recebe apenas 200 euros por mês. Mas mais que o dinheiro, a estima reconforta-o, nota-se na voz. «A recepção das pessoas, mesmo sabendo o que me aconteceu, tem sido fantástica», diz. Para essa integração ajudou também a sua actual companheira, que é natural de Frazão. Conheceram-se na prisão e era ela que, digamos assim, o alimentou muito tempo, pois trabalha para uma empresa de catering que fornece as refeições ao presídio. Mas foi com o seu trabalho que Manuel de Almeida obteve a maior vitória: derrotou a desconfiança dos seus «sogros», que de início não viram com bons olhos este relacionamento. «Ofereceram-nos agora uma casa, que irei remodelar e vou lá instalar a nova barbearia», adianta. «E vou, se calhar, ter de meter um empregado».


Virgolina Silva, 61 anos, vendedora de queijos
Empréstimo concedido: 5.000 euros, aplicados numa câmara frigorífica
Rendimento anterior: 0 euros
Rendimento actual: cerca de 400 euros

Durante cerca de duas décadas, Virgolina Santos trabalhou como auxiliar médica no Hospital de Santa Maria em Lisboa, criou dois filhos, construiu uma vivenda com o marido. Uma vida sem demasiados sobressaltos, portanto. Um dos filhos, agora com 38 anos, meteu-se a fazer candeeiros, mesas e cadeiras em ferro forjado. O negócio começou a correr bem e, tanto assim que Virgolina Santos abandonou o funcionalismo público e rumou para casa, ajudando o filho nas vendas. Mas a globalização, essa madrasta, trocou-lhes as voltas. «Com o IKEA e as lojas dos chineses, as vendas baixaram, quase se deixou de vender», diz. Para agravar, o marido sofreu, no início deste ano, um acidente vascular cerebral, que o deixou inactivo e com uma magra reforma de 400 euros. Com 61 anos, com quatro ainda a faltar para a sua reforma, não podia estar parada à espera que a pobreza e o desespero abraçassem a sua família.
Decidiu montar então o seu próprio negócio, escolhendo a venda de queijos, já que tinha alguns contactos nesta área. Porém, o dinheiro não chegava para tudo e os bancos não estavam muito interessados em emprestar dinheiro a quem poucas garantias lhes fornecia, agravado ainda pela sua idade. Ou então propunham-lhe juros altíssimos. «Não tinha qualquer possibilidade», diz.
Foi então que, na televisão, viu um programa sobre o microcrédito. Em pouco tempo, com o auxílio da Associação Nacional de Direito ao Crédito, conseguiu obter um empréstimo bancário de cinco mil euros, suficiente para adquirir a câmara frigorífica para a carrinha que já possuía. Meteu-se nos queijos. «Forneço queijos de Nisa e da Lactimonte – uma queijaria na serra de Montejunto – sobretudo para lojas e restaurantes desde Caldas da Rainha até ao Bombarral», refere. O negócio não anda fácil, porque «as pessoas andam sem dinheiro», como salienta, mas mesmo assim tem já dezenas de clientes e um dos filhos já lhe dá ajuda em alguns dias. O dinheiro ganho nem é muito por agora – tira, por mês, pouco mais que o ordenado mínimo –, mas não se lhe ouve um lamento, antes sim alguma felicidade. «Sem aquele apoio do microcrédito não sei o que seria de mim; agora estou muito mais aliviada, até porque sempre gostei muito de fazer vendas».


Olga Onyshchuk e Iryna Ilash, 45 e 39 anos, Lisboa, loja venda e aluguer de vestuário de cerimónia em Lisboa
Empréstimo concedido: 5.000 euros, aplicados na compra de roupa
Rendimento anterior: 700 euros (como empregadas de limpeza e restaurante)
Rendimento actual: 700 euros (como proprietárias da loja)

O desmembramento da União Soviética em finais de 1991 foi um terramoto na vida de Olga e Iryna, duas irmãs que então viviam na cidade ucraniana de Ternopil. Tal como para muitos dos seus compatriotas, a liberdade veio com um «brinde» malfadado: a instabilidade económica e social, que não poupou ninguém, mesmo quem tinha formação superior e empregos estáveis. Ambas ficaram sem trabalho. Olga, com um curso de economia, trabalhava numa empresa de confecções, enquanto Iryna chefiava um laboratório local de uma multinacional de detergentes, por via da sua licenciatura em engenharia química.
A emigração foi a solução. Vieram para Portugal porque, na Ucrânia de então, sem informação do exterior, se julgava que todos os países fora da Cortina de Ferra eram iguais. Como os Estados Unidos recusaram o visto ao marido de Olga, o casal optou por Portugal, de forma ilegal em 1999. «Portugal e os Estados Unidos, pensávamos, tinham o mesmo grau de desenvolvimento», diz Olga.
A realidade, porém, como se sabe, é bem diferente. Chegados a Portugal no pós-Expo 98 não tiveram dificuldade em encontrar emprego, mas em trabalhos não especializados. O marido de Olga, também com curso superior, ficou numa empresa de areias, ela em limpezas. Iryna juntar-se-ia à irmã alguns anos mais tarde, com o marido – entretanto falecido –, acabando também nas limpezas.
Durante os primeiros anos, antes da legalização, conseguiram sobreviver com dificuldades e com muitas saudades das filhas e outras familiares que deixaram na Ucrânia. A língua portuguesa foi aprendida com muita abnegação. «Fazíamos os nossos próprios dicionários», recorda Olga. Porém, não passavam da muito portuguesa «cepa torta». Os trabalhos que conseguiram eram sempre para limpezas e restaurantes. Nem vale a pena perguntar como se sentiam, elas que têm cursos superiores.
Não se deram, porém, por vencidas. E viraram-se para um projecto que, ainda na Ucrânia, tinham implementado em part-time: uma loja especializada em aluguer de vestidos de noivas e fatos de cerimónia para homem. Há um ano, as duas irmãs tentaram a sua sorte, montando uma pequena loja na Rua do Arco do Carvalhão, em Lisboa, baptizando-a de Ilon – que surgiu da junção da primeira sílaba dos seus apelidos. Mas o dinheiro não era muito e as despesas elevadas. «Acabámos por pedir um microcrédito de cinco mil euros que permitiu aumentar a nossa oferta», refere Olga.
Assim, com o empréstimo, passaram de apenas 20 peças para 35 smokings, 50 fraques e 30 vestidos. Mas como a loja está em sítio discreto apostaram também na divulgação da loja, através da Internet. E mostrando assim as vantagens económicas de alugar um vestido de noiva, que se usa apenas uma vez – ou, pronto, poucas vezes... –, ou fatos de cerimónia para os homens. Neste último caso, o negócio está a correr bem. «Grande parte dos nossos clientes são estrangeiros que vêm a Lisboa e optam por não trazer esta roupa do seu país, embora já comecem também a aparecer alguns portugueses, que se tornam clientes frequentes». Já em relação aos vestidos de noiva, são quase apenas estrangeiras que optam por esta solução, muito mais atractiva, porque o aluguer custa apenas 150 euros.
Os lucros ainda não são muito significativos – ambas dizem ganhar cerca de 700 euros por mês, com variações, tanto quanto recebiam antes –, mas mais do que isso está a satisfação de um negócio que, frisam, lhes fez recuperar a auto-estima. Não é difícil de imaginar as razões.


Rafael Machado, 29 anos, alpinista
Empréstimo concedido: 5.000 euros, aplicados para o capital social da empresa unipessoal
Rendimento anterior: 55 euros por dia
Rendimento actual: 250 euros por dia

A vida é feita de altos e baixos. E a vida de Rafael Machado – ou simplesmente Rafa, para os amigos – assim foi sendo moldada. Vive, diz, «um bocado assombrado pelo passado», um passado que não quer recordar, de que não fala – ou quando fala pede depois para que se omita. Certo é que, agora aos 29 anos, Rafa continua aos altos e baixos, com a vida presa por um fio. Literalmente, presa por um fio, mas desta feita em segurança, em paz e, sobretudo, a ganhar bom dinheiro: criou uma empresa unipessoal para limpar vidros em arranha-céus ou executar trabalhos de parede de difícil acesso. Apenas usando uma corda, presa em local seguro, e um arnês, sem qualquer rede cá em baixo. Assim, consegue viver fazendo o que mais gosta.
Embora desde novo gostasse de fazer alpinismo – «para curar as vertigens», diz a rir-se –, foi em Inglaterra, no início desta década, que se aperfeiçoou ao fazer um curso técnico de desportos radicais. Depois de abandonar o trabalho de serralheiro, que o levara até às terras de Sua Majestade, acabou por servir de instrutor em acampamentos de jovens problemáticos britânicos apoiados pelo Prince’s Trust, um organismo patrocinado pelo Príncipe Carlos. Gostou da experiência, mas não da postura dos ingleses e, por isso, regressou às origens há cerca de quatro anos.
Em Portugal, a escolha natural foi a construção civil, aplicando os seus conhecimentos de alpinismo para fazer algo que poucos sabem ou se atrevem. Porém, nem é necessário que ele diga para se notar que o seu espírito rebelde não poderia pactuar durante muito tempo com trabalho dependente, mal remunerado. Afinal, por um dia de trabalho preso a uma corda pagavam-lhe apenas 55 euros, muito menos que um pedreiro.
Começou, por isso, a magicar a emancipação; afinal, bastava ter uma corda e um arnês, mais força de vontade. Isso tudo ele tinha, não tinha era dinheiro para criar a necessária empresa nem tão-pouco bens para conseguir um empréstimo bancário sem juros elevados. Recorreu assim ao microcrédito, através da Associação Nacional de Direito ao Crédito, para constituir a empresa unipessoal.
Agora, trabalho nunca lhe falta, porque consegue fazer preços mais atractivos e «trabalha melhor e mais rápido do que as empresas da especialidade», assegura. Percorreu já o país e até já esteve em Espanha, garante, enquanto vai discorrendo sobre as torres onde já esteve pendurado. Hoje, sente-se um «médio burguês», porque tem «dinheiro suficiente para viver, mota e carro». E outras vantagens suplementares: «Posso escolher os meus clientes, trabalhar ao meu ritmo e sinto uma grande paz de espírito enquanto estou pendurado», diz. Além disso, sente orgulho de mostrar que conseguiu vencer aqueles que acreditavam que ele jamais endireitaria a vida.
E o medo das alturas, o medo de se estatelar? Não tem, assegura. O sorriso que se vê estampado no rosto confirma isso mesmo, enquanto o vemos a trabalhar preso por uma corda a 60 metros de altura em Arruda, perto de Vila Franca de Xira.