REPORTAGENS AMBIENTAIS

ESTRAGO DA NAÇÃO

domingo, junho 27, 2004

TEXTOS INTEGRAIS SOBRE INCÊNDIOS FLORESTAIS, PUBLICADOS PARCIALMENTE NA REVISTA SÁBADO DE 25 DE JUNHO DE 2004

Texto principal

Em 1987, no programa TV Rural o inesquecível Sousa Veloso dedicou um episódio ao flagelo dos incêndios – o «Inimigo Número Um» da floresta, como dizia. Às tantas, em voz de preocupante aflição, o engenheiro desbobinava as áreas ardidas entre 1974 e 1986. No final, contas feitas à média anual, lançou um «avassalador» e trágico número: 45 mil hectares.

Actualmente, se porventura, os fogos florestais durante um ano somente reduzissem a cinzas a área média dos anos 70 e 80 quase seria motivo para regozijo. E o Governo seria lesto a congratular-se pelas medidas, quaisquer que fossem, terem dados os seus frutos. Sobretudo este ano, que se segue à mais trágica e negra época de incêndios em Portugal, que então varreu mais de 420 mil hectares de floresta e matos – a que se acrescentou mais meia centena de milhar de áreas agrícolas –, lançou o pânico em vastas regiões, matou 20 pessoas e destruiu mais de uma centena de casas. O país, depois das chamas, viu-se manchado de negro e luto.

No entanto, se 2003 foi o annus horribilis da floresta portuguesa, a dimensão deste drama não será uma surpresa absoluta. Os anos 90 já vinham prenunciando que, mais ano menos ano, uma catástrofe de grandes dimensões poderia surgir. Com efeito, a evolução do flagelo dos fogos mostrava uma tendência crescente desde os anos 80. Nessa década já se tinham registado dois anos com área ardida superior a 100 mil hectares, que subiu para quatro anos nos anos 90. Na presente década, todos os quatro anos superaram essa desoladora fasquia (ver gráfico).

Este grau de destruição da área florestal da década de 90 já colocava mesmo Portugal na triste liderança a nível europeu e, porventura, mundial. Em meados de 2002, dados do Programa das Nações Unidas para o Ambiente revelavam que o nosso país viu desaparecer, durante a década de 90, cerca de 16 por cento da sua floresta, enquanto a Grécia e Espanha tinham perdido um pouco menos de 6% e a Itália e França somente 2%. Estes dados mostravam assim que enquanto a Europa tinha registado um acréscimo da área florestal da ordem dos 0,1 por cento ao ano, Portugal, ao invés, regredia a um ritmo de 1,5%.
Com os incêndios de 2003 – e do último quadriénio – o panorama ainda se agudizou mais. Com uma superfície ardida total de 424 mil hectares, dos quais 280 mil eram de povoamentos florestais, o ano passado viu desaparecer quase 10% da sua área florestal. Nos últimos quatros anos, o somatório chega a um quarto de toda a floresta.

João Soares, secretário de Estado das Florestas, e Paiva Monteiro, presidente do Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil (SNBPC) – embora admitam também, mas em menor grau, outras causas – são unânimes a apontar o dedo acusador aos caprichos de São Pedro. «Houve um número anormal de dias sucessivos com temperaturas extremas e trovoadas secas», diz o primeiro. «As condições meteorológicas foram muito adversas dificultando as acções de combate», afirma o segundo. Na verdade, 2003, e sobretudo a primeira quinzena de Agosto foi, efectivamente, um período extremamente quente: desde que existem registos meteorológicos em Portugal, nunca tinha havido uma onda de calor de 19 dias a flagelar parte do país. No entanto, ao contrário daquilo que o Governo continua a defender, essas condições meteorológicas anormais não tiveram correspondência num exagerado número de focos de incêndio.

Com efeito, os dados oficiais da Direcção-Geral da Floresta revelam que 2003 até poderia ter sido um ano «relativamente» calmo, pois somente houve 70% do número de incêndios que se registaram, em média, no quinquénio anterior. «O grande problema foi sobretudo a dimensão dos maiores incêndios, alguns dos quais somente pararam porque encontraram áreas entretanto ardidas por outros fogos» salienta José Miguel Cardoso Pereira, professor do Instituto Superior de Agronomia. Os 15 maiores incêndios destruíram 240 mil hectares e os três mais destrutivos dizimaram aquilo que ardia em ano médio. Aliás, na primeira semana de Agosto, de acordo com dados da DGF, houve dias em que ardeu cerca de 50 mil hectares por dia.

Paiva Monteiro admite que «os bombeiros não estavam preparados para fogos de tamanha duração e tão avassaladores». Mas, para o presidente do SNBPC, «a descoordenação foi sobretudo na área logística, e não de combate em si mesma». Para este ano este responsável promete melhorias. «Vamos posicionar antecipadamente recursos em locais estratégicos de maior risco, numa primeira fase no eixo Castelo Branco-Viseu, de modo a conseguir ter de imediato à disposição meios humanos e de combate», assegura. Em paralelo, o presidente do SNBPC diz estar em curso um conjunto de auditorias às corporações de bombeiros para avaliar as efectivas necessidades de meios de combate. «Em anos anteriores a atribuição de meios de combate nem sempre seguiu uma lógica. Algumas corporações têm défice de meios e outras poderão até ter em excesso», refere Paiva Monteiro.

Em relação aos polémicos meios aéreos, cujos resultados práticos têm sido pouco eficazes – a evolução da última década mostra que quanto mais se gasta, mais arde –, o SNBPC não vai fazer grandes mudanças, mantendo-se o actual sistema de aluguer a privados. «A tendência será que o Estado venha, nos próximos anos, a possuir meios aéreos mínimos, através da readaptação, para os serviços de protecção civil, dos helicópteros Puma que sejam retirados das funções da Força Aérea».

Torna-se, contudo, visível que o Governo está com receio de uma nova vaga de incêndios – tenta precaver-se. Para este ano, o SNBPC cativou cerca de 10 milhões de euros para a criação de grupos de primeira intervenção e para pagamento aos bombeiros durante a época dos fogos. Muito dinheiro para um sistema dito voluntário. «É o sistema que temos e manteremos, embora admita que tenha de haver uma componente profissional reforçada, sobretudo nas áreas mais desertificadas, pois aí existem, de facto, poucos meios humanos, pelo facto de serem zonas desertificadas e envelhecidas», afirma o presidente do SNBPC.

A Secretaria de Estado das Florestas – criada no rescaldo dos incêndios do ano passado – também promete maior vigilância e prevenção para este ano. O Ministério da Agricultura, em articulação com a Defesa, anunciou que este ano estarão envolvidos em acções de vigilância e prevenção cerca de 1500 militares, 800 sapadores florestais, dos quais 900 na rede nacional de vigia, 150 brigadas de voluntários (com quatro elementos cada uma), entre outros grupos de trabalho, designadamente da Guarda-Florestal, Brigada Verde da GNR, vigilantes da Natureza e mesmo beneficiários do Rendimento Social de Inserção e jovens voluntários. Tudo isto vai envolver cerca de cinco mil pessoas. Pode parecer muito, mas se considerarmos que a área a vigiar ronda os três milhões de hectares, significa somente uma pessoa a vigiar uma área equivalente a 600 campos de futebol.

De qualquer modo, João Soares pensa também que estes meios humanos terão um efeito dissuasor sobre aquela que é considera a principal origem dos incêndios. «Somos um país de incendiários», sentencia, para depois acrescentar que esse qualificativo inclui «tanto o fogo posto como os actos negligentes, designadamente as queimadas, os foguetes lançados junto a áreas florestais ou os cigarros mal apagados». Dessa forma, para este ano, o Governo procedeu a alterações legislativas: para a proibição de queimadas entre Julho e Setembro, o lançamento de foguetes em períodos críticos e fumar em espaços florestais. Diga-se, contudo, que estas medidas não são novidade. Desde 1981, com o Governo de Pinto Balsemão, que existem leis que proíbem estes actos, sem a devida autorização – e, já agora, também obrigam a limpeza de matos num perímetros de 50 metros em redor de habitações –, mas que nunca foram cumpridas nem fiscalizadas.

Mas agora, promete João Soares, vai haver sanções. «O princípio da punição tem de existir e com algum peso, sob risco de ser inútil», salienta o secretário de Estado. E será a doer? Nem tanto. Segundo essa nova legislação, fazer queimadas ilegalmente e fumar em áreas florestais custará entre 100 e 3.700 euros e lançar foguetes pode vir a desencadear uma multa entre 100 e 2000 euros. «Admito que as multas não são muito elevadas, mas também queremos que esses actos sejam, primeiro que tudo, sancionadas como actos socialmente condenáveis», diz João Soares. Veremos se durante um Verão, com as milhares de festas e festarolas por esse país inteiro, quem será o primeiro folião a lançar os foguetes e também o primeiro «desmancha-prazeres» a condenar o acto. E já agora será interessante ver como se fiscaliza quem está a fumar numa área florestal.
Na mira do Governo também vão estar os incendiários, sobretudo se o ano descambar em catástrofe idêntica ao ano passado.

No entanto, convém relativizar este fenómeno como a causa principal, mesmo se, no ano passado, houve uma «caça ao homem» com a detenção de uma centena de pessoas acusadas de fogo posto. De acordo com dados da DGF, no ano passado o incendiarismo terá sido, na verdade, a causa de 25% dos grandes incêndios – uma percentagem que, aliás, até foi inferior a 2002, em que se atingiu os 30%. De qualquer modo, não estatisticamente, tem-se vindo a registar um incremento desta causa na última década – a que não será alheio também a melhoria na investigação pela Polícia Judiciária –, uma vez que no triénio de 1994/96 o fogo posto foi a causa de apenas 7% dos grandes incêndios. No entanto, estamos longe de estar perante casos de crime organizado, pois a esmagadora maioria dos detidos apresentam problemas psíquicos e de alcoolismo, e a vingança está na génese da sua acção.

Por tudo isto, caso se mantenham as causas estruturais e conjunturais para a ocorrência dos incêndios – e sobretudo para a sua propagação –, não será necessário ser bruxo para garantir que todos estes reforços terão um efeito reduzido. A floresta portuguesa transformou-se, nas últimas décadas, numa autêntica pira de lenha e não se modificou desde o ano passado. Nem se poderia modificar. «O sistema de minifúndio, a desertificação do interior e o absentismo dos proprietários são um caldo propício para tornar a nossa floresta bastante susceptível aos fogos e isso tem vindo, com algumas excepções regionais, a piorar nos últimos anos», salienta Armando Carvalho, engenheiro florestal e coordenador da Acção Integrada de Base Territorial do Pinhal Interior.

«Embora nos últimos anos tenham surgido várias associações florestais, que se apetrecharam de técnicos e que têm desenvolvido um trabalho meritório, esbarram num sistema burocrático ainda complexo», acrescenta este especialista. E o «sistema» - que também na floresta existe – faz com que, por vezes, seja inglório para os proprietários mais zelosos gastarem tempo e dinheiro a limpar matos, caminhos e aceiros. «Um fogo de grandes proporções atravessa mesmo estradas nacionais e auto-estradas, sobretudo se encontra pelo meio áreas com bastante combustível lenhoso», salienta Cardoso Pereira. Para este especialista, «tem de se mudar a lógica da exploração florestal em Portugal, em termos de reordenamento silvícola. A esmagadora maioria da área florestal que tem ardido na última década eram monoculturas plantadas a partir dos anos 60 e 70 segundo uma metodologia e gestão inadequadas».

O Governo tem, para além de evitar que arda mais floresta, outro desafio: recuperar as áreas devastadas em 2003. Por agora, o Ministério da Agricultura recuou na tentação inicial de reflorestar as zonas ardidas sem critério. «Tem de se ver aquilo que pode vir a regenerar nos próximos anos, sobretudo em áreas de eucalipto, de sobreiro ou de pinhais adultos», diz João Soares. Em curso está, actualmente, a elaboração de planos de ordenamento florestal. O secretário de Estado das Florestas – que, recorde-se, como director-geral das Florestas no final dos anos 80 foi o principal dinamizador da polémica «eucaliptização» do país – promete que não haverá um incremento da área de eucalipto. Embora defenda que esta espécie florestal seja a única com viabilidade económica a curto e médio-prazo, João Soares diz «existem leis que proíbem alterações de uso florestal após um incêndio e que uma das principais preocupações das novas plantações serrá evitar a eclosão de incêndios no futuro», apostando-se na implantação de corta-fogos e de manchas de espécies resistentes aos incêndios, como as folhosas.

Para já o Governo conseguiu negociar com a Comissão Europeia um reforço de 100 milhões de euros do programa Agros para este fim. Além disso, João Soares diz que parte do novo Fundo Permanente Florestal – financiado pela nova eco-taxa sobre os combustíveis líquidos – permitirá alavancar a comparticipação nacional, de modo a maximizar o aproveitamento dos subsídios comunitários para a florestal. «Por cada euro que candidatamos, conseguimos obter quatro euros de Bruxelas», afirma.

O Verão de 2004 está aí. E a Primavera até já deu uns sinais preocupantes daquilo que pode vir a acontecer, com vários incêndios a eclodirem, ironicamente, a partir do Dia Mundial da Floresta. Em 21 de Março, um desses incêndios dizimou três mil hectares no distrito de Aveiro. E se, de facto, as condições meteorológicas foram, no ano passado, adversas e se os meus logísticos e coordenação falharam, seria bom que o país se preparasse para os cenários futuros que são bem quentes e sombrios para a floresta nacional. Vários estudos têm vindo a mostrar que para as próximas décadas teremos Primaveras cada vez mais quentes e Verões mais abrasadores. «As temperaturas elevadas do ano passado e a onda de calor são uma pequena amostra daquilo que ocorrerá num cenário de alterações climáticas», diz Rita Durão, investigadora da Faculdade de Ciências de Lisboa que, com coordenação com João Corte-Real, do Centro de Geofísica da Universidade de Évora.

De acordo com os últimos resultados, se a situação actual já coloca todo o interior centro do país com elevado risco de incêndios, no futuro tenderá a piorar. «No período em análise, a partir de 2070, não apenas haverá mais temperaturas extremas, como o risco de incêndios se iniciará em Abril, podendo prolongar-se até Novembro». Resta apenas saber se, até lá, Portugal ainda terá floresta. Ao ritmo com que os incêndios têm vindo a assolar o país, esta não é uma mera especulação. É infelizmente uma triste realidade.


Reportagem 1 - Lousã

Foi sorte. Pelo menos é aquilo que Ricardo Fernandes e José Carlos Marques, dois técnicos da Aflopinhal – uma associação florestal do concelho da Lousã – querem pensar por o ano passado nada ter afectado aquele concelho do distrito de Coimbra. É prudente esta atitude: não embandeirar em arco, porque os incêndios são astutos e traiçoeiros. «Tivemos uns poucos de focos de incêndio no Verão passado, sem consequências; ardeu um ou dois hectares, mas não podemos pensar que isso ocorreu apenas por causa do nosso trabalho», diz José Carlos Marques, enquanto conduz o jipe pelas serranias íngremes.

Pode ter sido sorte, mas esta acompanha, regra geral, os audazes e, quase sempre, quem faz por a possuir. Desde 2001, esta associação florestal é uma das imagens da lenta «revolução» que vai surgindo na região centro do país, com a maior densidade de pinhal bravo. Com dois técnicos florestais e uma equipa de cinco sapadores florestais, a Aflopinhal é uma das pioneiras da chamada silvicultura preventiva, onde o fogo é visto como um inimigo no Verão e um aliado no Inverno e Primavera. Além da roça para controlar o crescimento de matagais pela forma mais convencional, a associação usa a técnica do fogo controlado para renovação de pastagens, limpeza dos matos e criação ou gestão de aceiros, incentivando os proprietários para que lhes solicitem esses serviços. «Esta é uma técnica bastante útil, mas que tem de ser feita com muita precaução, em zonas adequadas e com condições meteorológicas muito favoráveis», salienta Ricardo Fernandes.

Regra geral, sobretudo no caso dos aceiros, essa tarefa é executada nas cumeadas, em faixas com largura de, pelo menos, 20 metros. Parece simples: um sapador – à medida que vai andando contra o vento e o declive – derrama combustível incandescente com um pinga-lume, enquanto, em redor, bombeiros ou outros sapadores controlam com água a área a queimar. «Torna-se mais eficaz do que uma moto-roçadeira, não só por ser mais barato, mas porque evita assim que fiquem materiais que ao secar permitam que um incêndio intenso se continue a propagar para a área florestada», afirma Ricardo Fernandes.

Mas o fogo controlado para a abertura de aceiros apenas pode ser usado em áreas extensas em que não haja muitos proprietários. Daí que esta tarefa da associação florestal da Lousã seja possível por ser esta área detida pelo Estado ou pelos baldios. Nas outras áreas, a Aflopinho tem procurado incentivar os proprietários a cortarem os matos e a fazer queimadas nas épocas mais húmidas. «A associação consegue, devido aos apoios comunitários, praticar preços relativamente baixos», refere José Carlos Marques. Por isso, os sapadores florestais nunca estão parados. As tardes enevoadas, mesmo a ameaçar alguns pingos de chuva, são as ideais para essas queimadas. Mas mesmo assim, todo o cuidado é pouco. Em plena zona florestal, enquanto um dos sapadores vai colocando os matos, pequenos ramos e cascas das árvores numa pequena fogueira, os outros ficam de sobreaviso com um pequeno auto-tanque com capacidade para 500 litros de água. Há também ali à mão uma estranha mochila – a tartaruga – que, colocada nas costas de um dos sapadores, permite ir esguichando água sob pressão através de uma agulheta, sempre que se torna necessário amainar uma chama que ameaça tornar-se mais traiçoeira.

De qualquer modo, ainda muito trabalho há pela frente. «Estamos agora a tentar que se limpem faixas de cerca de uma dezena de metros ao longo dos caminhos e estradas, mas nem sempre tem sido possível», afirma Ricardo Fernandes. Além disso, muitas são as áreas de floresta na serra da Lousã que ainda apresentam uma colossal densidade de matos e ainda subsiste muita negligência e incumprimentos legais. É o caso de um corte de eucaliptos que deixou ao abandono todas as ramagens que se tornarão um autêntico barril de pólvora no Verão. «É proibido fazer isto, mas as pessoas não pensam nas consequências», lamenta Ricardo Fernandes.

Contudo, nesta região nem tudo são rosas e os espinhos ainda são muitos. A Lousã sofre também do problema de fraccionamento excessivo das propriedades que dificulta uma gestão adequada. Os técnicos da Aflopinho contam mesmo o exemplo caricato de, em algumas propriedades, os castanheiros pertencerem a um dono e o resto das árvores e o terreno pertencer a outro. Além disso, as burocracias são um outro flagelo, sobretudo aquando da apresentação de projectos de gestão florestal. Como nesses casos há necessidade de apresentar registos actualizados da propriedade, essa tarefa pode tornar-se kafkiana. Ainda recentemente um proprietário constatou através de um levantamento cartográfico, serviço que a Aflopinho também executa aos seus associados, que a sua parcela tinha afinal 3,5 hectares, em vez dos registados 0,98 – situação de erros que, aliás, é bastante frequente. O pior foi quando se quis rectificar esse valor: no registo predial pediram-lhe assinaturas das parcelas confinantes. Acontece que o «vizinho» que lhe estava a norte vivia no Brasil; o que estava a sul residia nos Estados Unidos; a este, os herdeiros não se entendiam com as partilhas; e, por fim, o seu vizinho de oeste jamais assinaria coisa nenhuma por causa de querelas em tribunal. Daí que casos como estes tenham levado a que uma linha de apoio comunitário do programa Ruris, que exigia um vasto leque de burocracias, registasse até ao ano passado uma taxa de execução de 0,1%.

«São estas questões que, em muitos casos, dificultam a implementação de uma gestão adequada», realça Ricardo Fernandes. Mas não são os únicos problemas no presente e no futuro. A instalação das associações florestais e a esmagadora maioria dos serviços por si prestados são apoiados pela Comissão Europeia, mas a sua continuidade não está garantida a partir de 2006. Por outro lado, os apoios do Estado – através, por exemplo, do pagamento de 75% dos salários dos sapadores florestais – são poucos e surgem atrasados. Por exemplo, em finais de Abril, as associações florestais ainda aguardavam que a Direcção-Geral das Florestas pagasse as verbas devidas desde o início do ano.


Reportagem 2 - Oleiros (inédita, não publicada na revista)

O fogo lava a alma, disse num certo dia do século XV o selvático inquisidor-mor de Castela, Tomás de Torquemada. Em pleno século XXI, em Portugal, o fogo está longe de ser o elemento purificador defendido pelo Santo Ofício; ao invés consumiu sim a alma de Oleiros e de muitos concelhos vizinhos. Hoje, um ano após o país ter assistido incrédulo ao Inferno dos incêndios do Verão de 2003, percorrer as estradas e caminhos desta região – ironicamente conhecida na nomenclatura da União Europeia por Pinhal Interior Sul – faz doer o espírito ao mais empedernido.

Nem vale sequer a pena colocar a obtusa questão jornalística sobre o que sentem aquelas gentes. Mesmo que nada digam – e também por decoro não se coloca essa pergunta –, os seus olhos transparecem um sofrimento já muito chorado. As árvores calcinadas, em pé ou cortadas, que pontuam por todo o lado são as testemunhas mudas da sua agonia. O silêncio daquela paisagem – se é que isso se pode chamar àquele cenário devastado e devastador –, sem vida, é o símbolo do triste purgatório que perdurará nas suas vidas.

Em pouco mais de três dias, Oleiros perdeu tudo aquilo que jamais terá nas próximas três décadas: uma floresta que, nesta região, é o parco sustento de uma população envelhecida, perdida (e abandonada) no interior do país, com estradas tão tortuosas como será agora o seu futuro. O maior dos incêndios do Verão passado – que, no seu conjunto, dizimaram mais de 20 mil hectares deste concelho, fustigando 43% da superfície do concelho – começou em Proença-a-Nova. Os bombeiros, vindos de todo o lado, nada conseguiram salvar. As chamas apenas se extinguiram quando encontraram a terra carbonizada por outros incêndios.

Quase nada foi poupado. Pinheiros, eucaliptos, matos, oliveiras, cerejeiras, laranjeiras, casas, armazéns, tudo – repete-se, tudo foi consumido por aquele bafo dantesco. Nem os poucos proprietários que durante anos remaram contra a maré do abandono e do absentismo da floresta, na esperança de retirar algum rendimento, almejaram evitar a catástrofe. «Tinha 34 hectares contínuos em que fazia limpeza de matos; desapareceu tudo», diz Augusto Fernandes, presidente da Associação dos Produtores Florestais de Alvelos e Muradal (APFAM), sediada em Oleiros. «O fogo varreu tudo num ápice. Como temos um sistema de minifúndio, com milhares de proprietários, sem aceiros, os incêndios propagaram-se a tudo, quer estivesse ou não cheia de matos», salienta aquele empresário.

Uma viagem pelas terras calcinadas de Oleiros mostra bem como o fogo, alimentado pelos matos, não teve qualquer dificuldades em se propagar. Caminhos há muitos, mas nenhum deles com largura suficiente para travar um incêndio. «Aqui é quase impossível fazer-se um corta-fogo, porque não haveria a concordância dos proprietários, se é que se conseguiria identificá-los a todos», salienta Augusto Fernandes. Aliás, este problema já com que nem seja possível retirar a madeira queimada. Cerca de metade ainda se encontra no terreno, a apodrecer e a transformar-se num ninho de pragas. «Pensou-se contratar empresas estrangeiras que a cortassem de empreitada, mas isso teria de ser feito com a aprovação da totalidade dos proprietários, o que se tornou inviável», afirma.

Com uma economia débil e uma população envelhecida, a maior catástrofe desta região está no seu futuro. Para já não se nota muito. Muitos dos proprietários mais afectados ainda têm hipótese de irem vendendo os pinheiros e eucaliptos queimados para minimizar os prejuízos. É o caso de José Dinis, um trabalhador rural de 50 anos, que vai cortando os pinheiros queimados num das suas várias pequenas propriedades. «Nada restou dos 20 hectares que tinha de floresta, depois de vender a madeira ardida não sei o que irei fazer», diz. Para agravar a sua situação nem sequer está a receber o subsídio prometido pelo Governo para apoiar as pessoas afectadas. «Como não sabia bem como isso funcionava, quando me fui informar, disseram-me que o prazo tinha terminado no final do ano passado», lamenta.

Mas mesmo a venda da madeira queimada é fraco sustento para quem tudo viu perder. Antes dos incêndios, o preço da madeira de pinho rondava os 45 euros por tonelada. Hoje, pouco ultrapassa os 30 euros, com a agravante dessa madeira queimada pesar menos 40% do que quando verde. Não se pense, contudo, que os madeireiros e as serrações saíram muito beneficiadas desta situação. A curto prazo pode parecer que lhes saiu a sorte grande, mas a médio e longo prazo, não será bem assim. Se é certo que tiveram madeira a baixo custo, o investimento que fizeram para absorver tanta quantidade não foi pequena. Grande parte das serrações tem «stocks» para cerca de um ano. Contudo, tendo em conta as flutuações de preço, sobretudo com a previsível concorrência dos mercados de Leste, este é um negócio de risco. Além disso, a aprovação da linha de crédito prometida pelo Governo para suportar os custos da compra da madeira aos proprietários afectados apenas ficou desbloqueada em Abril deste ano, aumentando ainda mais o clima de crispação.

Aliás, não é com sorrisos que um dos sócios de uma serração de Oleiros recebe os jornalistas. «Não digo nada, não tenho nada a dizer», repete, quase apontando a porta da saída. Compreende-se esta reacção: em anos sucessivos, a comunicação social – quando faz eco de que os incêndios são causados quase em exclusivos por incendiários – aponta também veladamente o dedo aos interesses dos madeireiros. «Ninguém sai beneficiado com isto. As serrações sofrerão dentro de poucos anos de falta de madeira nas redondezas, obrigando-as a recorrer ao estrangeiro e perdendo assim competitividade», salienta Augusto Fernandes.

Apesar destas fatalidades, o presidente da APFAM mantém-se um homem optimista. Neste momento, a associação florestal está a dinamizar um plano de intervenção florestal para uma área de quase 3200 hectares, poupada pelos incêndios do ano passado, tendo conseguido congregar cerca de 230 proprietários. O objectivo será construir um aceiro de cinco quilómetros, com vários pontos de água e proceder a uma gestão cuidada dos matos. Mas mesmo que este modelo resulte, os próximos anos confirmarão o cenário fatídico que se vislumbra para este concelho, Se sem incêndios, seis das 11 freguesias rurais de Oleiros perderam, durante os anos 90, mais de um quarto da sua população, quantas pessoas restarão daqui a uma década, agora que desapareceu a sua principal fonte de rendimento?


Caixa 1

Em Portugal, uma coisa são os incêndios, outra a sua dimensão. Embora as câmaras de televisão foquem sobretudo os fogos do interior desertificado do país, certo é que são os bombeiros dos distritos mais populosos que mais recebem chamadas para acudir aos incêndios florestais. De acordo com os dados oficiais da Direcção-Geral das Florestas, das cerca de 20 mil ocorrências verificadas no ano passado, um pouco mais de metade registaram-se nos distritos do Porto (20,1%), Braga (12,9%), Lisboa (10,7%) e Aveiro (7,7%). Contudo, as áreas ardidas nestes distritos não atingiram sequer os 4% do total nacional. A esmagadora maioria das ocorrências acabaram, assim, por não ser mais do que fogachos – ou seja, causaram apenas danos em áreas inferiores a um hectare.

Ao invés, no interior do país, os incêndios foram poucos, mas inclementes. Por exemplo, no distrito de Portalegre apenas se verificaram 102 ocorrências (0,5% do total nacional), mas bastaram estes para dizimarem 69 mil hectares, ou seja, 16% do total da área ardida no país. Os distritos mais fustigados pelos fogos do ano passado – Castelo Branco (90.226 hectares), Portalegre (69.348), Santarém (65.785), Faro (59.090) e Guarda (49.651) – embora tenham, no conjunto, registado 79% da área ardida, tiveram menos de 15% das ocorrências.

As causas para esta inversão «comportamental» são simples. Por um lado, as áreas florestais do litoral são bastante fragmentadas e por isso a propagação não é tão fácil. Por outro, como são zonas mais populosas, a detecção é mais rápida e o ataque mais eficiente. Ao invés, no interior do país, nem sempre os poucos fogos são detectados numa fase inicial – exactamente pela reduzida população – e quando é possível reunir os meios humanos e de combate, as distâncias e o tempo que demora a chegar à frente de fogo pode ser fatal. E, por regra, quando um incêndio não é debelado na primeira meia hora a probabilidade de se tornar incontrolável aumenta exponencialmente.


Caixa 2 - inédita

Foi o ano de todos os disparates e descontrolos. Acusações contra o Governo feitas ao desbarato pelos autarcas, que são os responsáveis pela protecção civil nos respectivos concelhos; uso de meios aéreos para fins turísticos; um ministro do Ambiente a acusar os ex-combatentes da Guerra Colonial de andarem a abandonar granadas pela floresta fora; o seu colega da Agricultura a acusar os bombeiros de não saberem apagar fogos; os órgãos representantes dos bombeiros profissionais e dos voluntários a digladiarem-se sobre quem melhor acudia aos incêndios; o coordenador do Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil a meter achas para a fogueira nesta luta – enfim, houve de tudo em 2003.

Nem faltou a Direcção-Geral das Florestas confundir as alterações climáticas (provocada pela libertação de dióxido de carbono) com o buraco de ozono (causado pelos CFC) quando escrever num comunicado de imprensa, pretensamente pedagógico, que «a quantidade de emissões gasosas (dos incêndios), com efeito directo na camada de ozono, é preocupante». Enfim, até daria vontade para rir, caso o drama humano e social não tivesse sido avassalador.


10 Factos

Nos últimos quatro anos ardeu 25% da área florestal de Portugal. Um ritmo de destruição de cerca de 6,2% por ano – ou seja, quatro vezes superior à deflorestação média da floresta amazónica.

No ano passado ardeu uma área quase idêntica à que foi dizimada pelos incêndios registados entre 1974 e 1982

Os três maiores incêndios de 2003 – São Matias (Nisa), com 49 mil hectares; Fróia (Proença-a-Nova), com 36 mil, e Mexilhoeira Grande (Portimão), com 26 mil – provocaram uma destruição superior à média anual da última década.

Uma dezena de concelhos foi varrida pelos incêndios de 2003 em mais de 30% do seu território. Monchique (81%), Vila de Rei (73%) e Gavião (70%) foram os casos mais dramáticos

Um estudo da Direcção-Geral das Florestas revelou que, em 2002, os fogos que demoram menos de seis horas a serem extintos (70 por cento das ocorrências) apenas consumiram 7,5% da área nacional ardida. Ao invés, os poucos fogos que se tornaram incontroláveis (somente 1,4% do total,) representaram 64% da área ardida.

A Guarda Florestal tem, segundo a sua lei orgânica, um quadro de pessoal de 1400 efectivos, mas na realidade somente estão ao serviço cerca de 600.

Em 1999, o Governo prometeu criar, até 2005, 500 equipas de sapadores florestais permanentes. Cada uma deveria ter cinco elementos, ou seja, 2500 efectivos. Afinal, actualmente somente existem pouco mais de 250 equipas num total de cerca de 800 elementos.

No ano passado, os meios aéreos custaram ao Governo cerca de 12 milhões de euros – menos 6,5 milhões do que em 1999. O pior é que em 2003 ardeu uma área seis vezes superior à de 1999.

Os custos médios de combate com meios aéreos triplicaram desde o início dos anos 90. A área ardida do último quinquénio é, contudo, o dobro daquela que se verificou entre 1990 e 1994.

Em 1980, a área de pinhal em Portugal atingia quase 1,4 milhões de hectares. Hoje, não deverá ultrapassar os 900 mil hectares. O eucalipto era praticamente inexistente há meio século. Hoje, atinge quase 800 mil hectares.

sexta-feira, junho 11, 2004

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O MINISTÉRIO AMALDIÇOADO - Grande Reportagem, 5 de Junho de 2004

Antes de se deslocar ao estádio Aufschalke, em Gelsenkirchen, para aplaudir a vitória do Futebol Clube do Porto e considerar a sagração do novo campeão europeu de futebol como «um bom sinal para a retoma», o primeiro-ministro Durão Barroso passou pela Assembleia da República para o habitual debate mensal. No meio das habituais tricas políticas, as baterias da oposição apontaram para a recente remodelação no Ministério das Cidades, do Ordenamento do Território e Ambiente. O primeiro-ministro «chutou» para canto com uma analogia futebolística: «Até num jogo que dura 90 minutos se fazem substituições», disse. A comparação pode ser feita, mas acaba por não ser muito favorável ao Governo de coligação entre o PSD e o CDS-PP. Certo é que já lá vão duas substituições para o mesmo lugar e quando assim é a culpa já não é só dos dois «jogadores» seleccionados; é também, ou sobretudo, do «treinador».

Quando Arlindo Cunha, o novo ministro, comemorar o seu primeiro ano no seu gabinete da Rua do Século não deve festejar: nos últimos tempos aquele não tem sido poiso seguro depois dos primeiros 365 dias. Dois dias depois de comemorar o primeiro ano à frente dos destinos do ambiente e ordenamento do país, o «autarca-modelo» do PSD, Isaltino Morais, apresentou a demissão após ser confrontado com omissões na sua declaração de rendimentos entregue no Tribunal Constitucional sobre umas ainda suspeitas contas bancárias na Suiça. O seu substituto, o então desconhecido Amílcar Theias – radicado durante duas décadas em Bruxelas, onde fora director-geral de um departamento financeiro da Comissão Europeia – não conseguiu durar muito mais tempo. Ficou sentado mais 44 dias que o seu antecessor nas antigas instalações do jornal O Século. Estas efémeras passagens não têm sido, aliás, casos raros no ministério ironicamente situado na rua que até tem uma denominação de sentido perene e onde, aliás, nasceu e viveu um dos estadistas mais duradouros da Nação portuguesa, o Marquês de Pombal.

A vida do próprio Ministério do Ambiente em Portugal tem sido mesmo fértil em percalços e caminhos tortuosos. Desde que a democracia surgiu em Portugal, apenas em dois períodos o ambiente possuiu um ministério autónomo e com nome próprio. Nos cinco primeiros Governos Provisórios existiu o então denominado Ministério do Equipamento Social e Ambiente, que durou até Setembro de 1975. No primeiro desses governos, que durou somente 64 dias, esse ministério era constituído por personalidade de luxo: o ministro foi Manuel da Rocha – que viria a ser um dos mais conceituados directores do LNEC – que estado ladeado por Ribeiro Telles (sub-secretaria de Estado do Ambiente), Nuno Portas (Habitação e Urbanismo) e Manuel Ferreira Lima (Transportes e Comunicações). Depois disso, a denominação Ambiente num ministério apenas voltou a surgir a partir de Janeiro de 1990, quando então Cavaco Silva se viu «obrigado» a preparar condignamente o país para a Conferência Mundial de Ambiente do Rio de Janeiro em 1992 que se realizou na altura em que Portugal presidiu pela primeira vez a União Europeia.

De permeio, também se pode considerar que terá havido um terceiro período – entre Janeiro de 1981, com o Governo liderado por Pinto Balsemão, e Junho de 1985 –, embora sob a denominação de Ministério da Qualidade de Vida. Aliás, foi nesse período que tutelaram os assuntos ambientais algumas personalidades de grande destaque: Gonçalo Ribeiro Telles (entre Novembro de 1981 e Junho de 1983), António Capucho (que lhe sucedeu, já no Governo do Bloco Central liderado por Mário Soares, até Junho de 1984) e Francisco Sousa Tavares, que não terminou a legislatura, demitindo-se em Junho de 1985, sendo então extinto o respectivo ministério. «A primeira década de democracia foi bastante instável, porque nem sequer se tinha tempo para assentar, mas mesmo assim fizeram-se coisas excepcionais com pessoas excepcionais», relembra Ribeiro Telles.
Num período em euforia da liberdade e onde os problemas económicos e sociais dominavam o país, estes anos foram, de facto, determinantes para a criação dos primeiros pilares da política de ambiente nacional, designadamente a criação de várias áreas protegidas e de leis de protecção do solo, tais como as Reservas Nacionais Agrícola (RAN) e Ecológica (REN), bem como de alguns princípios orientadores de ordenamento e saneamento básico. Nessa altura, grande parte dos governantes na área ambiental eram, de facto, a fina nata do país, que ainda hoje causam suspiros saudosistas aos ecologistas. «Esta era uma época em que a nata da sociedade fazia política de uma certa forma heróica e em que havia um certo primado da meritocracia. Com o tempo, as máquinas partidárias impuseram a partidocracia e em Portugal, como em outros países, houve um certo afastamento dos técnicos mais conceituados», analisa Viriato Soromenho-Marques, ex-presidente da Quercus e professor catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa.

Numa época em que a direita e a esquerda discutem se o 25 de Abril de 1974 foi mesmo uma revolução ou se se deve retirar um «r» por se tratar de uma evolução, em matéria ambiental poderá sugerir-se então a retirada quer do «r» quer do «e», acrescentando-se um «in». Isto porque, na verdade, nos 30 anos de democracia, a política ambiental e os políticos ambientais parecem ter sofrido uma involução. Estão «out». E estão sobretudo após o «canto de cisne» concretizado com o afastamento de Carlos Pimenta, ainda hoje uma referência para os sectores ambientalistas que quase suspiram pelo seu regresso como se um D. Sebastião ecológico se tratasse. Depois de um breve tirocínio como secretário de Estado de António Capucho no Ministério da Qualidade de Vida, Carlos Pimenta fez furor entre 1985 e 1987, no primeiro mandato, ainda em minoria, de Cavaco Silva. Ao longo desse período – integrado então no Ministério do Plano e Administração do Território, tutelado por Valente de Oliveira, que então preparava a integração europeia –, Pimenta fez mais do que devia. Em termos políticos e de acção concreta, mais precisamente.

Além de preparar as bases de uma política ambiental – como a aprovação da Lei de Bases do Ambiente, a criação do Instituto Nacional do Ambiente, com autonomia e virado para a sociedade civil, e as primeiras tentativas de planeamento e de controlo da poluição –, esse irreverente secretário de Estado provocou um «terramoto» nas mentalidades. Em vez dos habituais «paninhos quentes», arregaçou as mangas e foi à luta... de camartelo em riste. Na serra da Arrábida, na Fonte da Telha, no litoral alentejano e nas ilhas da Ria Formosa foram demolidas, no meio de contestação e ameaças, várias centenas de casas clandestinas. Um feito que nunca mais se viria a repetir, mas que não ficou completo, porque entretanto, em 1987, o incómodo Pimenta seria remetido para o Parlamento Europeu, onde se destacaria, até ao ano 2000, como um dos mais conceituados eurodeputados nacionais e uma referência mundial em política de ambiente.

A partir daí a qualidade dos políticos ambientais foi em queda livre. Macário Correia – actual presidente da autarquia de Tavira e que fora responsável máximo do Serviço Nacional de Parques Naturais – ainda tentou dar um ar da sua graça, mas sem os mesmos resultados de Carlos Pimenta. Os meios técnicos, humanos e financeiros eram parcos e a coragem política diminuta. Além disso, Portugal começava a receber fundos comunitários, queria crescer a todo o custo e, por isso, qualquer veleidade ambiental, sobretudo no sector industrial, foi sempre visto como uma força bloqueio no seio do Governo social-democrata e nos diversos «lobbies».

Por isso, a criação do Ministério do Ambiente surge em 1990 mais como uma «flor na lapela», como uma moda que já estava em voga nos outros países comunitários. Contudo, se a estabilidade política já permitia em outros sectores definir e aplicar políticas de médio prazo, o Ambiente continuou a sua saga de instabilidade. Com agravantes: ora os ministros não tinham traquejo político, ora não possuíam aptidões para a pasta. Ou pior, não tinham ambas. Até ao final do Governo de Cavaco Silva, finalizado em Outubro de 1995, a Rua do Século veria três ministros. O primeiro foi Fernando Real, antigo reitor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, que foi um autêntico erro de «casting», cujo pesaroso filme durou um ano e três meses. «Ficou conhecido como o ministro irreal», recorda Luísa Schmidt, jornalista do Expresso e socióloga especializada em assuntos ambientais do Instituto de Ciências Sociais de Lisboa, para quem «o élan de Carlos Pimenta nunca mais renasceu a partir da sua saída».

O substituto de Fernando Real foi outro «outsider» da política: Carlos Borrego, docente da Universidade de Aveiro. Embora conceituado na área da poluição atmosférica, desde cedo mostrou, contudo, alguma inabilidade política. Durante o seu mandato – que não chegou a completar cinco trimestres –, estoiraria o polémico plano hidrológico espanhol e o Governo social-democrata demorou a reagir, deixando à oposição socialista e ao então presidente da autarquia do Porto, Fernando Gomes, o palco mediático. Homem algo sisudo, Carlos Borrego cairia, ironicamente, em desgraça por causa de um anedota. Na noite de 10 de Junho de 1993, numa conferência em Braga e perante uma assistência sonolenta, lembrou-se de contar uma piada glosando a crise dos hemodialisados do hospital de Évora – que provocou a intoxicação e morte de 25 pessoas por alumínio –, dizendo que serviriam para reciclagem daquele metal. Cavaco Silva não achou graça e substituiria de imediato o ministro, trocando-o pela então secretária de Estado-adjunta, Teresa Gouveia.

A nova ministra – que se destacara anos antes como secretária de Estado da Cultura – nunca conseguiu encontrar o rumo nos 16 meses á frente do Ministério. E somente o seu trato fácil e simpático a poupou de críticas mais acérrimas. Durante este período, não só as associações ambientalistas estiveram com maior actividade e dinamismo, como também o então presidente da República, Mário Soares, provocou os seus estragos. Em duas Presidências Abertas – uma em 1993 sobre urbanismo, e outra em 1994 dedicada ao ambiente –, o país viu-se ao espelho. E a imagem era feia. Um país inundado de lixeiras urbanas e industriais, com rios putrefactos, as indústrias com licenças para poluir – por via de uns benevolentes contratos de adaptação ambiental –, enxameado de bairros de lata, com filas de trânsito intermináveis. Enfim, um desastre. Os últimos tempos do cavaquismo foram, como em outros sectores, penosos para o ambiente, mas ainda houve tempo para umas aprovações escandalosas, como a de três empreendimentos turísticos no Algarve ao arrepio das normas ecológicas.

A vitória do Partido Socialista nas eleições de Outubro de 1995 esteve em vias de ser a «morte» do Ministério do Ambiente. António Guterres ponderou mesmo em subalternizar esta pasta tornando-a de novo numa simples secretaria de Estado, mas a pressão dos ambientalistas e de outros sectores fizeram-no decidir pela sua manutenção. Escolheria uma independente, mas conceituada economista, Elisa Ferreira para os destinos da pasta ambiental, colocando então um algo obscuro José Sócrates – quase ostracizado nos meios ambientalistas – numa das secretarias de Estado. A surpresa surgiria, contudo, onde menos se esparava. Sócrates estabeleceu uma estratégia para o esquecido e depreciado sector do lixos – lançando como bandeira a erradicação das lixeiras urbanas e a solução para os resíduos industriais. Se no primeiro caso, com maiores ou menores dificuldades, avanços e recuos, essa política teve bons resultados, nos lixos industriais a polémica arrastar-se-ia ao longo dos seis anos e meio de mandato socialista. José Sócrates interromperia em Novembro de 1997 a sua primeira incursão ambiental – quando então foi promovido a ministro-adjunto, liderando a candidatura portuguesa à organização do Euro 2004.

Mas se Elisa Ferreira conseguiu assim mais margem de manobra política – pois as relações com Sócrates sempre foram azedas –, os resultados foram pouco animadores. Sobretudo sabendo-se que ela foi o único titular do Ambiente que conseguiu concluir uma legislatura completa de quatro anos. Diga-se, aliás, que o segundo titular ambiental mais duradouro não chegou sequer a atingir os dois anos e meio. Assim, em Outubro de 1999, Elisa Ferreira quando se transferiu para o Ministério do Planeamento apenas poderia apresentar, de marcante, no seu currículo ambiental a assinatura do convénio luso-espanhol para os rios internacionais – que acabou por se mostrar desastroso para os interesses nacionais – e a definição das áreas a incluir na Rede Natura – que, em todo o caso, não passou do papel –, além de ir apagando diversos «fogos», alguns devido a pressões comunitárias, como foram o caso dos processos da barragem de Alqueva, da ponte Vasco da Gama e da Auto-Estrada do Sul, no Algarve.

Com a reeleição do Governo socialista, o Ministério do Ambiente seria reforçado, num papel de primazia, com a componente urbanística e de ordenamento. Sócrates regressaria então como «super-ministro» e sob uma aura de estrela política em ascensão alimentada por alguns sectores da comunicação social rendidos ao político que cultivava um estilo que contrastava com o diálogo titubeante do próprio primeiro-ministro António Guterres. «O Ministério do Ambiente tornou-se apetecível porque não só passou também a tutelar as autarquias e o ordenamento do território, como também generosos fundos comunitários», diz Francisco Ferreira, dirigente da Quercus. E, de facto, José Sócrates muniu-se desses meios para ir retirando competências às autarquias na área do saneamento básico e engrossando um monopólio público neste sector, através da empresa Águas de Portugal e as suas mais de meia centena de empresas multimunicipais de lixos, de águas e outras actividades ambientais. Este empório é, aliás, hoje alvo de forte polémica devido à intenção do actual Governo em o privatizar parcialmente, apontando-se como causa da «queda» de Amílcar Theias as «guerras» internas sob a orientação dessa operação financeira.

Nos cerca de dois anos e meio em que Sócrates esteve como ministro na Rua do Século, envolveu-se spbretudo numa luta titânica para avançar com a co-incineração de lixos industriais nas cimenteiras – um assunto que iniciara em 1996, que Elisa Ferreira herdou já efervescente e que depois lhe devolveu de novo em ponto de vulcão. Contudo, quando a sua tenacidade, para uns, ou sua teimosia e prepotência, para outros, o levavam a caminho de alcançar os seus intentos, a queda do Governo socialista «liquidou-lhe» esse seu objectivo. No sector do ordenamento, apesar das promessas e intenções, foram pouco visíveis as melhorias da integração com o ambiente, sobretudo atendendo à década que ficou marcada pela especulação e desenfreada construção civil. «Mesmo com planos directores municipais concluídos, não se conseguiu conter a expansão descontrolada dos perímetros urbanos, nem acabar com a dependência dos impostos do betão por parte das autarquias, que são a causa principal da especulação», salienta Luísa Schmidt.

A única medida neste sector foi o programa Polis para reabilitação de algumas cidades e que o Governo quis transformar em exemplo de novo urbanismo. O empenho inicial foi muito – e o investimento previsto também, cerca de 800 milhões de euros – e envolveu uma forte operação de marketing a que não faltou mesmo os relógios «countdown» ao estilo Expo 98. Mas os resultados práticos foram quase nulos e mesmo agora o actual Governo olha com desprezo este programa que, além disso, se foi desvirtuando ao ponto de algumas áreas de intervenção se irem construir prédios em altura, quando um dos símbolos iniciais do Polis era a demolição do Prédio Coutinho, em Viana do Castelo.
De resto, Sócrates foi oscilando entre medidas positivas, aplaudidas pelos ambientalistas, e outras bastante negativas. No primeiro caso, garantiu que o parecer do Ministério do Ambiente na avaliação do impacte ambiental de projectos passasse a ser vinculativo, exercendo mesmo esse poder por várias vezes. No segundo caso, extinguiu o Instituto de Promoção Ambiental e acabou com as sempre incómodas audiências populares na fase de consulta pública dos estudos de impacte ambiental. «Sócrates trouxe, de facto, uma maior força política ao ambiente, mas mais por via da proximidade que tinha de Guterres», diz José Alho, presidente da Liga para a Protecção da Natureza. Soromenho-Marques concorda com esta visão, acrescentando que, de qualquer modo, «essa força do ambiente não alastrou para as políticas dos outros ministérios; comportou-se um sapo que sonha ser vaca e bebe água para inchar».

Depois da vitória do PSD nas eleições de Março de 2002, o Governo de coligação de direita parece ter reentrado no ambiente com o pé esquerdo. Não só por em apenas dois anos conseguir o prodígio de já ter tido três titulares no Ministério do Ambiente, como por decalcar os percalços do último quinquénio do cavaquismo. Tal como Carlos Borrego, Isaltino de Morais saiu inesperadamente e por razões exteriores à sua função. Tal como Fernando Real, Amílcar Theias «andou às aranhas», como diz Luísa Schmidt. Foi, aliás, o próprio Isaltino Morais que viria a dizer que «Theias era um extra-terrestre no Ministério do Ambiente». E, por fim, Arlindo Cunha, tal como Teresa Gouveia no passado, surge como solução de recurso do primeiro-ministro, que «queimado» opta uma pessoa da sua confiança pessoal e com experiência política, mesmo se sem conhecimentos profundos na área ambiental. Os ecologistas já não estão com contemplações. «Não há agora espaço para estados de graça perante tanta desgraça», diz José Alho, «perante a subalternização do ambiente». Exemplos disso, aponta, são as intenções do Ministério da Economia de «suavizar» os procedimentos no licenciamento industrial e de projectos turísticos. Ou de retirar algumas competências do Instituto de Conservação da Natureza em matérias florestais e da lei da caça.

Mas não foi somente por aquilo que os outros ministérios quiseram fazer no sector ambiental que o actual Governo tem sido alvo de críticas. Mesmo sozinho, o Ministério do Ambiente foi fértil em soluções polémicas e em pouca acção. Depois de abandonar a opção da co-incineração, a solução alternativa não avançou ainda e alguns sectores do PSD estão, paradoxalmente, apostados em construir uma central de incineração para os lixos urbanos na região centro, que a ser feita poluirá mais do que se a cimenteira de Souselas queimasse resíduos industriais. As autarquias começaram, por permissão de Isaltino Morais, a ter direito de veto – já exercido no Gerês – para a nomeação dos directores das áreas protegidas. Existem, por outro lado, intenções de alterar profundamente os regimes da REN e da RAN para facilitar a construção em áreas até agora interditas. E, pior ainda, o Ministério do Ambiente tem mostrado uma certa complacência em relação ao Protocolo de Quioto, numa altura em que se prevê que Portugal atingirá um crescimento das emissões de dióxido de carbono superior a 60% em 2010 – quando apenas poderia atingir os 27% –, uma situação que poderá vir a resultar no pagamento de multas no valor de 273 milhões de euros por ano. Além disso tudo, «existe um desnorte completo e uma falta de motivação a nível interno», denuncia Francisco Ferreira. Ribeiro Telles diz estar bastante receoso do futuro perante «tantos disparates e falta de cultura, ambiental e global, dos vários partidos políticos, que não entenderam, nem querem entender, as consequências dos seus actos».

A situação, aliás, só provavelmente não será pior, porque existe agora um factor externo bastante determinante pela sua acção fiscalizadora e impositiva: a União Europeia. «Muita da legislação e das iniciativas ambientais, bem como os subsídios sobretudo para o saneamento básico, permitiram melhorar alguns sectores e guiarão o futuro da nossa política ambiental», afirma Luísa Schmidt. Mas enquanto em Portugal, como defende Soromenho-Marques, «inexistir uma massa cinzenta dentro dos partidos convencionais que internalize, como noutros países, que a preocupação ambiental é um sinal civilizacional, de modernidade e mesmo de riqueza económica» não haverá motivos pata esperar melhorias. O Dia Mundial do Ambiente – que hoje se comemora – está longe de ser verde em Portugal. Em algumas, muitas zonas do país, é até bem negro. Cinzento para as bandas da Rua do Século. E nem um sorriso amarelo apetece fazer perante este estado da Nação ambiental.


Um diagnóstico do ambiente em Portugal ponto por ponto

Água

As injecções de vários milhares de milhões de euros que escoaram dos cofres de Bruxelas na última década para tornar os rios mais cristalinas e as torneiras mais límpidas quedaram-se num fracasso. Um em cada dez portugueses continua sem beneficiar de abastecimento público e mais de meio milhão bebe água sistematicamente contaminada. A esmagadora maioria das autarquias e entidades gestoras dos sistemas de distribuição não cumprem as normas de monitorização. Raramente os consumidores são avisados em tempo útil da ocorrência de contaminações, nem nunca o Ministério do Ambiente aplicou qualquer penalização aos infractores.
Os investimentos em saneamento básico centralizaram-se sobretudo no litoral – na maioria dos casos para substituir antigas captações inquinadas por esgotos urbanos e industriais –, pelo que consumir água em Trás-os-Montes, Beira Interior e Açores é um perigo para a saúde pública.
Persistem os casos crónicos de poluição, como no rio Ave, e alastraram-se mesmo para o interior. Recentemente, um relatório da Comissão Europeia afirmou que Portugal e Espanha tinham os rios com pior qualidade.

Resíduos industriais

Sines, Estarreja, Maceira, Souselas e Outão são apenas símbolos do falhanço de mais de década e meia de tentativas para encontrar uma solução definitiva para os lixos industriais perigosos. Desde que em 1985 saiu legislação para implantar um sistema de tratamento dos resíduos industriais, os diferentes partidos que assumem o Governo parecem competir entre si sobre quem comete as maiores trapalhadas. No início dos anos 90, o Governo de Cavaco Silva depois de ver encravar, devido à contestação, uma incineradora em Sines, decidiu-se por Estarreja. Contudo, com a vitória do Partido Socialista nas eleições de 1995, essa solução foi abandonada a favor da co-incineração. Com estudos, polémicas e testes à mistura o tempo passou e com nova mudança governamental em 2002, surgiu um volte-face. A co-incineração foi abandonada e reiniciado um processo em que se está longe de saber a tecnologia a adoptar e a localização, Como até ao final do mandato do Governo de Durão Barroso não será provável que o sistema esteja instalado, caso surja nova alternância democrática o processo ameaça regressar à estaca zero.

Lixos urbanos

Terá sido a limpeza do século? Pelo menos era aquilo que então garantia José Sócrates quando se concluiu o encerramento das cerca de 350 imundas lixeiras que empestavam o país, substituídas que foram por duas centrais de incineração, 37 aterros sanitários e cinco estações de compostagem. Dinheiro não faltou: 1,3 mil milhões de euros. Certo é que se a paisagem portuguesa ficou um pouco mais limpa, não está necessariamente imune a contaminações. Entre finais de 1999 e 2002, inspecções detectaram deficiências graves em 27 aterros. Além disso, sem estratégia para os resíduos industriais, muitos aterros já estão saturados, necessitando de novos investimentos, desta vez com menor financiamento comunitário.
Mas o maior problema é o crescimento incomensurável de resíduos. Em 1993, produziu-se cerca de 3,3 milhões de toneladas de lixos urbanos; actualmente já se ultrapassou os 5 milhões por ano. A reutilização praticamente «morreu» e o aumento da taxa de reciclagem é, em termos absolutos, inferior ao ritmo de crescimento da produção de lixos. Portugal está, neste sector, ainda muito longe de cumprir as metas exigidas por Bruxelas.

Conservação da natureza

Na lista da União Internacional de Conservação da Natureza, Portugal surge com 17 animais considerados em risco crítico de extinção, 14 ameaçados, 85 classificados como vulneráveis e mais 15 plantas com diferentes situações de vulnerabilidade. Esta situação coloca o nosso país como o segundo pior da Europa – atrás da imensa Federação Russa – e em 38º à escala mundial. Mas a situação pode ainda ser pior, porque os estudos são poucos e desde 1990 que não se faz uma actualização nacional das espécies em perigo. Um dos animais mais emblemáticos do país – o lince-ibérico, símbolo de uma das áreas protegidas, a Reserva Natural da Serra da Malcata – já não é visto no país há mais de uma década. Nos últimos anos acumulam-se as pressões imobiliárias, turísticas e rodoviárias nas áreas protegidas. O Instituto de Conservação da Natureza tem visto os investimentos a minguar e a ser-lhe retirado competências No ano passado, cerca de 20% da área dizimada pelos fogos florestais estava integrada em áreas protegidas e sítios de Rede Natura. Aliás, a Rede Natura não passou ainda do papel – apenas um dos 132 sítios classificados possui plano estratégico.

Qualidade do ar

De jardim à beira mar plantado onde a aragem tudo limpava, Portugal tem vindo a acordar para a triste realidade da poluição atmosférica. Se durante décadas eram as populações junto aos pólos industriais que mais sofriam as agruras da má qualidade do ar, o crescimento exponencial do tráfego automóvel martirizaram agora as zonas urbanas. Actualmente, as áreas metropolitanas de Lisboa e Porto são das regiões mais poluídas da Europa. Na capital portuguesa durante o ano passado registaram-se cerca de 150 dias de ultrapassagem dos limites para as partículas finas, quando a legislação comunitária somente permite 35 dias a partir de 2005. No ano passado, para o ozono foram também detectadas, em várias zonas do país, mais de 300 horas acima do limiar de informação ao público, que nem sempre foi avisado.
Dados recentes da Comissão Europeia permitiram mostrar que algumas indústrias portuguesas – sobretudo as centrais térmicas, refinarias e cimenteiras – são das mais poluentes da União Europeia. Outro relatório de Bruxelas mostrou há cerca de dois meses que Portugal é o país que pior se tem comportado em termos de evolução da emissão de poluentes acidificantes e de dióxido de carbono.

Litoral

Cerca de um terço da faixa litoral do país apresenta elevados riscos de erosão e, sobretudo na orla costeira nortenha, algumas praias estão a regredir a ritmos de várias dezenas de metros por ano. Apesar disso, as pressões imobiliárias e turísticas mantêm-se fortes, sem que os planos de ordenamento da orla costeira (POOC) se tornem eficazes, tanto mais que não têm jurisdição sobre as zonas urbanas e portuárias. Continua, aliás, sem estar aprovado o POOC do sotavento algarvio, o caso mais bicudo por se estar perante as ilhas-barreira de Faro onde a construção clandestina pulula.
Em termos de qualidade das praias, embora algumas áreas balneares tenham melhorado nos últimos anos – sobretudo em Vila Nova de Gaia –, noutras faixas, como a Costa do Estoril e Norte do Porto, os problemas subsistem devido a problemas de saneamento básico. A situação, contudo, somente não é pior porque muitas autarquias colocam barreiras nos pequenos cursos de água para que não drenem esgotos para o mar durante a época balnear.
Contudo, aquilo que mais choca no litoral é a profusão de construção maciça. No Algarve, por exemplo, 65% das habitações localizam-se na freguesias com praias e, na última década, dois terços dos 60 mil novos fogos foram construídos na faixa costeira.

Mar

Um ano e meio após o acidente do petroleiro Prestige – que só não atingiu a costa nacional por sorte, ou por interferência da Nossa Senhora de Fátima, segundo o ministro Paulo Portas – pouco mudou em Portugal na prevenção dos riscos marítimos. Somente no mês passado foram assinados os contratos para a construção de dois navios anti-poluição, mas que apenas estarão concluídos, na melhor das hipóteses, dentro de três anos. Portugal continua também sem definir nenhum porto de abrigo em caso de algum acidente com um petroleiro. Além disso, tendo em conta que ainda não foi instalado o sistema de vigilância de longo alcance – o chamado VTS -, os petroleiros continuam a navegar demasiado próximos da costa nacional, sendo a ponta de Sagres um dos locais mais sensíveis.
Apesar da sua história e vocação marítima, Portugal continua a desinvestir nos recursos marinhos e pesqueiros. Os efeitos das alterações climáticas sobre os recursos pesqueiros ainda não estão estudados e grassa uma certa desorientação no instituto de investigação das pescas com a integração incompreensível, decidida pelo actual Governo, do IPIMAR no Instituto Nacional de Investigação Agrária.

Floresta

Se antes de 2003 Portugal já era o país europeu com maior taxa de destruição florestal provocada pelos incêndios, o Verão passado ainda agravou mais a situação. Na primeira década da democracia arderam, em média, 40 mil hectares por ano. Em 2003 atingiu cerca de 450 mil hectares, dos quais cerca de 120 mil estavam integrados em áreas com estatuto de protecção ambiental. Enquanto o Governo preferiu culpar o São Pedro e os incendiários por esta catástrofe, as causas são, afinal, mais prosaicas: a desertificação do interior nas últimas décadas, o absentismo dos proprietários, as más políticas de florestação, baseadas em monoculturas, e a fraca aposta na prevenção.
Além dos impactes ambientais (nunca estudados) e sociais (que serão devastadores nos próximos anos), os efeitos económicos dos incêndios florestais têm-se evidenciado na última década. A redução da produção de pinho reduziu mais de 40% entre 1993 e 2000 e, segundo o Instituto Nacional de Estatística, o valor acrescentado bruto do sector florestal desceu de 1,2% em 1990 para 0,7% em 2001 – ou seja, uma quebra de quase 42%.

Urbanismo

Somente a crise económica dos últimos anos provocou um ligeiro desaceleramento da febre do betão em Portugal. Os anos 90 marcaram, sem margem para dúvidas, uma época de desenfreado dinamismo imobiliário, para o qual contribuiu a descida das taxas de juro, o florescimento do mercado de segunda habitação e, sobretudo, a permissividade do Governo e das autarquias, sempre dispostas a receber as mais-valias da construção e especulação por via das antigas sisa e contribuição autárquica.
Durante os anos 90 construiram-se cerca de 900 mil novos fogos, ultrapassando mesmo os 100 mil por ano na parte final da década. Nos anos 80 rondava os 50 mil por ano. As periferias de Lisboa e Porto – que «aproveitaram» o forte abandono populacional destas duas cidades –, bem como os distritos de Braga e Faro foram as que mais cresceram em construção nova. Ao invés, os anos 90 marcaram uma forte desertificação das aldeias do interior, sobretudo de adultos jovens, razão pela qual é constante o fecho de escolas primárias no interior do país.
Em termos de políticas urbanas, pese embora todas as autarquias tenham concluído os seus planos directores, os efeitos são nulos, pois todos os municípios previram generosas áreas de expansão urbanística.

Energia

Num dos países europeus com maior dependência energética do estrangeiro, os desperdícios são uma das imagens de marca de Portugal. Por exemplo, entre 1999 e 2003, enquanto o consumo de electricidade cresceu 20,3%, o PIB quedou-se, no total, em apenas 4,5%. Mesmo no ano passado, apesar do produto interno bruto ter regredido cerca de 1%, o consumo de electricidade cresceu 5%.
Os consumos de combustíveis também não têm parado, na estreita medida do desincentivo nos transportes público e na promoção da «carro-dependência». Por isso, entre 1990 e o ano passado as vendas de gasolinas subiram 51% e as de gasóleo (incluindo industrial) triplicaram.
De acordo com um recente relatório da Comissão Europeia, o nosso país registou a pior evolução na intensidade energética na década de 90. No ano 2000, Portugal gastava mais 12% de energia para produzir a mesma quantidade de riqueza, comparativamente com aquilo que ocorria no início desse decénio. É por estas e outras razões que o nosso país apresenta um cenário bastante grave ao nível das emissões de gases de efeito de estufa, tendo há muito ultrapassado as quotas de Quioto. Tanto mais porque, além de tudo isto, Portugal é, a par da Grécia, o país que menos usa energias renováveis.