REPORTAGENS AMBIENTAIS

ESTRAGO DA NAÇÃO

quarta-feira, setembro 13, 2006

Uma verdade inconveniente

Texto publicado na revista NS

AL GORE, O MESSIAS ECOLÓGICO


Seis anos após perder as eleições norte-americanas na secretaria, Al Gore «ressuscita» com uma missão: salvar a Terra. Um livro e um documentário sobre as alterações climáticas estão a abalar as (más) consciências dos Estados Unidos.


Era uma vez um povo que criou uma nação baseada na liberdade e na dignidade individual. Um povo que ganhou duas guerras contra o fascismo. Um povo que aboliu a escravatura. Um povo que reconheceu o direito de voto às mulheres. Um povo que revolucionou a medicina. Um povo que apoiou as minorias contra a discriminação social. E um povo que chegou à Lua. E agora esse povo tornou-se o mau da fita: a sua acção nas últimas décadas está a contribuir muito para tornar os furacões mais poderosos e destrutivos, aumentar a desertificação e os incêndios florestais devastadores, provocar alterações da produtividade agrícola e o derretimento das calotes polares na Antárctida e Gronelândia – enfim, um sem número de modificações que poderá tornar, no futuro, a Terra num planeta doido e nada agradável para se viver. Mas os «vilões» têm ainda a chance de virar «heróis»... se assim quiserem e (re)conhecerem «uma verdade inconveniente».

Este é, em tese, o principal fio condutor do projecto de Al Gore – vice-presidente dos Estados Unidos durante a Administração Clinton e candidato derrotado nas polémicas eleições do início de 2001. Um projecto arrojado e em dose dupla. No final do mês de Maio, cerca de uma centena de salas de cinema norte-americanas começaram a exibir um documentário – intitulado «An Inconvenient Truth» –, feito em colaboração com Lawrence Bender, produtor de quase todos os filmes de Quentin Tarantino, como «Cães Danados», «Pulp Fiction» e «Kill Bill». Poucos dias depois, seria a vez da publicação do livro homónimo. Numa semana, o documentário colocou-se na nona posição do top cinematográfico dos Estados Unidos; o livro subiu para o terceiro posto da não-ficção. Nada mau para o país que se recusa a ratificar o protocolo de Quioto e onde a maioria das notícias dos mais influentes jornais norte-americanos ainda transmite a existência de dúvidas sobre a responsabilidade humana pelas alterações climáticas.

Este sucesso não surge por acaso: o livro e sobretudo o documentário baseiam-se, para além de dados, em imagens arrepiantes sobre os efeitos ambientais e económicos que já se fazem sentir um pouco por todo o mundo, surgindo Al Gore como um desenvolto cicerone. Estamos perante uma espécie de sucedâneo (melhor do que o original) do blockbuster «O Dia Depois de Amanhã», realizado em 2004 por Roland Emmerich – mas sem efeitos especiais, porque real. Chocantemente real.

Aquilo que menos surpreende na dupla livro-documentário acaba por ser o próprio autor. Afinal, Al Gore não é um novato em questões ambientais, embora a sua juventude não seja, nestas matérias, muito recomendável. Aliás, esse período da sua vida está bem longe da sua actual imagem de homem metódico, lutador e de comportamento irrepreensível. Filho de um antigo senador do Tennessee, do qual herdou o nome, o jovem Al sempre manifestou grande inteligência – aos 13 anos tinha um QI de 133 –, mas nunca passou de estudante mediano, por vezes a raiar o medíocre em áreas em que se tornaria, mais tarde, um especialista. Em vésperas das eleições de 2001, o Washington Post traçou-lhe o seu percurso académico, mostrando que ele não tinha motivos para se rir de George W. Bush. Pelo contrário, enquanto esteve no Colégio de Harvard, a partir de 1965, as suas classificações foram até inferiores às que o actual presidente norte-americano – que nunca se conseguiu descolar de uma imagem de pouco inteligente – obteve em Yale. Na Dunster House – uma selecta residência universitária –, os colegas do jovem Al, entre os quais se encontrava o actor Tommy Lee Jones, viam-no a gastar o seu tempo na piscina, a ver televisão, comer hambúrgueres e, por vezes, a fumar marijuana. E, claro, nos seus 1,87 metros de altura, a jogar futebol americano, onde chegou a equipa do colégio.

Nos primeiros tempos em Harvard, este seu comportamento algo libertino trouxe-lhe amargos de boca: receberia mesmo algumas classificações deploráveis, como a Ciências Naturais em que teve um D (a pior classificação possível). Alarmados, os pais trataram de o corrigir. As notas melhoraram, mas Al Gore evitou sempre escolher disciplinas e cursos ligados a matemática e a lógica, apesar de o seu QI apontar para potencialidades nestas áreas. Bom aluno Al Gore apenas o foi em disciplinas de religião – obteve um A+ num curso de história religiosa – e em arte. Aliás, o único grau académico que ostenta na sua passagem por Harvard é um simples bacharelato em Artes, obtido em Junho de 1969, aos 21 anos.

Dois meses depois, Al Gore alistou-se como voluntário para a guerra do Vietname, embora sendo opositor ao conflito. Mas não seguiu logo para o campo de batalha, tendo ficado estacionado em Fort Rucker, no Alabama, durante quase um ano e meio, onde escrevia para o jornal militar «The Army Flier». No Vietname estaria apenas pouco mais de quatro meses. Regressado aos Estados Unidos na Primavera de 1971, tornar-se-ia jornalista no «Tennessean», durante cinco anos, tendo tentado conciliar essa profissão com os cursos de direito e de estudos religiosos. Não terminou nem um nem outro.

A sua vida intermitente tinha, contudo, uma boa rede: o pai tinha sido senador do Tennessee durante 18 anos e «puxou-o» para a política. Assim, aos 28 anos, Al Gore candidatou-se ao Congresso e foi eleito. Ocuparia esse cargo até 1984, quando ganhou as eleições para o Senado daquele Estado. Quatro anos mais tarde tentou voos mais altos, concorrendo às primárias pelo Partido Democrata. Mas perdeu para Michael Dukakis, que seria arrasado ma reeleição de Ronald Reagan. E manter-se-ia senador até ser convidado por Bill Clinton para a vice-presidência dos Estados Unidos. Durante esse período no Senado tornou-se, no entanto, um dos mais activos políticos norte-americanos pró-ambiente, tendo sido um dos promotores da Globe International – uma organização de senadores norte-americanos, deputados japoneses e do Parlamento Europeu. Nessa instituição de cariz ambiental chegou a ser presidente, tendo Carlos Pimenta – então eurodeputado social-democrata – como seu vice.

Em 1992, ainda como senador do Tennessee – e menos de um ano antes de ser eleito vice-presidente dos Estados Unidos – publicaria um muito aclamado «A Terra à procura de equilíbrio», onde abordava várias temáticas e colocava mesmo em causa o «american way of life» – o estilo que está sempre confiante nas tecnologias e no egocentrismo. «Acreditar que nos podemos adaptar a tudo é, fundamentalmente, uma espécie de preguiça, uma fé arrogante na nossa capacidade de reagir a tempo para salvar a nossa pele», escreveria ele. Apesar de ter sido um «best-seller», estas e outras atitudes posições assumidas por Al Gore desencadeariam fortes ataques políticos. O antigo presidente George Bush – pai do actual – apelidá-lo-ia de «Ozone Man», depreciando assim a sua então luta pelo banimento dos CFC.

Mas a veia ambientalista de Al Gore nunca foi nenhuma jogada política dos democratas. Foi sobretudo fruto de um acidente familiar: em 1989, o atropelamento quase fatal do seu filho mais novo levou-o, segundo conta no seu livro, a decidir dedicar-se mais à família. E isso implicou concentrar-se mais no futuro que os seus filhos teriam na Terra. Ou seja, às causas ambientais e, entre estas, às medidas para inverter o aquecimento global Porque para ele somente faz sentido essa preocupação com as gerações futuras se se lhes «entregar» uma Terra habitável, feita com base nas «nossas acções, e não apenas com as nossas promessas», como enfatiza na introdução de «Uma Verdade Inconveniente».

Se durante os oito anos de vice-presidência, a esmagadora maioria das ideias de Al Gore, transmitidas no seu «A Terra à procura de equilíbrio», não foram postas em prática, os Estados Unidos viveram, em todo o caso, uma das suas fases mais ambientalistas. E foram mesmo um dos países que manifestaram em Quioto, no ano de 1997, uma maior abertura para a assinatura do protocolo para a redução das emissões de dióxido de carbono. Mas até ao final do segundo mandato de Bill Clinton, por pressão do Senado, nunca este país chegou a ratificar este protocolo. Com a eleição de George W. Bush, a Terra acabou por ser a grande derrotada. Em poucas semanas, a Administração Bush «liquidou» um conjunto de compromissos ambientais e durante anos os Estados Unidos mantiveram a posição oficial em recusar as teses do aquecimento global causado pelo Homem. Isto apesar de 221 cidades de 39 Estados norte-americanos terem assumido medidas para redução das emissões de gases de estufa. Mas sem a participação norte-americana no protocolo de Quioto, este sempre ficará coxo: afinal, embora em vigor, este país contribui 30% para as emissões globais de dióxido de carbono.

E é isso que Al Gore pretende mudar com participação cívica. E tem levado tão a sério a sua «missão» que recusa qualquer hipótese de retornar à política activa. No entanto, a imprensa norte-americana destaca a sua recente «ressurreição política», chama-lhe já «Comeback Kid» e aponta-o como candidato potencial dos democratas às próximas eleições, em vez da previsível Hillary Clinton.

Esta «aparição» de Al Gore poderá, de facto, causar um terramoto nas consciências norte-americanas, mais ainda por a bola de neve estar a iniciar-se. O antigo vice-presidente já anunciou que os lucros do documentário – cuja receita na primeira semana ultrapassou um milhão de euros – serão destinados a treinar mil pessoas para divulgarem um «slide-show» em que o documentário se baseia. Mas os norte-americanos estão também a começar a convencer-se que, na verdade, não é apenas nas questões ambientais que o Mundo e os Estados Unidos poderiam ser diferentes... se Al Gore tivesse vencido as eleições de 2001.

Não que se esperasse que os atentados da Al-Qaeda do 11 de Setembro de 2001 tivessem sido evitados, mas sim o resto. Cada vez mais norte-americanos comungam de uma opinião que Al Gore transmitiu recentemente num forum em Estocolmo: «comigo, jamais invadiríamos um país [Iraque] que não nos atacou, não tiraríamos o dinheiro das famílias trabalhadoras para o entregarmos às famílias ricas, não tentaríamos controlar e intimidar os media, nem torturaríamos, por rotina, as pessoas». Em suma, «seríamos um país diferente». Resta saber se, no futuro, com Al Gore como «mensageiro ambiental», seremos um Mundo diferente ou se um Mundo a sofrer as amarguras do aquecimento global.