REPORTAGENS AMBIENTAIS

ESTRAGO DA NAÇÃO

sexta-feira, outubro 26, 2007

Entrevista (não editada) a João Soares, publicada na revista Notícias Sábado de 13 de Outubro de 2007
Questão prévia: causou polémica a proposta da ex-vereadora Maria José Nogueira Pinto de se impor quotas às lojas chinesas na Baixa e, em alternativa, criar-se uma Chinatown em Lisboa noutra zona. Que comentário lhe suscita?

Eu estive recentemente com Maria José Nogueira Pinto e ela esclareceu-me que não tinha dito aquilo que surgiu na imprensa. Eu não comento coisas que são espuma mediática de declarações descontextualizadas. Não é justo.

Em todo o caso, quando era presidente da autarquia até já existia essa ideia, não?

Já havia um embrião de Chinatown em alguns espaços comerciais na envolvente do Martim Moniz. Essas coisas surgem naturalmente, por iniciativa da própria comunidade.

Nunca por via administrativa, portanto...

Nem isso era possível nem fazia sentido.

Estamos numa esplanada da Praça das Flores. Preferia estar a conceder esta entrevista naquele que foi o seu gabinete na Praça do Município?

Esse gabinete está agora muito bem ocupado por um amigo meu, que às vezes também passa por esta esplanada que é uma das mais bonitas de Lisboa.

Já falou com António Costa desde que foi eleito presidente da autarquia lisboeta?

Ainda há dias estive com ele no jantar do aniversário da SIC.

E quando está com ele, dá-lhe conselhos ou ele pede-lhos?

Não lhos dou nem ele precisa de conselhos.

Sente saudades de estar na Câmara de Lisboa?

Não. Eu sou um homem que vive bem com a vida e a olhar permanentemente para o futuro. Eu acho que o melhor está sempre para vir.

O seu nome chegou a ser ventilado como candidato socialista às eleições de Julho...

Quando tenho um gosto ou interesse forte por algo exponho-o com toda a clareza. Acho que, passe a imodéstia, isso me distingue pela positiva da generalidade dos políticos. Neste caso, perante o descalabro total da autarquia de Lisboa – que tinha estado ligado com tanta intensidade e emprenho durante 12 anos –, manifestei a minha disponibilidade, Mas não um interesse. Até porque há o velho provérbio que diz não se dever voltar aos sítios onde se foi feliz. A solução que foi escolhida pelo Partido Socialista saiu vitoriosa e teve o meu apoio.

Mas se ambicionasse ser candidato e não fosse aceite pelo partido, tomaria a mesma decisão de Helena Roseta?

Com todo o respeito, não. Para mim está fora de questão exercer actividade política fora do quadro partidário. Eu sou um democrata genuíno que sempre defendi a existência de partidos e continuo a acreditar nas suas virtudes. Em todo o caso, acho que os partidos precisam de reformas e que sofrem de algum descrédito.

Isso notou-se particularmente em Lisboa, com dois candidatos independentes (Carmona Rodrigues e Helena Roseta) a receberem mais de 25% dos votos. Foi um sinal dos eleitores?

Claro que sim. Depois do 25 de Abri, os partidos tiveram o monopólio da actividade política a todos os níveis e só a pouco e pouco se foi abrindo a possibilidade de candidaturas independentes. Do meu ponto de vista, menos do que seria aceitável. Eu sempre defendi que as candidaturas deveriam ser apresentadas por grupos de cidadãos e depois assumidas pelos partidos políticos, como em França. Os partidos nem sempre têm consciência das realidades locais e isso torna-se dramático, pois há, de facto, um défice de representatividade ao nível das autarquias e sobretudo no Parlamento.

Em Julho foi publicado o livro «Eleições Viciadas?», do jornalista João Ramos de Almeida sobre as eleições em Lisboa de 2001, em que perdeu para Santana Lopes. Leu-o?

Ainda não, na sua totalidade. Mas sei que se baseia num trabalho muito interessante, que respeito e admiro, do meu velho amigo Alberto Silva Lopes, que entretanto faleceu. Porém, pessoalmente não estou convencido que tenha havido uma viciação das eleições que tenha causada a minha derrota. Perdi-a por opção dos eleitores.

Esse livro, na sinopse, destaca as «numerosas discrepâncias reveladoras de um processo de escrutínio eleitoral (...) significativamente permeável a erros, à adulteração, intrusão ou intenção dolosa de alterar o sentido de voto dos eleitores». Isto parece grave num sistema democrático...

Vamos separar as coisas. Em primeiro lugar, em Portugal há já uma rotina que se estabeleceu que leva que os membros das mesas eleitorais tenham agora menos precaução e atenção, que podem causar pequenas irregularidades, mas sem distorcer o sentido do acto eleitoral. Não tenho conhecimento de, no pós-25 de Abril, eleições com fraudes. No âmbito das minhas funções na Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) já acompanhei mais de uma dezena de actos eleitorais e já vi viciações à partida. Como, por exemplo, na Bielorrússia, onde as urnas fechavam às cinco ou seis horas da tarde e às 11 da manhã às televisões já se estavam a dar os resultados. Isso em Portugal não acontece.

Não contestou por receio de abrir uma caixa de Pandora, ou não quis vencer na secretaria?

Passe a imodéstia, eu acho que perdi de forma injusta. A generalidade dos lisboetas até talvez tenha reconhecido que fizeram uma asneira quando elegeram Santana Lopes. Mas a verdade é que houve uma maioria relativa que se deixou seduzir por aquele senhor vindo da Figueira da Foz com a imagem de que tinha colocado aquele concelho no mapa.

Criticaram-no por ter sido algo displicente durante a campanha e de ter cometido erros na condução do processo do elevador do Castelo, acabou abortado por contestação pública...

O processo do elevador é talvez uma das causas próximas da minha derrota. Mas eu fiz a campanha com empenho. Achei sempre que os lisboetas tinham condições para decidir a partir do perfil e do trabalho que cada um tinha feito. E nunca fui homem de propaganda e de me meter a fazer promessas do género de meter o Parque Mayer a funcionar em oito meses ou criar 250 mil casas para jovens no centro histórico.

Perdeu então por causa do populismo de Santana Lopes?

Não gosto da expressão populismo.

Já imaginou que se não tivesse perdido as eleições de 2001, porventura António Guterres não se teria demitido e Santana Lopes não ganharia projecção. O país político seria agora muito diferente...

Isso não tenho a menor dúvida. Santana Lopes nunca teria sido primeiro-ministro, para mal dos portugueses (risos).

E o seu camarada José Sócrates não se tornaria, por isso, o actual primeiro-ministro...

Não sei. Nessa matéria não faço vaticínios.

Quando se candidatou em 2005 à autarquia de Sintra foi uma tentativa de redenção?

Não. Eu não sou um homem de fé; sou, no mínimo, agnóstico, para não dizer ateu. Portanto, não tenho de redimir de coisa nenhuma.

Referia-me a redenção política...

Não. Sintra é uma grande autarquia, um desafio que, em muitos aspectos, era mais interessante que Lisboa. Tenho pena de ter perdido. E perdi, olhe, por causa de uma componente que não falámos há pouco: o futebol. E, em especial em Sintra, por causa do Benfica – clube que tenho simpatia e que sem a minha intervenção, como autarca de Lisboa, não teria o novo estádio...

Pelas suas palavras, deduzo que um político para ser bem-sucedido tem de se dar bem com o futebol...

Ainda não estou aí, mas estou a caminhar muito seriamente para essa análise. Quer na derrota com Santana Lopes quer com Fernando Seara, o futebol teve uma importância. Comentar futebol na televisão tem um peso determinado no eleitorado. Em Sintra, senti isso com clareza, até na rua. Houve pessoas que me disseram: “Eu aprecio o seu trabalho em Lisboa, mas vou votar no careca (que é como lhe chamam), porque sou do Benfica”.

Quando se discutem questões relacionadas com Lisboa, pensa com os seus botões: se eu fosse o presidente faria assim ou assado?

Eu vivi com grande empenho a minha experiência autárquica em Lisboa. A partir do momento que virei a página, virei a página.

Esta pergunta servia para lhe propor um exercício. Se tivesse ganho as eleições em 2001, construiria o túnel do Marquês, sabendo-se que já mandara fazer o da Avenida João XXI?

O túnel do Marquês era um velho projecto do tempo de Nuno Abecassis que quer eu quer Jorge Sampaio mantivemos na gaveta porque achamos não ser uma prioridade analisando os custos-benefícios. Isso não significa que o túnel do Marquês não melhore a circulação na entrada e saída de Lisboa, mas é numa lógica de fluxo radial, diferente daquela que considero prioritária, a de via circular, como no túnel da João XXI.

E sobre o negócio do Parque Mayer?

Isso é assunto que a Justiça tratará.

Como comenta as acusações de corrupção que pairam em torno da Bragaparques, uma empresa que já há muitos anos trabalhava para a autarquia de Lisboa?

Tenho uma posição que vai muito contra-corrente. A Bragaparques fez, no meu tempo, obras que controlei passo-a-passo, como os parques de estacionamento no Martim Moniz e na Praça da Figueira, que são obras excelentes, que fizeram dentro do prazo e cumprindo os critérios. Agora a partir de uma história mal contada – que é a do vereador José Sá Fernandes e que envolve o seu irmão – transformou-se a Bragaparques em sinónimo de corrupção. Eu acho isso é injusto e se há dados concretos então provem.

Não há corrupção das autarquias?

Claro que há! Muita em muitas autarquias. Agora, enquanto autarca, eu garanto-lhe que denunciei imediatamente os poucos casos que tive conhecimento.

Quantos foram?

Já não me recordo. Dois ou três, que deram em processos disciplinares e em demissão.

Alguma vez sentiu, mesmo de forma insinuante, que o tentaram subornar.

Não.

Em entrevista à Visão, João Cravinho criticou o Partido Socialista por não ter ido mais longe no combate à corrupção. O senhor respondeu-lhe, acusando-o de falta de lealdade...

O Partido Socialista aprovou, ao longo dos anos, um vasto pacote legislativo de combate à corrupção. É falso que não se tenha empenhado e, por isso, é injusto que João Cravinho diga o que disse e se tenha ido embora. Eu acho que não se pode ir na ideia que a corrupção se combate ultrapassando os limites normais de respeito pelos direitos e liberdades do cidadão. O Partido Socialista apenas não concordou com a inversão do ónus da prova defendida por João Cravinho.

Cravinho foi-se embora ou foi chutado para cima?

Só é chutado quem deixa. E ser chutado para ser administrador do BERD (Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento)? Eu espero é que ele tenha sucesso no combate à corrupção nas instâncias bancárias, nomeadamente acabar com os off-shores, pois assim acabaria com parte da corrupção. Os off-shores são usados para o tráfico de droga e de armas.

Em Portugal, a corrupção parece estar mais associado ao sector da construção...

Não só.

Nas autarquias parece evidente, pelas informações que são dadas a público...

Houve momentos que deve ter sido assim.

Está a falar no passado. Significa que agora já não acontece?

Não ponho as mãos no fogo, pois não tenho informação. Mas nós não somos, nem de perto nem de longe, um país muito corrupto em termos europeus.

Regressemos novamente a Lisboa. Justifica-se construir tanto na capital quando se perde paulatinamente 100 mil habitantes por década?

Sobre Lisboa, estou desactualizado. Se quiser falar de Sintra pode perguntar, das coisas que lá deveriam ser feitas e não se fizeram.

As coisas estas interligadas. Lisboa perde população para os subúrbios, sobretudo para Sintra. O que fez em Lisboa para inverter essa situação?

Aumentei a oferta de habitação para jovens. Foram seis mil casas da EPUL Jovem, cujo programa foi desmantelado pelo Santana, pelo Carmona e por essa gente. E isso era uma peça chave.

Mas estamos agora numa situação em que, se se conseguir atrair pessoas para Lisboa, criar-se-ão zonas abandonadas nos subúrbios, pois a população da Área Metropolitana está estabilizada...

Em grandes capitais europeias já se implodiram bairros degradados.

Defende isso?

Vai depender de caso para caso. Eu defendo uma relação completamente diferente na forma de fazer urbanismo. O nosso ordenamento do território é, infelizmente, do pior que há na União Europeia, porque há uma falta de cuidado na ocupação do solo absolutamente inacreditável.

Sente que em Sinta – concelho que mais construiu nos anos 90 – está a haver agora alguma contenção?

O presidente eleito faz a sua imagem, em 80% ou 90%, em redor do futebol, e particularmente do Benfica. E depois construiu a imagem do homem que combate o betão, o que só em parte é verdade. Tem aprovado dezenas de projectos de pequenas casas e vivendas que correspondem também a uma ocupação territorial indesejável.

A sua posição em relação ao novo aeroporto tem sido minoritária no seio do Partido Socialista. Defende a manutenção da Portela...

Eu não conheço nenhuma capital europeia que tenha deitado fora um aeroporto, mesmo se constrói um novo. Acho que é um disparate dizer que se tira o aeroporto da Portela e se transforma a zona num espaço verde. Tirar o aeroporto dali é mau para a Área Metropolitana de Lisboa, é mau para o turismo e para a economia.

E que pensa sobre a nova alternativa em Alcochete?

Acho um disparate completo. A Portela não tem problema de pistas, mas sim de aerogares, mas que pode ser solucionado. Além disso, Lisboa está bem servida de espaços que poderiam ser aproveitados. Temos os aeródromos de Tires, Sintra, Alverca, Montijo e Ota. Tendo em conta os voos low cost, podemos manter Portela e aproveitar Alverca, que até tem o caminho-de-ferro e a auto-estrada junto à pista.

Não o incomoda o autismo do Governo nessa matéria, que é extensível a outros assuntos?

A mim não me incomoda nada, porque há um défice de decisão em Portugal. Desde sempre que tivemos dificuldades muito grandes em decidir.

Aprova todos os métodos deste Governo?


Não aprovo todos. Tenho também uma costela ibérica anarco-sindicalista.

Que significa isso?

Se há um Governo, eu estou sempre um bocadinho contra. Até porque há uns tipos chatos, mesmo no meu partido, que se levam muito a sério por serem Governo, por serem ministros ou secretários de Estado.

Quer dar-me uns exemplos?

Não estou para entrar nisso. Não dou armas ao adversário. Mas como dizia o outro: que os há, há.

Se tivesse vencido as eleições para secretário-geral do Partido Socialista em Outubro de 2004, seria agora primeiro-ministro. Convidaria José Sócrates para assumir uma pasta governamental?

(risos) Essa é uma daquelas perguntas... Se eu não tivesse caído de avião em 1989 em Angola não teria uma perna partida.

Obviamente a minha pergunta era retórica. Aquilo que pretendia saber era a sua avaliação do Governo liderado por José Sócrates...

A minha avaliação é positiva, mas não me revejo a 100%, como toda a gente.

É um Governo socialista?

Em alguns aspectos tem sido.

Em alguns aspectos. Isso é maioria, 40%, 60%?

Não faço a avaliação nessa base. Posso dizer-lhe que, por exemplo, a política de Vieira da Silva é séria porque se baseia no modelo social europeu. Ou da política de educação, apesar das dificuldades de comunicação da ministra. Mas estar à frente do Ministério da Educação é absolutamente terrível.

O Governo tem aprovado imensos projectos ao abrigo do regime de excepção para os Projectos de Interesse Nacional que conflituam, em alguns casos, com áreas ambientais. Mas além disso, acha que do ponto de vista social, quem tem dinheiro pode não ter de cumprir todos os trâmites legais?

Claro que não. Mas isso não está a acontecer agora mais do que acontecia antes. Evidentemente que, em qualquer parte do Mundo, quem tem dinheiro acaba por ser mais beneficiado. É a natureza das coisas. Mas a situação não é pior com este Governo e veja o caso dos bancos que começaram, com este Governo, a pagar impostos de uma maneira mais substancial.

Concluo, regressando à temática dos estrangeiros. Disse há uns anos que Lisboa é branca, mas a sua pele é mestiça. Existe uma boa integração?

Claro, e felizmente para nós. Essa é uma das nossas grandes riquezas. Eu tenho a prova em casa. A minha mulher é belga, somo um casal genuinamente europeu, com uma criança nascida em Bruxelas e outra em Lisboa.

domingo, outubro 14, 2007

LEI SECA NA SERRA

Reportagem, não editada, publicada em 6 de Outubro de 2007 na revista Notícias Sábado 

As duas loiras em poses sensuais, calças justas de ganga provocantemente rasgadas e de seios insinuantes mas resguardados, terão o condão de fazer, por certo, ressuscitar um morto. Porventura, foi com esse desiderato que a Agência Funerária Justino, em Monchique, decidiu escolher aquela foto para compor o seu habitual calendário, como de ordinário fazem as pequenas empresas de província. Porém, o exemplar que está pespegado na parede de uma pequena e anónima taberna desta vila algarvia, propagandeando os serviços da funerária, parecem não animar muito os poucos fregueses daquela quase lúgubre assoalhada de copos. Talvez por as ditas meninas terem perdido a novidade – afinal, desde Janeiro que já lá estarão expostas – ou então porque os fregueses da taberna não estão ali para ressuscitar mas sim para matar. Matar a sede ou matar o bicho. Neste último caso, sempre com um copo de aguardente de medronho.

Sempre foi assim: durante anos, talvez décadas ou séculos, ir a Monchique e não beber uma aguardente caseira de medronho seria semelhante a ir a Roma e não ver o Papa. Em qualquer tasca, café, restaurante, em casa de um amigo ou conhecido, mesmo sendo-se um mero viandante pelas serranias perdidas, poder-se-ia saborear livremente o forte líquido, quase incolor, que exala um característico travo àquele fruto silvestre.

Sempre assim foi, mas agora já não é. No último ano, a Brigada Fiscal da GNR e os inspectores da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) lançaram-se numa perseguição sem precedentes à caseira aguardente de medronho. Com o devido aparato de mandados de busca a casas, cães pisteiros, inspecções com «agentes infiltrados» em cafés e restaurantes, visitas a armazéns rurais à cata de alambiques. Neste pente fino, tudo o que não cumpria as exigentes normas comunitárias ou não pagava impostos foi desmantelado. E punido. Forte e feio. No rescaldo, um homem que vivia na freguesia de Pereiras, já no concelho de Odemira, suicidou-se em XXXXX deste ano depois de ser apanhado nas cegas malhas das inspecções.

Não admira, assim, que forasteiros, como os jornalistas da NS que entrem numa manhã na taberna que tem as meninas da Agência Funerária Justino, sejam olhados com desconfiança quando pedem uma aguardente de medronho. E se querem comprar uma tradicional, feita em alambique clandestino, nunca há. E se há é para ser servida ao copo, saindo de uma garrafa com rótulo legal. Se o líquido é caseiro ou não, saber-se-á no dia em que as brigadas de inspecção lá forem. Elas andam por ali... e até poderiam muito bem «travestir-se» de turistas ou até jornalistas, pensarão os monchiquenses.

A serra de Monchique é agora um pálido retrato daquilo que outrora foi classificado como o «jardim do Algarve». Num extenso e pioneiro relatório de 1868, feito pelo Instituto Geográfico com vista à arborização do país, esta serra assim era descrita, salientando-se mesmo que era mais bela do que as províncias do Minho ou da Beira, com os seus soutos e montados de azinho e sobro, além de uma profusão de outras árvores, arbustos e ervas. «Tudo é brinde da benigna e previdente Natureza», escreviam os autores daquele estudo. Nesse brinde surgia também o medronheiro que, embora existente em outras zonas do país (sobretudo na faixa Beira Litoral-Serra da Estrela), encontrava ali excelentes condições para se desenvolver. Pode-se mesmo dizer que existiam autênticos medronhais. Ao longo das décadas, as populações habituaram-se a produzir aguardente e a usar a madeira de medronheiro para a produção de carvão, que era de excelente qualidade. «Produziam-se milhares de litros de aguardente por ano durante até à primeira metade do século XX», diz Hélder Águas, um dos mais conhecidos apicultores de Monchique. «Em muitos casos, era um complemento importante para a economia caseira», acrescenta. Porém, já nessa altura a aguardente de medronho era mal-amada pelo Poder. Quase toda era então apenas consumida no Algarve, porque durante o Estado Novo existia uma lei que proibia a comercialização para norte do distrito de Beja, supostamente para proteger as outras aguardentes. «Essas eram de menor qualidade, mas tinham lobbies mais fortes que obstaculizava a entrada da nossa aguardente para as outras regiões», recorda Hélder Águas. Por isso, a solução foi traficar.

Assim aconteceu até ao 25 de Abril, mas quando se liberalizou o comércio já era um pouco tarde: os medronhais da serra de Monchique tinham perdido a sua importância e pujança, substituídos pela invasão do eucalipto – a árvore mais abundante nesta região, que não existia ali antes dos anos 60. Mesmo assim, a aguardente continuou a ser produzida de forma artesanal, embora sem grandes possibilidades de competir comercialmente com outras bebidas espirituosas.

Os anos 80 marcariam, contudo, o prenúncio do fim não apenas para o medronheiro mas para a própria vida económica da serra de Monchique. À crise do sector primário – agricultura e pecuária, sobretudo nas suiniculturas – começaram a surgir os incêndios florestais. Ciclicamente e cada vez mais destrutivos. O último, em 2003, dizimou, apenas no concelho de Monchique, mais de 30 mil hectares, cerca de 80% do território municipal. Quase toda a zona de medronheiro foi também afectada. «Nessa altura prometeram ajudas para a reflorestação, mas começaram a avisar que também iriam estar em cima da produção artesanal de aguardente de medronho», relembra Hélder Águas. As ajudas florestais não chegaram ainda, mas a fiscalização da aguardente de medronho, essa, veio em força. Quando então os medronheiros começavam a recuperar por entre as cinzas de uma serra agora maculada de fealdade.

António Nunes, presidente da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) assegura que «a produção de aguardente de medronho, se for para auto-consumo, não é ilegal», mas na serra de Monchique são muitas as histórias que se contam de contra-ordenações por alegadas produções insignificantes, sobretudo por parte da Brigada Fiscal da GNR. «Ainda há pouco tempo apanharam um homem com mais de 80 anos por ter cinco litros de aguardente», relata Hélder Águas. Se foi ou não só por isso, uma coisa parece evidente: mesmo quem nada produz na serra de Monchique não fica livre de incómodos pelos inspectores. Que o diga, por exemplo, António Manuel Duarte, morador na aldeia de Umbria, no concelho de Monchique, que recentemente teve a visita madrugadora da GNR. «Deve ter sido denúncia, porque vinham com um mandado para revistar a casa e todos os anexos; sabiam ao que vinham», diz. Mas como vieram, assim se foram, porque nada encontraram. E nem sequer deixaram um pedido de desculpa. «Só recebi uma carta a dizerem que o processo tinha sido arquivado», lamenta.

Esta saga inspectiva numa região tão pobre contrasta com a evidente falta de apoio estatal para amenizar as dificuldades dos produtores de aguardente caseira se puderem legalizar. Por um lado, está-se numa zona de população envelhecida e onde o associativismo é praticamente inexistente. Por outro, a teia burocrática e os custos que implicam a legalização de pequenas destilarias é incomportável numa região tão carenciada, envelhecida e com fraco – ou mesmo inexistente – dinamismo económico e empresarial. E, talvez a questão fundamental, jamais a aguardente de medronho foi alvo de uma tentativa para se criar, no seio da União Europeia, um estatuto de denominação de origem, de modo até a poder receber apoios para a produção e comercialização.

Por isso, não surpreende que existam apenas três destilarias legalizadas. António José da Costa, é um deles e conhece bem o calvário que já passou para cumprir minimamente as normas. Desde 1987 a comercializar a aguardente da marca Cimalhas – denominação do local onde possui medronheiros, que entretanto tentam recuperar do dantesco incêndio de 2003 –, foi sendo obrigado, ano após ano, a um sem-fim de burocracias para a destilaria e para a parte comercial. Isto para produzir umas centenas de litros por ano, que se quedaram apenas em 170 ao longo de 2006, por causa dos fogos. «Tratam-me como se fosse uma grande destilaria ou um produtor de vinhos», lamenta enquanto tenha recordar a lista completa de entidades a quem teve de pedir as mais diversas autorizações ou que necessita de prestar contas. São 13, número aziago: Instituto da Marcas, Direcção-Geral de Veterinária, ASAE, Sociedade Ponto Verde e os serviços regionais de Ambiente, da Economia, da Indústria, das Alfandegas, da Agricultura, do Trabalho, da Segurança Social, para além das Finanças e da autarquia. Além disso, existe todo um trabalho que se torna necessário fazer para não ter chatices em caso de inspecção. Por exemplo, tem de medir, de tempos em tempos, os teores de álcool, acetato de etilo, metanol, acidez e cobre, bem como preencher um infindável número de registos por tudo e por nada.

Mas mesmo assim António José da Costa não se livrou de alguns dissabores ao longo dos anos. «Até há pouco tempo, sempre que se vendia uma garrafa tinha um prazo de 24 horas para ir aos serviços alfandegários pagar o selo do imposto; e multaram-se por não ter cumprido», lamenta. Tudo isto para uma actividade que é pouco rentável, não apenas pelos custos de mão-de-obra e baixo rendimento como pelo facto de a parte substancial do trabalho se concentrar apenas em três meses do ano. «Se não gostasse disto, se não estivesse reformado e se não tivesse alguns conhecimentos por ter trabalhado na empresa de enchimento das águas de Monchique, já teria desistido porque isto não dava para viver», conclui.

Recentemente, em entrevista à NS, António Nunes, presidente da ASAE dizia que se poderia, por absurdo, proibir-se as chouriças, mas que estas se continuariam a consumir, referindo-se às questões de qualidade nutricional. No caso da aguardente caseira de medronho, é certo que a sua qualidade nutricional pode não ser a mais adequada – mas garantidamente não está contaminada bacteriologicamente como muitas águas de torneira distribuídas em muitos concelhos. Pode, também é certo, haver fuga ao fisco – mas os montantes serão tão irrisórios que nem justificam as verbas que os contribuintes pagam pelas inspecções à serra de Monchique. Mas, independentemente disto, como será óbvio, a aguardente de medronho caseira continuará a ser produzida em alambiques clandestinos.

Porém, algo mudou, sem dúvida. E agora, um forasteiro tem mais dificuldades em provar a genuína aguardente caseira na serra de Monchique do que comprar droga em Lisboa. Até porque, em Lisboa, se compra droga às claras e em Monchique pode não bastar um «conhecido». Aliás, como a própria reportagem da NS pôde constatar, durante uma tarde de sábado de Setembro passado, numa das tabernas de um aldeia do concelho de Monchique, cuja identificação se omite por razões de protecção.

Mesmo com um «cicerone» local, de entre mais de meia dúzia de homens que se encontravam na taberna, ninguém confessava possuir um alambique clandestino, que se pudesse ver e fotografar. Nenhum confessava ter produzido recentemente aguardente caseira nem que a tivesse visto. Porém, com alguns dedos de conversa, umas cervejas bebidas e a apresentação da carteira profissional de jornalista – para garantir a devida segurança –, eis que de repente surgiu um garrafão de água; com um líquido pouco menos claro do que a água e que, metido à boca, sabia mesmo a aguardente de medronho! E, minutos depois, uma outra garrafa viu a luz do dia, saída de um saco de farinha.

Mas de alambique ilegal, nada. «Nem os amigos agora confiam nos amigos, ninguém sabe nem quer saber quem produz aguardente de medronho, desde que ela apareça», diz um. Mas parece que, afinal, sim – os amigos ainda fazem confidências e ainda há alambiques. Uma semana depois da reportagem da NS, uma «fonte anónima» – não necessariamente da Polícia Judiciária – possibilitou fotografar um alambique, ilegal porque uma «lei seca» assim o determinou.


Caixa 1

Em Monchique, por certo que a aguardente de medronho nasceu com os monchiquenses. Porém, com excepção de alguns recentes estudos realizados da Universidade do Algarve, nunca se fizeram grandes esforços para estudar e melhorar as tecnologias de produção. O medronho – e, portanto, a sua aguardente – sempre foi uma bebida de produção reduzida em comparação com as de outras bebidas alcoólicas, agravado pelo facto de jamais se ter tentado fomentar a protecção e plantio de medronhais. Tem sido assim o conhecimento empírico, transmitido de geração em geração que tem garantido até agora a sua sobrevivência, cujo processo de fabrico até parece simples.

A etapa mais morosa acaba por ser a própria recolha do fruto, pois os medronheiros são arbustos de porte arbóreo que se encontram muito dispersos em zonas, por vezes, de difícil acesso. Além disso, o amadurecimento dos frutos é longo e não homogéneo, podendo começar em Setembro e terminar em Novembro ou Dezembro, exigindo assim várias visitas ao mesmo arbusto.
Tradicionalmente, a fermentação dos medronhos fazia-se ao longo de cerca de um mês, com frutos inteiros com graus diferentes de amadurecimento em vasilhas destapadas. Contudo, este processo tem o inconveniente de permitir a formação de acetatos – perigosos para a saúde – e era, obviamente, pouco higiénico. Por isso, as autoridades sanitárias obrigam agora que, para a aguardente legalizada, a fermentação seja realizada em bidões vedados com um tubo ligado ao exterior, mas imerso em água para que os gases possam sair e não provocar qualquer explosão.

Será na forma como se destila – em que a massa fermentada, com um pouco de água, é colocada na caldeira do alambique, aquecido por um forno de lenha – que reside o segredo que torna esta aguardente tão especial. Ao contrário da generalidade dos alambiques de outras aguardentes, no caso da de medronho o tubo que atravessa o pilão com água fria, para a condensação, não é em serpentina, mas sim direito. O rendimento não é tão elevado – perde-se mais álcool –, mas dá uma aguardente mais frutada sem qualquer sabor a cobre. Recolhida a aguardente pura num cântaro, pode ser logo bebida ou, em alternativa, descansar durante dois anos numa pipa de castanheiro. Neste caso, a aguardente ficará um pouco amarelada, ao contrário da tradicional que é praticamente incolor.


Caixa 2

Com um pouco menos de 3.400 habitantes, distribuídos por um território de quase 40 mil hectares, Monchique é actualmente um dos dois concelhos mais pobres do Algarve, a par de Alcoutim. Com um poder de compra que ronda metade da média nacional, a sua principal actividade económica está ligado à agricultura e à floresta que, por via dos incêndios e da Política Agrícola Comum, está a definhar ano após anos.

As consequências são bastante visíveis sobretudo nas duas freguesias rurais: Alferce e Marmelete, que durante os anos 90 perderam 33% e 13% da sua população. Embora o concelho no seu todo apenas tenha perdido 4,6%, Monchique está, porém, no lote dos cinco municípios distantes a menos de 20 quilómetros do mar que reduziram a sua população durante este período (os outros quatro são Alcoutim, Barreiro, Lisboa e Porto). Monchique tem também atrasos substanciais nos bens mais básicos. Por exemplo, 13,3% dos alojamentos residenciais em 2001 ainda não tinham água canalizada (5ª pior situação do país) e 5,3% não possuíam electricidade (3ª pior situação do país). É este o concelho onde, apesar dos atrasos, o Governo instituiu uma «lei seca»...

terça-feira, outubro 09, 2007

Entrevista integral (não editada) ao reitor do Santuário de Fátima, Monsenhor Luciano Guerra, publicada na revista Notícias Sábado de 6 de Outubro de 2007.

 
Permite-me que possa assumir, em algumas fases desta entrevista, o ofício de Advocatus diaboli, figura importante criada pela Igreja Católica para contestação nos processos de canonização?

Com certeza, com certeza.

Começava então por lhe perguntar por que a Igreja da Santíssima Trindade estava para custar 40 milhões de euros e acabou por ficar no dobro...

Quando a obra foi projectada fez-se uma estimativa, mas uma coisa é a estimativa inicial que se faz em planta, outra a sua concretização em obra, com ajuste de preços e algumas opções que se fizeram na escolha dos materiais.

Causou alguma polémica em alguns sectores mais conservadores a escolha de um arquitecto ortodoxo para a concepção da Igreja.

As críticas foram feitas mais por causa dos traços arquitectónicos. Mas o nosso objectivo era manter a basílica como local privilegiado e de destaque do santuário, como aliás aconteceu com os restantes edifícios que se foram construindo. Esta igreja bem responder às necessidades dos peregrinos.

A imagem de Nossa Senhora para colocar na nova igreja veio de Itália. Houve algum motivo especial para não ser construída em Portugal?

Procurámos, em relação à iconografia, ter a presença de artista de vários países. No caso da imagem da Nossa Senhora, considerámos importante, que sendo a Itália o segundo ou terceiro país com mais peregrinos em Fátima, que viesse de lá.

Que faria se tivesse agora mais 80 milhões de euros? Construía outra igreja?

Não, por amor de Deus. Metade oferecia logo aos pobres.

Com as dádivas que recebe, em dinheiro e ouro, o Santuário de Fátima investe noutras áreas e sectores?

Maioritariamente, as verbas são aplicadas para servir os peregrinos, mas apoiamos alguns projectos de carácter social e religioso que nos seja solicitado e que vejamos válidos.

Mas existe outro tipo de oferendas, mais simbólicas, e feitas por devoção, por exemplo de artistas, de desportistas, de políticos...

Não quero personalizar nenhuma dessas ofertas, algumas estão expostas no nosso museu.

Podem vir, um dia, a ser leiloadas?

Não, isso não.

Como vê a evolução de Fátima em termos de desenvolvimento urbano, em que só nos anos 90 aumenta em 70% o seu parque habitacional?

É muito desordenada, como todos os crescimentos urbanísticos em Portugal. Não encontro absolutamente nada que seja bem planeado. Mas se for para o Algarve é pior, isto é comum e não vale a pena particularizar. Em Portugal só parece estar-se bem quando se está empoleirado.

O acompanhamento das obras no Santuário de Fátima é feito pelo seu Serviço de Ambiente e Construções. Fale-me das acções em prol do ambiente...

Eu tento que, do ponto de vista visual e acústico, haja de facto tranquilidade, quer no espaço do santuário quer em redor. Aliás, ainda há pouco tempo declarei a minha oposição à possibilidade de se abrir um aeródromo a dois quilómetros do santuário, pois por mais cuidado que houvesse interferiria com o silêncio necessário. E iremos também identificar outros ruídos – visuais, auditivos e comerciais – que se possam evitar. Além de também dar alguma beleza ao tocheiro onde se queimam as velas.

Acabando com a fumarada, que até dá cabo da saúde aos peregrinos...

Pois, ainda por cima isso, embora tentemos encaminhar os fumos para longe. Eu entendo que as pessoas, por uma questão de simplicidade mental, ofereçam velas, mas muitas não têm possibilidade de serem queimadas normalmente e estou a tentar que as pessoas, de forma gradual, usem velas electrónicas, que ardam com dignidade.

O perfil do peregrino de Fátima tem mudado ao longo dos anos? Já não é só o pagador de promessas?

Não temos nenhum inquérito sobre essa matéria, mas o peregrino de Fátima nunca foi só o pagador de promessas. Isso é um estereótipo que os jornalistas arranjaram...

Mas interessou-me perguntar-lhe isso para saber se, na sua opinião, Deus apenas concede benefícios a quem lhe promete algo. E, se essa pessoa não cumprir depois do benefício recebido, comete pecado...

Deus nos livre disso. Nesse caso, você nem chegava a nascer e a crescer, porque isso acontece sem fazer promessas. As pessoas que fazem uma promessa receberam antes milhões e milhões de bens de Deus. É certo que fazem a promessa quando estão perante um momento importante nas suas vidas, em que pedem um suplementozinho em relação a algo que não receberam naturalmente.

Na década de 70, Fátima recebia cerca de dois milhões de peregrinos por ano; agora, anda por valores entre os quatro e os cinco milhões. Este acréscimo deve-se aos visitantes estrangeiros?

Não, de maneira nenhuma. Os peregrinos continuam a ser maioritariamente portugueses.

Numa altura em que se fala de crise de devoção religiosa, Fátima aparece então em contraponto?

Está, de facto, em relação aos lugares organizados de religião.

Esse aumento de peregrinos em Fátima tem relação com o agravamento da situação económica do país?

Não creio, antes pelo contrário. Os excessos dos ciclos económicos favoráveis aumentam as desgraças da Humanidade; aumenta o egoísmo e automaticamente aumenta a falta de solidariedade e a solidão. E, nesse quadro, renasce a consciência de que o ser humano é um ser sozinho.

Agora vou fazer o tal papel de advogado do Diabo...

O senhor tem feito esse papel até agora!

João Paulo II era um dedicado apoiante do culto mariano e, particularmente, da devoção à Nossa Senhora de Fátima, tendo mesmo oferecido um fragmento do túmulo de São Pedro para a primeira pedra da Igreja da Santíssima Trindade. Porém, Bento XVI não tem demonstrado o mesmo fervor...

O Papa Bento XVI é, com certeza, um homem com devoção à Nossa Senhora e à Santíssima Trindade. Já escreveu tantos livros sobre teologia, com acentuada tendência para o rigor e para uma certa primazia dos valores tradicionais da Igreja, que entende que os fundamentos não podem ser abalados.

Mas não é exactamente por essa postura que ele não mostra tanto fervor pelo culto mariano?

O fervor é uma questão de coração e a convicção vem da cabeça. As coisas que fazemos começam na cabeça, passam ao tronco e depois para os membros. Por isso, é natural que um intelectual tenha a sua actividade primária na inteligência e só depois passa para o coração.

Numa breve pesquisa, contei 35 alegadas aparições de Nossa Senhora, desde o século XX; em vários locais do Mundo, embora apenas uma dezena reconhecidas pela Igreja Católica...

Isso não é nada!

Bem, estarei a pecar então pode defeito...

Pois está. Meu Deus, até eu recebo com muita frequência pessoas que dizem ter pretensas visões e aparições.

Então o que faz as aparições de Fátima distintas dessas?

Teve uma característica fortemente divina, pela quantidade de presença de Deus que aqui se manifestou e manifesta. É evidente que Deus pode conceder uma aparição a uma pessoa e ser só para ela. Mas no caso de Fátima foi dada uma mensagem ao Mundo inteiro sobre assuntos mais ou menos espirituais e até políticos.

Quais são actualmente os procedimentos da Igreja para validar aparições?

A Igreja observa, para ver se a pessoa é sã, se é mentirosa, se tem interesses ocultos, para evitar qualquer fraude. A seguir vê os sinais externos, se se consideram ou não divinos e se o vidente apresenta isso como prova de que é Deus que lhe fala, se há um milagre, se houve – como em Fátima – uma promessa feita com três meses de antecedência. Isso é fortíssimo. Por princípio, apenas quando há um sinal exterior é que a Igreja aceita.

Nas últimas décadas, a ciência tem evoluído muito e com possibilidade de confirmar ou desmentir muitas coisas...

Os psicólogos ainda têm muita dificuldade em conhecer a mente humana.

Referia-me mais aos milagres. Antigamente bastava que alguém dissesse que se curara por intercessão de outrem para ser atribuído um milagre...

É evidente que hoje tem de ser preciso confirmar isso, o que torna cada vez mais difícil a validação de um milagre. Mas até a medicina não explica tudo.

À luz das exigências actuais, as aparições de Fátima seriam validadas pela Igreja se ocorressem agora, nas mesmas circunstâncias?

Tenho impressão que sim. Sabe que o milagre do sol foi, de facto, qualquer coisa que nunca antes houve e nunca se repetiu depois...

Mas não foi registado em termos científicos...

Nem tem de ser registado. Não tem de ser um milagre real. Testemunhar, para mim, não tem que acontecer fisicamente. O sol não tinha realmente que começar a desandar. A própria Nossa Senhora com certeza que no Céu não está vestida, no sentido que entendemos, nem um anjo pode aparecer porque não tem corpo. O que aconteceu em Fátima, tenho essa impressão, foi um fenómeno psíquico provocado por Deus. E aconteceu a pessoas que estavam aqui e a 30 quilómetros de distância. Sempre seleccionadas. As próprias pessoas que viram Jesus ressuscitado foram escolhidas, Ele não apareceu a toda a gente. E estou convencido que se existissem máquinas fotográficas nessa época seria impossível fotografá-Lo.

Então é tudo uma questão de fé...

Sim, mas não significa que essa questão de fé não assente numa determinada construção psicológica. Mas não sei como se produz materialmente em imagem. Para mim, de facto não houve em Fátima uma realidade exterior que aparecesse como uma imagem, porque se não as outras pessoas teriam visto o que os pastorinhos tinham. O olhar deles teve mais qualquer coisa do que o olhar material.

Mas porque será que Deus então não torna todos os seres humanos crédulos, mostrando-Se?

Talvez porque todas as coisas no Mundo se fazem por mediação. Sempre que há um grupo, há uma mediação. Eu penso que essa é a única razão.

Mediação, essa, feita pela Igreja. Conseguir-se-á a salvação sem essa mediação, praticando apenas o bem e lutando contra o mal?

Se praticar o bem já está a ser mediada. As noções do bem e do mal são herdadas de muitos lados. A individualidade pura é uma abstracção pura.

Mas a Igreja é a única forma de um ser humano conseguir a salvação ou a Igreja funciona como um «código postal» (meio caminho andado)?

Pode dizer-se que é um «código postal», mas ninguém se salva sozinho, antes sim por orientação divina.

Então deveremos ter uma Igreja que apenas oriente e que não imponha...

Sim, sobretudo que oriente, embora a vida social não pode passar sem leis, sem imposições. Porém, eu creio que a maior parte da Humanidade não precisava de leis; elas são necessárias para as minorias, para os prevaricadores. Mas a Lei tem sempre o lado bom de criar uma comunidade e também o mal de forçar o indivíduo que, na sua naturalidade, tem a sua própria lei.

Falámos há pouco da diminuição de católicos praticantes, mas a qualidade tem melhorado?

Sim. Antes não havia muitos teólogos e agora há um vasto conjunto entre a massa cristã e a hierarquia da Igreja. E há agora também uma plêiade de leigos muito bem preparados do ponto de vista teológico. E a Igreja tem de ter em conta essa participação.

Mas agora também existe a liberdade de escolha, de se querer ser ou não cristão, o que não era possível há uns séculos...

A liberdade é uma coisa muito subjectiva, depende sempre da aspiração de cada pessoa. Um marxista sente-se livre numa Rússia comunista e um liberal sente-se lá numa prisão. Ou veja-se o caso da burkha nos países islamitas. É evidente que algumas mulheres – não sei se uma maioria ou minoria – se sentem constrangidas, mas haverá muitas que se sentem muito bem, por estarem protegidas, por ter sido sempre assim desde crianças.

Em todo o caso, na sua opinião, o que falta à Igreja em Portugal para evitar esse afastamento dos crentes, ou o seu não retorno?

Tanto pode faltar à Igreja como a esses que se afastaram. Muito com culpa própria porque se afastar, para caminhos, enfim... para os caminhos do divórcio, da infidelidade, da corrupção...

Isso antigamente acontecia, de igual modo. As pessoas eram talvez hipócritas...

Mas hoje ainda são mais. Os divorciados passam por períodos imensos de hipocrisia antes de consumar o divórcio.

Havia vidas desgraçadas quando não existiam divórcios...

Havia e hoje também há. E agora até há mais. No tempo em que não havia divórcios, bom, havia situações bastante dolorosas, mas a pessoa resignava-se. A mulher dizia: calhou-me este homem, não tenho outra possibilidade, vou fazer o que posso. Ao passo que hoje as pessoas querem safar-se de uma situação e caem noutras piores.

Na sua opinião, uma mulher que é agredida pelo marido deve manter o casamento ou divorciar-se?

Depende do grau de agressão.

O que é isso do grau de agressão?

Há o indivíduo que bate na mulher todas as semanas e há o indivíduo que dá um soco na mulher de três em três anos.

E dar um soco na mulher de três em três anos é aceitável?

Eu não diria que seja aceitável...

Então reformulo a questão: agressões pontuais justificam um divórcio?

Eu, pelo menos, se estivesse na parte da mulher que tivesse um marido que a amava verdadeiramente no resto do tempo, achava que não. Evidentemente que era um abuso, mas não era um abuso de gravidade suficiente para deixar um homem que a amava.

E perante situações de agressões constantes físicas e psicológicas, de infidelidades?

Pode separar-se, mas não divorciar-se. A não ser que se reconheça que não havia condições de suficiente liberdade quando houve casamento. Ou seja, há uma declaração de nulidade, Deus não os casou.

A questão do aborto é outro dos temas em que a Igreja recebe críticas...

Aí é um caso limite, em que não há qualquer hipótese da Igreja Católica vir a ceder. A Igreja entende que não temos direito sobre um nosso igual. A vida existe porque Deus quer.

Recordo-lhe o que escreveu em 2005 no Voz de Fátima sobre o aborto: «corpos esquartejados de bebés vão aparecer em lixeiras de toda a espécie ao olhar horrorizado ou faminto de pessoas e animais» e que «serão mais numerosas à maneira que o aborto deixar de ser considerado crime». Confirmam-se os seus alertas?

Estou convencido que sim. Obviamente não aparecem aí na rua. E isso compreende-se porque o medo é um factor necessário no comportamento, na medida em que tendo-se algum medo de se ser castigado por um acto ilícito, a pessoa retrai-se.

Não faria sentido que, exactamente para evitar os abortos, a Igreja tivesse outra postura em relação ao uso de anticoncepcionais?

Isso com certeza que conseguira. Aí é um ponto de facto muito doloroso e muito difícil que não sei como a Igreja poderá vir a solucionar. Mas claro vai-se propondo alguns métodos que possam ser eficazes, possíveis e fáceis de usar.

Será então uma questão de anos até a Igreja aceitar e promover mesmo o uso de preservativo?

Não creio que, em relação ao preservativo, seja fácil. Além disso, sabemos que não há capacidade para distribuir a toda a população mundial, sabendo-se ainda que entre 20% e 30% da Humanidade vive com menos de um dólar por dia, que é o preço de um preservativo.

Um dia gostava de compreende as razões por que a Igreja se mostra sempre tão rígida, se Deus nos criou com o corpo que temos, as sensações e as necessidades...

Não é uma questão de Igreja Católica nem das outras religiões. A sociedade entendeu que a melhor forma de preservar a paz, no fundo o progresso, foi tirar as mulheres de frente dos homens. O perigoso não são as mulheres, o perigo está nos homens.

Isso parece-me uma evolução. Há uns séculos, a mulher é que corporizava o mal, o desejo...

Atenção, corporizava no sentido que se entendia estar a propensão activa no homem. Se o homem não se impressiona com a mulher, a mulher não se impressiona com o homem. O perigo está nos homens, está no macho.

Fala-me disso e recordo-me de um sermão do século XVII em que um padre culpava os decotes das mulheres pela seca porque os homens não estavam atentos nas missas...

Digo-lhe uma coisa sobre isso. Eu tenho para mim que a falta de aproveitamento dos nossos jovens está na sexualidade, que lhes absorve a atenção, mesmo sem estímulos externos, o principal dos quais é a mulher. Você sabe como é a imaginação de um jovem. Ponha agora uma rapariga ao lado e vai ver que ele se distrai mais rapidamente do que com um homem. Os ingleses concluíram isso. Quanto mais você se concentrar num prazer menos tem concentração para aquilo que não lhe dá prazer. É por isso que os drogados, coitados, acabam por se drogar noite e dia, porque estão a pensar sempre naquilo. É uma obsessão.

Ou seja, a sexualidade em excesso pode ser como uma droga.

É evidente que é. A droga é o fornecimento de um elemento que não é necessário ao organismo mas que lhe provoca mal se tomado em determinada dose.