REPORTAGENS AMBIENTAIS

ESTRAGO DA NAÇÃO

segunda-feira, setembro 24, 2007

ENTREVISTA INTEGRAL AO PRESIDENTE DA AUTORIDADE DE SEGURANÇA ALIMENTAR E ECONÓMICA (ASAE), ANTÓNIO NUNES, PUBLICADA NA EDIÇÃO DE 22 DE SETEMBRO DE 2007 DA REVISTA NOTÍCIAS SÁBADO

Quando está a trabalhar na sede, onde costuma almoçar?

Não tenho um sítio exclusivo, depende com quem almoce.

Esses restaurantes já foram inspeccionados pela ASAE?

Há cerca de oito meses decidimos fazer, nos estabelecimentos em redor da ASAE e das direcções regionais, acções de fiscalização, para obviar críticas. E fizemo-las com brigadas mistas, ou seja, não apenas com inspectores locais.

E o grau de infracções foi diferente do que, por hábito, encontram noutras zonas.

Não. O grau foi sensivelmente semelhante, na casa dos 20%.

Houve já algum restaurante que frequentava muito onde se tenha encontrado uma situação particularmente grave?


Sim, num caso que até foi bastante noticiado: o restaurante Galeto [na Avenida da República, em Lisboa], onde durante muitos anos comi, porque estava muito próximo do meu então local de trabalho [Direcção-Geral de Viação]. Não estava em causa a qualidade e manipulação dos produtos, mas como a acção de fiscalização encontrou situações de más condições higieno-sanitárias no controlo de pragas foi encerrado temporariamente.

Já lá voltou depois de ter sido reaberto?

Ainda não, mas não tenho problemas em lá regressar.

O caso do Galeto foi dos poucos estabelecimentos encerrados por imposição da ASAE que se tornou público. Qual a razão para isso não ser regra?

Enquanto os processos estão em cursos encontram-se em segredo de justiça e nós não podemos divulgar. Nessa situação ficou-se a saber porque é um restaurante que sempre estivera ininterruptamente aberto. E como era também frequentado por jornalistas, a sua curiosidade fez com que se soubesse a causa desse encerramento. Não vemos inconveniente, se houver um compromisso com as associações do sector, que isso seja feito, se for útil para o consumidor. Mas talvez seja mais útil que seja feita pela positiva, que os operadores visitados pela ASAE o digam. Se estiverem bem até podem publicitar.

A ideia de que uma tasca ou casa de pasto pode ter piores condições higieno-sanitárias do que um restaurante de qualidade é mesmo verdadeira?



É evidente que sim, até pelo tipo de confecção que se faz. Quem está a fazer bifanas produz um grau mais elevado de vapor e de gordura do que quem está a fazer um peixe grelhado com todas as condições. As casas de petiscos ou os restaurantes chineses são grandes produtores de gorduras e se não houver uma grande atenção à limpeza quase diária acumula-se matéria orgânica e poeiras, que levam a condições de degradação. Mas também temos estabelecimentos de petiscos com boas condições. Eu acho que estes problemas têm mais a ver com a formação dos operadores. Muitas das tascas e casas de petiscos têm pessoas já com alguma idade, que não se adaptaram a um novo fenómeno de qualidade imposto pelas normas comunitárias. E por essa falta de formação e por o negócio não ter lucros elevados acabam por ter dificuldades em cumprir.

E nesses casos sociais mais complexos, como age a ASAE?

Pode ter de actuar com uma multa ou mesmo com o encerramento. Os nossos inspectores são humanos, mas a questão será sempre saber se deveremos ter uma relação pessoal ou institucional. E é por demais evidente que, independentemente de se gostar ou não de se aplicar uma sanção, tem de se fazer a inspecção à luz dos regulamentos, caso contrário deixa de existir capacidade de aplicação de um juízo imparcial. Eu admito que alguns dos meus inspectores que encerrem um estabelecimento nesse tipo de situações o façam com angústia, mas não nos compete o julgamento desses casos pessoais. Temos de ter uma espécie de parede opaca em que não se vê quem está por trás.

Não se poderia ter alguma ponderação para esses casos?

Não fazemos inspecções pedagógicas do género «limpe isto que voltamos daqui a meia hora». A legislação no âmbito alimentar é maioritariamente comunitária, não é nacional. E ultimamente a União Europeia em vez de fazer directivas com alguma margem de manobra impõe regulamentos rígidos.

Está a tornar-se extremista?

Não sei se é extremista. Quando se faz uma legislação comunitária é para a generalidade dos países. E esses casos que falávamos são marginais. Além disso, a maior parte desta legislação segue um modelo nórdico que é mais seco, com menores relações pessoais, em que a crítica social é muito elevada. Quando isso é aplicado em países do Sul da Europa começa a ser mais complicado, porque nós gostamos de argumentar, discutir, regatear.

Porém, muitos operadores queixam-se da demasiada severidade, que a ASAE encontra sempre qualquer coisa...

A função da ASAE tem de ser vista em duas perspectivas. A nossa função é defender o consumidor e garantir a livre e justa concorrência. Neste último caso significa que os operadores económicos que se encontram bem têm também de ser defendidos. Por exemplo, quando recentemente fomos ao Porto fiscalizar os bares recebemos críticas da respectiva associação por termos feito encerramentos. Mas aquilo que a associação se esqueceu de referir foi que fechámos 13 em 62 estabelecimentos inspeccionados. Ou seja, uma minoria estava mal. E essa minoria estava a fazer concorrência desleal.

Na situação dos bares portuenses, os encerramentos deveram-se à falta de licenciamento, que é concedido pela autarquia. Alguns estavam abertos há muito tempo sem que a Câmara Municipal tenha intervindo. Como foi isso possível?

Não perguntei à autarquia nem é essa a nossa função. Digo-lhe apenas que quando visitamos um local e detectamos algo contra a lei são levantados autos, quando constatamos que existe crime fazemos a detenção, se possível em flagrante delito, e quando não existe licenciamento encerramos. E a questão da burocracia do licenciamento já não é assim tão complexa como era há anos.

Nas acções da ASAE fica-se com a sensação de que em cada tiro cai um melro. Significa que há um excessivo rigor ou isto mostra que agora se está a dar cacete quando durante anos se deu cenoura?

Não sei se alguma vez se deu cenoura. Admito que, no passado, houvesse menor rigor por indefinição do quadro normativo. Por exemplo, na área alimentar havia quatro ou cinco organismos que fiscalizavam, que acabavam por empurrar uns para os outros. Era fácil não actuar porque se pensava que alguém viria atrás. Agora, e sobretudo desde a recente legislação de Julho, a ASAE é a única entidade com funções de fiscalização no sector da restauração e bebidas. Isto também veio dar um rosto, com toda a carga positiva e negativa.

Negativa em que aspecto?

Qualquer entidade que faz fiscalização acaba por ter essa carga negativa.

Se entrar, apenas como cidadão, num estabelecimento onde o reconheçam, sente algum nervosismo no proprietário?

(risos) Não sinto nervosismo nenhum.

Mas quando entra uma brigada da ASAE no seu estabelecimento, o proprietário pensará sempre «estou tramado»...

Temos que desdramatizar essa ideia. A taxa de incumprimento anda nos 30%. É alto, mas não é catastrófico.

Esse é o valor médio. Mas em determinado sectores parece-me catastrófico. Por exemplo, a ASAE em Julho inspeccionou 161 operadores de apoio de praia. Resultado: 115 contra-ordenações, 19 encerramentos e dois processos-crime...

Esse é o sector, no âmbito da restauração e bebidas, onde encontraremos situações mais gravosas. O problema dos apoios de praia é serem estruturas temporárias que estão abertos quatro ou cinco meses por ano, sendo as licenças muito precárias. Nessas circunstâncias, o operador monta o estabelecimento com o mínimo de investimento, pois há o risco de não abrir no futuro.

Isso parece uma situação quase kafkiana. O Estado concede licenças precárias, que não permite investimento; depois multa, porque não houve investimento...

A questão é outra: se esses operadores optarem por não manipular aí os alimentos não há taxa de incumprimento. Podem recorrer à compra de alimentos pré-embalados, não usar copos de vidro, etc.. Mas os incumprimentos verificam-se também em estabelecimentos novos. Por exemplo, recentemente fomos a uma casa de espectáculos e constatámos que os sete bares estavam a funcionar de forma ilegal, sem licença, com produtos à vista, sem afixação de preços e livro de reclamações, sem caixa registadora. E era um espaço novo! E até o proprietário se emendar, a ASAE fez visitas ao longo de quatro semanas. Eu não se quanto ele vai pagar de coimas, mas vai ter muita coima para pagar...

Será que o crime compensa?

Eu acho que não. Para uma sociedade, uma coima pode atingir os 47.500 euros, por coisas até menores. Por más condições higieno-sanitárias vai até aos 3.500 euros. Está a ver que não compensa.

Referia-me a médio ou longo prazo. Quantas inspecções a ASAE conseguiu fazer este ano?

Cerca de 17 mil.

Como sei existirem entre 80 mil e 90 mil operadores, isso dá uma frequência média de uma inspecção em cada cinco anos para cada estabelecimento...

Pode não ser assim. A metodologia não é essa. O nosso objectivo este ano é fiscalizar 34 mil operadores e conseguir que em cada freguesia [4.050 em Portugal Continental] haja pelo menos um operador inspeccionado. Quando se visita, por exemplo, um restaurante não significa que não se regresse lá muito brevemente.

Existem então listas negras?

Não, mas há informações negras.

Que significa isso?

Normalmente quando estamos a preparar uma operação partimos com um conjunto de informações bastante vasto. Por exemplo, recebemos por ano cerca de 100 mil reclamações dos consumidores. No ano passado enviaram-nos cerca de 7.500 queixas e denúncias. E estamos também atentos ao que vem na comunicação social. Além disto, temos ainda estudos internos sobre os sectores com um grau maior de prevaricação. Quando há duas semanas fomos aos bares do Porto não íamos cegos. As brigadas sabiam onde iam em concreto, a que horas.

Nos casos em que a ASAE intervém de surpresa há «agentes infiltrados»?

(risos) Se tivesse não lhe poderia dizer. Temos trabalho de investigação no terreno, como é evidente. A ASAE é um órgão de policiamento e investigação criminal. E, por isso, temos investigadores com a função de recolher informação.

A fiscalização aos bares do Porto, de que falou, foi uma iniciativa da ASAE ou surgiu por orientação do Governo?

O Governo não dá orientações à ASAE sobre os casos em concreto que deve fiscalizar.

A vossa autonomia é total?

O Governo apenas deu orientações – e essa é sua competência – sobre a estratégia para a defesa dos consumidores e da livre concorrência, e atribui-nos os meios.

Em 2006, as estatísticas de saúde apontam para cerca de 500 casos de doenças infecciosas intestinais (febre tifóide e salmoneloses), que são causadas por via alimentar. Houve uma ligeira melhorai em relação aos anos anteriores. Qual deve ser o objectivo? Descer para quanto?

O objectivo é tolerância zero.

Mas isso é uma utopia, como é em relação à sinistralidade rodoviária...

Nas questões toxicológicas não se pode ter uma meta. Temos sempre de fazer uma fiscalização apertada. Esse tipo de doenças resulta dos ovos e da tipologia da comida. Em três dos quatro surtos que já ocorreram este ano constatou-se que foi do consumo de bacalhau à Brás. E basta uma festa para que a estatística fique logo derrotada.

O que pode acontecer a um restaurante onde ocorra um problema desse género?

Muitas vezes a culpa nem é do restaurante, mas sim do produto. Daí que uma das questões que se discute neste sector é a identificação dos pontos de risco. Se houver um bom controlo de qualidade dos ovos, esses problemas não existem.

Como se consegue detectar então de quem é a culpa num caso de surto?


Normalmente é do produto. Mas isso é detectável sobretudo quando ficam restos de comida. Aliás, na grande restauração é obrigatório fazer uma amostra do produto alimentar e guardá-lo para ser possível analisá-lo, no prazo de 48 horas, em caso de problema. E isso faz-se até para segurança do próprio operador, pois uma grande empresa de catering não quer arriscar o seu nome.

Já se notam efeitos positivos na saúde dos portugueses por via da actuação da ASAE?

A nossa preocupação é a segurança alimentar. As questões de saúde, de obesidade ou de consumo excessivo são matérias do Ministério da Saúde. Não temos essa competência nem devemos ter. Eu costumo dar este exemplo: embora possa não ter qualidade alimentar, normalmente o fast-food tem segurança alimentar.

A ASAE não deve, portanto, pegar em matérias de qualidade nutricional...

Isso está mais próximo da educação. Não há nenhuma fiscalização que resolva o problema da alheira ou do cozido à portuguesa. Nunca com imposições, porque até se poderia, por absurdo, proibir as chouriças, mas garanto que se continuariam a consumir.

Mas há pratos tradicionais que deixaram de aparecer nos restaurantes...

Eu não conheço nenhum que não possa ser feito, desde que se cumpram as regras. Mesmo aquele que causa a guerra total: a galinha de cabidela. Hoje é possível comprar a galinha e comprar o sangue. O que não é possível é matar a galinha para dentro do tacho.

A matança do porco já nem sequer é possível de se fazer...

Isso não é verdade. Tudo o que diz respeito ao auto-consumo não tem as regras da restauração. Pode matar-se o porco entre amigo, depois de ser visto pelo veterinário municipal. Aquilo que não é possível é levar o porco para o restaurante, matá-lo no pátio e dá-lo aos clientes. E quem mata sete ou oito leitões por semana também não pode dizer que é para auto-consumo.

Como se consegue, de um ano para o outro, alterar hábitos culturais bastante enraizados nos portugueses?

Esse é um argumento que se utiliza, mas que não corresponde à verdade. A maior parte da actual legislação, embora em estilo diferente, é semelhante à existente em 1994. Há mais de uma década que existe lei. A diferença é que agora se aplica.

Estamos perante, então, um problema cultural...

A primeira coisa que se faz em Portugal quando sai uma lei é pensar como a contornar. O português pensa sempre: «como é que eu faço para não cumprir esta norma?». Está intrínseco.

Apesar actuação positiva da ASAE, independentemente das críticas que se possam fazer...

... poucas, poucas...

... fica-se com a sensação de ser caso único no país. Estou a recordar-se das suiniculturas. Durante anos, poluíram impunemente, sem que nada fosse feito pelo Ministério do Ambiente. E agora, a ASAE mandou encerrar algumas e deteve mesmo os proprietários, por razões de bem-estar animal e segurança alimentar. Por que razão a ASAE actua assim e as outras não?

Não faço ideia. Vai ter de fazer o favor de perguntar isso às 16 inspecções que existem no país (risos).

Mas se fosse inspector-geral do Ambiente já teria actuado para acabar com a poluição das suiniculturas?

Não conheço a legislação dos outros organismos, por isso tenho dificuldade em lhe responder. Alguma legislação de controlo ambiental tem prazos, se calhar demasiado alargados, para que as suiniculturas corrijam processos.

Pois, prazos que duram há décadas...

Terá de fazer uma entrevista, sobre essa matéria ao inspector-geral do Ambiente. No nosso caso, verificámos que as águas e as rações não estavam em condições e que o número de efectivos era excedido largamente. E como os proprietários não retiraram os animais a mais, detivemo-los cinco dias depois por crime de desobediência.

Isso parece-me aquele filme dos mafiosos que não se prendem por homicídios, mas sim por evasão fiscal...

Não sei o que é isso. A função da ASAE é fazer inspecções e cumprir a lei. Qualquer que seja o equipamento ou operador.

É um bom negócio para o Estado a receita das multas?

Não sei se é. Nós temos um orçamento de 20 milhões de euros. Este ano, as coimas deverão atingir os 800 mil euros de receita, o que representa entre 20% e 30% do total. Por isso, quando dizem que nós fiscalizamos para ir buscar dinheiro estão equivocados. Não há nenhuma acção de fiscalização que seja lucrativa.

domingo, setembro 09, 2007

O BETÃO TEM MUITA FORÇA

Publicado na revista Notícias Sábado de 1 de Setembro de 2007 (texto não editado)

Foi dia de festa, aquele dia 8 de Setembro de 2005. Na varanda do Hotel Rosamar, em Tróia, em ambiente vistoso, o primeiro-ministro José Sócrates accionou os detonadores que, em poucos segundos, estraçalharam duas das seis torres da Torralta, símbolos de um turismo massificado com resultados desastrosos. «Foi um espectáculo de destruição bonito», declararia então Belmiro de Azevedo, o todo-poderoso presidente da Sonae, que anos antes negociara com o Estado, num longo processo, assumir o passivo da Torralta, na ordem dos 80 milhões de euros, em troca de urbanizar uma área de 440 hectares daquela península.

O Governo em peso e a autarquia de Grândola apadrinharam, desde o início, aquilo que se anunciava como o paradigma do novo turismo português. Nem se destacava muito a palavra urbanização; a requalificação foi a (única) palavra de ordem. Estava-se, em suma, perante um projecto «bom para o turismo e também para o ambiente», como então destacava José Sócrates, que elogiava a «atitude construtiva de Belmiro de Azevedo ao querer investir na zona».

Dois anos depois, a Sonae Turismo tem, de facto, demonstrado essa «atitude construtiva», desejando recuperar o tempo perdido em negociações e dar uma cara nova à parte norte da península de Tróia. Mas não propriamente uma cara mais desafogada, pelo contrário. Embora as obras no terreno se tenham apenas iniciado em meados do ano passado, aquilo que mais se destaca, por agora, é a densidade de betão. E a rapidez com que tudo está a ser feito. «Neste momento estão a trabalhar uma dezena de empreiteiros com cerca de mil trabalhadores», refere Rui d’Ávila, administrador da Sonae Turismo. E são necessários para tamanha quantidade de obra. O núcleo mais urbano do projecto da Sonae será constituído por uma marina – praticamente concluída e com capacidade para um pouco menos de 200 embarcações –, quatro hotéis – três dos quais já existentes, estando dois em remodelação e outro em construção –, um casino e centro de congressos, e 650 apartamentos. Destes, 78 estarão defronte da marina, com uma vista privilegiada sobre a serra da Arrábida e Setúbal, enquanto os restantes localizam-se na zona central (71 apartamentos) e na parte poente junto à praia (211 apartamentos). Numa segunda fase haverá ainda lugar para mais umas três centenas e meia de apartamentos na zona nascente. Fora deste núcleo mais denso, na parte sul, na faixa defronte ao local onde se encontravam as duas torres implodidas, estão previstas zonas de moradias, num total de quase duas centenas de unidades. Esta é, aliás, uma das mais apetecíveis zonas, sobretudo em relação aos lotes para as vivendas unifamiliares. No passado dia 11 de Junho esses lotes foram colocados à venda – com áreas entres 1.100 e 2.600 metros quadrados, que permitem a construção de vivendas até cerca de 340 metros quadrados – e sumiram-se num ápice. Mesmo se os preços não eram nada módicos: os lotes perto das dunas custavam até 1,5 milhões de euros, a que acrescerá, previsivelmente, um valor de 600 mil euros pela construção da vivenda.

Mas a menina dos olhos deste empreendimento é a parte das unidades turísticas que ficarão implantadas em redor da Caldeira – uma «baía» estuarina formada pelo Sado. O chamado eco-resort será formado por 120 unidades numa das zonas mais isoladas e belas da península de Tróia. Devido à sua sensibilidade ambiental, as construções será em madeira. Mas com muito luxo e muito dinheiro envolvido. «Ainda estamos numa fase prévia do projecto, mas contamos que seja a parte do investimento que nos vai dar mais dinheiro», confessa Rui d’Ávila.

Por fim, para completar o projecto urbanístico da Sonae, junto ao actual campo de golfe será implantado um hotel para 600 hóspedes. No entanto, estas duas últimas componentes aguardam ainda uma definição no âmbito dos planos de pormenor em aprovação. «A nossa filosofia seguiu um pouco o modelo de Nova Iorque: uma zona mais densa, onde as pessoas querem ter tudo mais perto, e uma outra com baixíssima densidade urbana, que tem a componente verde e ambiental», defende Rui d’Ávila.

Comparações à parte – e mesmo descontando estar a parte norte da península de Tróia transformada num verdadeiro estaleiro de obras –, betão é betão. E o betão começa a ganhar primazia. Se se olhar esta zona a partir do terraço da imponente torre do Hotel Tulipa Mar, no cimo dos seus 16 pisos, praticamente não se vislumbra chão nu, somente gruas e os esqueletos dos edifícios em construção. Nestes destaca-se a obra a cargo do Grupo Amorim. Aproveitando uma das torres, que servirá para um hotel, alargou-se, e de que maneira, a área de betão para formar também o centro de congressos e o casino, mais as habituais lojas que servirão para os turistas se ocuparem durante a noite ou nos dias estivais de chuva. Apeteceria chamar aquilo mamarracho, não fosse a tabuleta junto à estrada de Tróia nos garantir que se esta perante uma operação de requalificação.

Mas nem é necessário estar em plena Península de Tróia para constatar essa massificação urbana, que fazem recordar algumas zonas algarvias, pese embora, ressalve-se, com menor altura dos edifícios construídos de raiz. Desde o cais de Setúbal, ainda bem longe, se notam as mudanças no perfil desta frágil língua de areia. Desapareceram duas torres, é certo, mas em troca «recebeu-se» blocos de edifícios de quatro pisos que visivelmente marcam quem se aproxima do cais. Nada que surpreenda, tendo em conta que quando esta parte do investimento do Troiaresort estiver concluída – previsivelmente já no próximo Verão – a capacidade hoteleira duplicará (passando para cerca de duas mil camas) e acrescentar-se-ão mais 650 apartamentos aos 420 já existentes, que vêm dos tempos da Torralta. «Perde-se um bocado do imaginário que vinha da travessia do Sado, pois deparar-se-á com uma zona bastante densa», salienta Ricardo Martinez, dirigente da Viver Tróia, uma associação de moradores dos apartamentos já existentes, construídos no período da Torralta.

Em todo o caso, este professor do Instituto Politécnico de Setúbal considera que, mesmo assim, houve algum bom-senso da Sonae no plano de urbanização. «A autarquia de Grândola vê Tróia com uma mina de ouro, para obtenção de receitas; por sua vontade ainda se construiria mais», sustenta. Aliás, as lutas desta associação para conter as intenções expansionistas da edilidade foram enormes, mas com algumas vitórias. Por exemplo, conseguiram que a central de co-geração ficasse fora da área residencial, que fossem criados três campos de jogos, que o Hotel Casino fosse rebaixado para os 14 metros (em vez dos inicialmente previstos 22 metros) e que existissem áreas verdes de utilidade pública.

Certo é que, independentemente dos transtornos que as próprias obras estão a causar aos moradores – o despertador, mesmo num oitavo andar, está marcado para as sete da manhã, ao som dos martelos pneumáticos e de rebarbadoras, e para comprar víveres é impossível na zona em obras –, quem já lá vive tem até alguns motivos para sorrir. Com tantos equipamentos lúdicos e comerciais previstos e o surgimento de apartamentos de luxo, numa zona que estava ao abandono, os preços dos apartamentos já existentes valorizaram de forma significativa. «Em muitos casos, duplicaram de preço», garante Ricardo Martinez. E quem «ajudou» foi, mais uma vez, a Sonae, pois os preços de referência já estão marcados: para se ter um T0 nos novos edifícios tem de se desembolsar nunca menos de 250 mil euros.

Porém, não há só vantagens futuras para os actuais moradores dos prédios da antiga Torralta. Os lugares de estacionamento, que serão escassos à superfície, poderão vir a ser pagos pelos residentes, e ainda mais pelos visitantes. E a factura dos serviços de saneamento também. Exemplo disso já se verifica com a taxa de saneamento cobrada pela Infratróia – uma empresa municipal detida em 75% pela autarquia de Grândola e em 25% pela Sonae Turismo – que passou de uns modestos quatro euros por trimestre para 35 euros. E sem aviso prévio, o que, segundo Ricardo Martinez, contraria o que estava estipulado.

«Defendo um turismo de muita qualidade, de grande rigor pelo respeito ambiental». Esta frase de Belmiro de Azevedo, que sorridente segura uma bandeira num dos buracos do green do Troiaresort, com arvoredo atrás e a serra da Arrábida a servir de cenário de fundo, fez capa da edição de Março da revista Villas & Golfe. Nesse aspecto, a Sonae Turismo pode, em abono da sua tese, acenar com as intervenções na recuperação do coberto vegetal da península. Numa zona que estava desleixada, a empresa tem estado a apostar na gestão florestal dos seus 440 hectares com algum cuidado, a suas expensas. A praga do nemátodo-do-pinheiro – que se instalou a sul do Sado com um poder letal impressionante – está agora em fase de contenção, o controlo de infestantes como a acácia e o chorão também. Está também previsto que o campo de golfe use os esgotos tratados para rega e grande parte dos edifícios recorrerão à energia solar para aquecimento. Alem disso, ao longo da estrada que segue até à Comporta está projectada uma ciclovia, além de alguns percursos pedestres, bem como a contenção no estacionamento caótico ao longo da estrada até Soltróia. E num sector paralelo, a arqueologia, a Sonae tem estado, de igual forma, a fazer um excelente trabalho, recuperando e promovendo o estudo das ruínas romanas, na zona da Caldeira, que anos a fio de desmazelo governamental quase fizeram desaparecer.

Porém, pode até o patrão da Sonae estar cheio de boas intenções, mas infelizmente existem máculas no empreendimento. Uma delas é um pecado original, que está longe de apenas ser cometido pela empresa de Belmiro de Azevedo: construir numa restinga, como é o caso da península de Tróia, é algo que dificilmente pode ser considerado ecológico. Na verdade, caso o regime da Reserva Ecológica Nacional (REN), aprovado na década de 80 do século passado, fosse efectivamente aplicado, jamais seria possível qualquer construção desde a Comporta até Tróia. E isto por uma simples razão: em toda e qualquer restinga está explicitamente incluída, na legislação, como zona non edificandi. Mas ninguém pode apontar o dedo aos empresários, porque os sucessivos planos de ordenamento permitiram sempre farta construção em toda a zona e a carta de REN de Grândola, aprovada pelo Governo, omitiu aquilo que a legislação estipulava.

Por outro lado, o Troiaresort vai implicar, sem margem para dúvida, um aumento da pressão nesta frágil zona. Não apenas em virtude dos edifícios construídos como também, e em especial, no aumento do tráfego fluvial. Neste aspecto, uma das soluções mais criticadas pelos ambientalistas é a mudança da zona dos ferries para a parte central da península, junto ao empreendimento da Soltróia, ficando o actual cais a receber apenas os barcos com passageiros. «O novo cais dos ferries localiza-se numa zona de alimentação dos golfinhos do Sado, além de que no futuro o aumento do tráfego implicará uma maior pressão sobre as populações deste mamífero, que está em perigoso declínio», sustenta Francisco Ferreira, dirigente da associação ambientalista Quercus. «Talvez seja por prever que os golfinhos do Sado se extingam que a Sonae Turismo escolheu o flamingo como símbolo do seu resort e não um golfinho», ironiza.

Mas, actualmente, o maior impacte visível causado pela Sonae Turismo na península de Tróia acaba por ser algo que não seria expectável, e chega a ser mesmo inadmissível. Durante as operações de dragagem para a construção da marina, permitiu-se que os empreiteiros atirassem a areia do fundo do estuário para as praias. E assim, de repente, numa extensão de cerca de dois quilómetros de outrora belos e limpos areais encontram-se pedras de todos os formatos e feitios, pedaços de tijolo, de arames, de mármore – enfim, um «lindo serviço», que vai custar a resolver – se é que se resolve. «Vai demorar anos até que os areais fiquem como estavam, pois a camada de areia que aqui colocaram tem cerca de dois metros de altura, e mesmo que façam limpezas, passado pouco tempo o vento ou a acção do mar descobrirá mais detritos», refere Ricardo Marquez. A Sonae Turismo defende que o insucesso desta operação, que foi autorizada por entidades oficiais, foi provocada por erros de avaliação dos empreiteiros, mas certo é que o mal está feito.

Parece evidente, nem que seja pelo sucesso comercial já alcançado nas vendas do Troiaresort – que ronda actualmente os 50% e anunciando-se agora uma aposta na captação de compradores chineses –, que os 400 milhões de euros que a Sonae Turismo pretende investir nesta zona alegrará muita gente. A começar pela própria Sonae Turismo e os empreiteiros, o que é, diga-se, legítimo. Mas há mais beneficiários: a autarquia de Grândola «arrisca-se» a engordar os seus cofres, por via dos chamados impostos sobre o betão. Não apenas com os projectos do Troiaresort mas de todos os que serão construído na sua extensa faixa costeira (ver caixa). Para se ter uma ideia, basta dizer que por cada apartamento de, suponhamos, 300 mil euros, o município arrecadará por ano qualquer coisa como três mil euros de Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI), já sem falar dos ganhos da antiga sisa (actual IMT).

Mas será que o sacrifício de mais uma faixa do litoral português é compensado pelas vantagens para a economia da região e do país – e, em sentido mais estrito, no emprego da região. É certo que se anunciaram, aquando da implosão, que os investimentos da Sonae Turismo iriam implicar a criação de 10 mil empregos directos e indirectos. Porém, neste como em outros grandes projectos, nunca se faz uma avaliação à posteriori do efectivo impacte. E na falta de dados será curioso ver as estatísticas da freguesia do Carvalhal, onde se insere a península de Tróia. Durante os anos 90 – período em que se iniciou a construção em força de empreendimentos de segunda habitação, sobretudo por causa da Soltróia –, construíram-se cerca de 1.100 fogos. Porém, passada a febre da construção, a população activa nesta freguesia manteve-se estável (cerca de 500 empregados) e o número de desempregados diminuiu de 80 para um pouco menos de 40. Ou seja, pouca coisa para tanto betão. Veremos, em breve, como será com o tão badalado projecto do Troiaresort.

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TODOS PARA O AL(L)ENTEJO

Não existe outra faixa costeira semelhante: areais brancos, dunas, falésias, praias selvagens. Ao longo do município de Grândola encontram-se alguns dos últimos redutos naturais do litoral português. Encontra-se, mas vai deixar de se encontrar. Depois de anos em que se travaram os apetites imobiliários, as miras viraram-se agora e em força para esta região. E as aprovações sucedem-se no actual Governo.

A urbanização do litoral de Grândola iniciou-se com o projecto da Torralta nos anos 70 do século passado, que correu mal, como se sabe. Mas um pouco mais a sul, na Soltróia, o mercado da segunda habitação de luxo correu muito melhor em termos de negócio e tendo-se construído cerca de mil vivendas em menos de uma década. E a partir daí começaram a surgir mais projectos, com uma componente minimalista de hotelaria e muita segunda habitação – um sector que está afastado da crise do imobiliário. Assim, para além do projecto da Troiaresort esta a iniciar-se uma invasão galopante no litoral de Grândola, onde quase nada escapa.

Ainda na península de Tróia estão já em fase de aprovação os projectos da empresa criada numa parceria entre a Sonae e o Grupo Pestana, a norte de Soltróia. Antes do Carvalhal, ainda vai haver terreno para novo empreendimento da Sonae. No total, a península ficará com o equivalente a cerca de 10 mil camas.

Já junto a Comporta está previsto um mega-empreendimento do Grupo Espírito Santo, de contornos ainda nebulosos, mas que se anuncia com uma dimensão de 5.700 camas. Para sul estão já aprovados e em fase de construção dois empreendimentos em plena Rede Natura: o da Costa Terra e o da Herdade dos Pinheirinhos. No primeiro caso serão construídos três hotéis, cinco aparthotéis, quatro aldeamentos turísticos, 204 moradias de turismo residencial, um campo de golfe, um centro equestre e mais uma série de equipamentos. No segundo caso, serão implantados dois hotéis, três aldeamentos com 260 apartamentos e moradias em banda, 204 moradias e um campo de golfe

Expectante está ainda a zona defronte à belíssima praia da Raposa, um escondido reduto do litoral por estar dentro da prisão de Pinheiro da Cruz. As intenções do Governo é deslocalizar o presídio, abrindo assim a porta a mais projectos. Sobretudo se o défice público assim o ditar. Nesse caso, há-de arranjar-se, para o efeito e a preceito, mais um Projecto de Interesse Nacional (PIN), tão em voga nos dias que correm.


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AS PRAIAS PRIVADAS

A democracia parece que tem alguns aspectos desagradáveis para as classes mais abastadas: «obriga-as» a partilhar os areais com o comum dos cidadãos. Por isso, com maior ou menor beneplácito das autarquias, nos últimos tempos tem-se visto métodos expeditos para retirar os «indesejáveis» da fruição das praias frequentadas pelos mais abastados. De uma forma simples: o cidadão remediado ou vai a pé ou então tem de pagar uma choruda factura de estacionamento. Este ano, por exemplo, soube-se que uma empresa municipal aplica na praia da Quinta do Lago uma taxa de sete euros para estacionamento dos carros.

Na península de Tróia, mais propriamente na urbanização privada da Soltróia, achou-se método ainda mais imaginativo. Em Outubro de 2005, a autarquia de Grândola decidiu aprovar um regulamento de trânsito que prevê, entre outros aspectos, o pagamento de uma taxa de 0,30 euros por cada meia hora de estacionamento após uma borla da primeira meia hora. Porém, como a autarquia não tem, ou não quer ter, pessoal a fiscalizar, decidiu atribuir essa função à Associação de Proprietários em Tróia (APROSOL), que ficou assim com a possibilidade de cobrar taxas de estacionamento em espaço público, algo que é de muito duvidosa legalidade. Porém, como não existem ainda parquímetros nos estacionamentos junto à praia, a APROSOL decidiu colocar uma cancela de controlo nas entradas, que somente abrem à saída depois de se pagar a respectiva taxa de estacionamento, mesmo se o veículo andou apenas a percorrer as estradas públicas da urbanização. Para tornar mais surrealista tudo isto, o caça-níqueis da APROSOL não tem qualquer número de registo e fornece um recibo de 0,00 euros, depois de ser paga a quantia solicitada. Para um verdadeiro recibo – onde se diz que «após recuperação do investimento, parte da receita reverte para apoio social no concelho de Grândola» – tem de se pedir na recepção da urbanização. Reclamar da legalidade deste expediente vale de pouco: paga-se à mesma e gasta-se mais tempo, que acaba por ser cobrado. Recorde-se que o presidente da autarquia de Grândola é Carlos Beato, um dos capitães de Abril...

domingo, setembro 02, 2007

À ESPERA DO PRÓXIMO FÓSFORO

Texto publicado na NS na edição de 25 de Agosto de 2007

Em 2003, Monchique vestiu-se de negro em quase 80% do seu território. Quatro anos depois, a serra começa a mostrar-se, novamente, verde, mas com os mesmos problemas estruturais. O Estado prometeu ajudar, mas acabou por ser pouco... ou nada.

Mesmo num país de fogo, como Portugal, nunca antes se vira algo semelhante: no final da primeira quinzena de Setembro de 2003, um incêndio na serra de Monchique lavrou durante vários dias, deixando um rasto inigualável de destruição. Contas feitas, de repente, em menos de uma semana, um pouco mais de 30 mil hectares daquela verdejante serra – cerca de 80% do território do município algarvio – transformou-se num manto de carvão. Eucaliptais, pinhais, montados de sobro, medronhais, terrenos incultos, quase nada escapou às chamas. Sobraram as casas e nem todas. No Deus me acuda, arderam cerca de 120 casas e até mesmo uma do Senhor: a capela de Alferce.

Hoje, este incêndio ainda se mantém na memória de quem vive na serra de Monchique, porque ninguém esteve livre do perigo nem da tristeza dos dias negros que se sucederam. «Foi um cenário de uma beleza horrível; as árvores como que explodiam e as projecções eram enormes e aterradoras», recorda Rolf Osang, um jornalista e artista plástico alemão, radicado na Malhada Quente desde o início da presente década. «Depois, veio o silêncio do pós-fogo», acrescenta. E não só: num dos concelhos mais deprimidos do país – e um dos dois do Algarve que perderam população nos anos 90 –, a destruição da floresta e das actividades silvopastoris deixou marcas indeléveis. Nas pessoas e na débil economia da região. A madeira de pinho e de eucalipto perdeu-se, a cortiça dos sobreiros ficou inutilizada, colmeias arderam, os cogumelos sumiram-se, o medronho desapareceu...

Porém, quatro anos volvidos, o cenário da serra de Monchique modificou-se. De relance parece mesmo que nunca qualquer fogo por ali passou, pois o verde marca novamente presença. NO entanto, um olhar mais atento, percorrendo os caminhos, permite observar que, por entre o mato e o arvoredo, co-existem inúmeros troncos calcinados, testemunhos do inferno, que nunca foram retirados. E que, quase toda a mancha florestal, sobretudo de eucalipto, é o resultado da regeneração natural (germinação por sementes) ou, na maior parte dos casos, por rebentação de toiça. No caso dos sobreiros, muitas são as árvores mortas que ainda se encontram de pé, mas a esmagadora maioria das que foram lambidas pelo fogo não morreram. Aliás, num estudo recente, realizado pelo Instituto Superior de Agronomia na vizinha serra do Caldeirão – que foi afectada por um incêndio em 2004 – apurou-se que a taxa de sobrevivência ao fim de um ano e meio foi de 84%.

Mas, isto somente por ilusão pode ser visto com alegria. Tal como cresceram as árvores, medraram os matos. Muito, por sinal; tanto que se torna, em muitas zonas, quase inacessível uma entrada na floresta, que se vai regenerando, anarquicamente. Ou seja, caminhando para um estado semelhante ao que se estava na véspera do grande incêndio de 2004 na serra de Monchique. À espera do próximo fósforo. Salva-se, pelo menos, a limpeza visível em algumas faixas laterais das estradas – mas isso é pouco, muito pouco.

«Perdeu-se uma oportunidade de ouro para se fazer uma floresta mais organizada, rentável e menos susceptível aos incêndios», lamenta Hélder Águas, um proprietário florestal que integra uma cooperativa local. A culpa, na sua opinião, é sobretudo do Estado, que cria demasiadas burocracias, não apoia tecnicamente os projectos – mais grave ainda porque estamos perante uma zona com carência crónica de know-how – e até foge de se juntar aos proprietários locais para implantar melhores técnicas de silvicultura. «Além das dificuldades em escoar a madeira de eucalipto, por causa da cartelização das celuloses, as dificuldades de promover o associativismo florestal na região aumentaram ainda mais quando o próprio Estado não quis integrar uma sua propriedade, com cerca de mil hectares, na Zona de Intervenção Florestal (ZIF)», salienta este responsável. Aliás, esta propriedade estatal – a Herdade da Parra, já no concelho de Silves –, que também foi atingida pelo fogo de 2003, dá amargos de boca aos empresários florestais monchiquenses. «Depois do incêndio, a Cooperativa Agrícola de Reguengos de Monsaraz angariou uma verba de mais de 200 mil euros para apoiar as pessoas afectadas em Monchique, mas o Governo apropriou-se do dinheiro e anunciou que o vai aplicar exclusivamente na sua Herdade da Parra», salienta Hélder Águas.

Perante isto, sem efeito está, neste momento, um projecto anunciado em 2005 para a restauração de áreas ardidas – em que os eucaliptais seriam marginados por sobreiros – e que contava com a colaboração da WWF – Fundo Mundial para a Natureza e da Comissão de Coordenação Regional do Algarve. Ainda se avançou com a área-piloto de 100 hectares, mas como não se constituiu a ZIF, tudo ficou na estaca zero.

Mas mesmo os proprietários que pretenderam remar contra a maré têm estado a passar por um autêntico calvário. O Estado, logo após o incêndio, prometeu mundos e fundos para apoiar a reflorestação, mas acabou por oferecer um presente envenenado. «O tipo de apoio concedido pelo Governo, através do IFADAP, é não atractivo e mesmo totalmente desincentivador», salienta José Costa Duarte, engenheiro agrónomo reformado, que começou a fazer contas e descobriu que o Estado acaba até por lucrar em detrimento da desgraça alheia. Por um lado, o IFADAP apenas paga, com fundos europeus, após a execução dos trabalhos – que podem demorar ano e meio –, pelo que a esmagadora maioria dos proprietários terá de pedir empréstimos à banca. Mas pior ainda acontece nos casos, maioritários, de proprietários que não tenham contabilidade organizada por os seus rendimentos serem reduzidos. «Nestas situações, os subsídios, mesmo que usados exclusivamente para pagar despesas, são vistos pela Administração Fiscal como lucros, sendo taxados», refere Costa Duarte que estimou ter de vir a pagar mais de nove mil euros de IRS se viesse a receber um apoio de fundos comunitários da ordem dos 60 mil euros. «Qualquer ente, mesmo no uso mínimo das suas capacidades mentais, terá que dizer:: ajudas com estas características, não, muito agradecido!», sintetiza este proprietário, lamentando a falta de abertura do Governo para alterar as normas para os apoios à reflorestação. «Aquilo que o Estado queria não era cobrar impostos, era fazer pura extorsão; por isso, desisti do apoio», conclui Costa Duarte.

Situação similar ocorre com os apoios aos descortiçamento – operação essencial para que os sobreiros vivos, afectados pelo fogo, possam iniciar a sua recuperação e voltar a produzir cortiça de qualidade. «O Estado apenas garante que por, cada arroba, o proprietário recebe oito euros, o que é um valor que nem sequer paga a retirada dessa cortiça e o transporte para a corticeira», salienta Hélder Águas. «Além disso, existe a obrigatoriedade de se retirarem todas as árvores mortas nos três anos seguintes, o que sendo essencial, sem apoios de monta torna-se desincentivadora para se apostar no sobreiro». Por tudo isto, muitos proprietários mantêm as árvores tal como estão: carbonizadas. Ou, como derradeira alternativa, tentam desfazer-se dos terrenos. Aliás, uma parte significativa dos proprietários monchiquenses desfez-se já dos seus terrenos – grande parte vendendo-os aos espanhóis da Iberfloresta – ou simplesmente deixaram que a Natureza tentasse a sua sorte.

«Por estas razões, o futuro de uma parte importante de Monchique será de abandono florestal, o que significará que a serra será ainda mais invadida por eucalipto, em muitos casos comportando-se como uma invasora, tal como sucede com a acácia, pois encontra aqui excelentes condições», vaticina Hélder Águas, acrescentando que, «devido a este factor, já existem muitas zonas de eucaliptal que não existiam antes do incêndio de 2003».

Tanto Hélder Águas como Costa Duarte advogam a necessidade de repensar a floresta nos próximos anos, apostando na criação de biomassa. «No estrangeiro conseguem-se valores mais elevados para as centrais energéticas de biomassa do que aquilo que as celuloses, como a Portucel, pagam pela madeira, mas em Portugal existem muitos estrangulamentos para o transporte ferroviário e taxas elevadas nos portos, que inviabilizam esta alternativa». Para estes dois proprietários florestais, se a situação se mantiver, quase certo será que nova tragédia será uma mera questão de tempo. E se isso, lamentavelmente, acontecer, por certo que o Governo de então virá a terreiro fazer as mesmas promessas que foram feitas em 2003. E tudo se repetirá, por certo. Nunca se aprenderá!