REPORTAGENS AMBIENTAIS

ESTRAGO DA NAÇÃO

sábado, junho 06, 2009

O Al Gore português

por Pedro Almeida Vieira, fotografia Pedro Loureiro, publicada na revista NS do dia 6 de Junho de 2009


Professor universitário e especialista em ambiente, Filipe Duarte Santos teme que a crise financeira leve os países a refugiarem-se no proteccionismo prejudicando a solidariedade internacional, e explica porque devemos preocupar-nos com as alterações climáticas, cujos efeitos prevê que venham a afectar a humanidade para além do século XXI.


A RECENTE atribuição a Filipe Duarte Santos do Prémio Universidade de Lisboa foi motivo para uma conversa do catedrático de Física com a NS’ sobre o ambiente. Curiosamente, a entrevista decorreu num edifício da Faculdade de Ciências envolto em tapumes que escondem a sua degradação estrutural. Aliás, uma imagem do planeta.

Durante muitos anos desenvolveu a sua actividade na física nuclear e na astrofísica. Agora dedica-se sobretudo ao ambiente e às alterações climáticas. O que é mais complexo: a astrofísica e a física nuclear ou as relações entre o homem e a natureza?

Todas essas áreas têm a sua complexidade específica, são diferentes nessa complexidade. Na astrofísica e na física nuclear isso resulta da tentativa de, com informação limitada, encontrar leis e relações e, a partir daí, construir teorias e interpretações.


São explicadas por equações, pela matemática, de uma forma quase linear. Mas o ambiente parece não funcionar assim...

O ambiente tem, de facto, uma «natureza» diferente porque o homem interage, tem que ver muito com as relações sociais e daí a complexidade ser maior. Ou melhor, diria antes que a incerteza é maior.

Torna-se mais fácil explicar como se comporta um átomo ou um planeta longínquo do que as relações do homem com o ambiente...

Sim, sem dúvida. Embora no caso do estudo dos sistemas planetários, por exemplo, estejamos a usar a fronteira da tecnologia e os meios de observação. E com um número muito reduzido de dados tentamos reconstruir o que lá se passa.

No caso dos problemas ambientais temos de ter em conta que envolvemos 6,7 mil milhões de pessoas, todas diferentes, embora algo semelhantes em certas coisas, com estereótipos e modelos de desenvolvimento globalizados. E daí termos uma complexidade maior.

Desde a Revolução Industrial surgiram várias crises ambientais consideradas graves: a poluição atmosférica em cidades, as chuvas ácidas, o buraco de ozono... Em que medida o aquecimento global pode ser classificado como a maior crise ambiental de sempre?

O aquecimento global põe em causa um dos principais pilares do nosso paradigma civilizacional: a energia e o consumo de combustíveis fósseis. Cerca de oitenta por cento das fontes primárias a nível mundial provêm do carvão, petróleo e gás natural, cuja combustão liberta dióxido de carbono responsável pelo aquecimento global, embora haja outras causas importantes como a desflorestação. O aquecimento global e as alterações climáticas daí decorrentes confrontam-nos com um problema planetário que vai ao cerne do nosso paradigma de desenvolvimento.

Mas já tivemos outras crises ambientais que foram resolvidas ou estão em vias de o ser, como as chuvas ácidas e o buraco de ozono. Por que razão existem tantos alertas e receios sobre os efeitos do aquecimento global?

Por ser de maior complexidade de resolução. É impensável mudarmos, de repente, a nossa dependência energética dos combustíveis fósseis. Por exemplo, no caso do buraco de ozono foi relativamente fácil encontrar uma solução.

Os CFC [usados nos sistemas de refrigeração, como frigoríficos, e de propulsão de sprays] provinham sobretudo de um grande produtor, a DuPont, que aceitou, depois de negociações nas Nações Unidas, descontinuá-los e optar por substitutos. Por isso, está em vias de ser resolvido, prevendo-se que em redor de 2075-2080 regressemos aos níveis de protecção dos raios ultravioletas dos anos oitenta do século passado.

Com o aquecimento global, contudo, estamos a afectar todo o sistema climático, que inclui a atmosfera, a hidrosfera e a biosfera, que têm uma resposta lenta quer a fazer-se sentir quer a desaparecer. Os efeitos do aquecimento global vão acompanhar-nos ao longo dos próximos séculos.

Mesmo que hoje estancássemos as emissões de dióxido de carbono?

Teríamos, nesse caso, sempre efeitos ao longo de cem anos. Mas como isso não é possível, mesmo com medidas de combate às alterações climáticas, os seus efeitos prolongar-se-ão para além do século XXI.

Podem ser irreversíveis?

Evidentemente que a uma escala de dezenas de milhares de anos houve variações climáticas, mas não tão rápidas. E isso pode ter efeitos a nível da biodiversidade e da extinção de espécies que são irreversíveis. Contudo, não está em causa a sobrevivência do homem, que tem uma capacidade de adaptação e resistência notáveis.

Mesmo nos cenários mais gravosos, a humanidade cá ficará, mas em certas zonas a qualidade de vida de grande parte da população diminuirá. Haverá migrações humanas muito significativas.

Mas nunca terá efeitos devastadores como sucedeu noutras épocas da humanidade, como por exemplo com a peste negra na Idade Média...

Isso não. Os impactes das alterações climáticas são sobretudo insidiosos numa perspectiva humana. Não existirão episódios dramáticos de mortandade. Mesmo no caso do furacão Katrina, em 2005, não podemos logo associar às alterações climáticas. Aquilo que se sabe é que o aquecimento global está a aumentar a percentagem de ciclones tropicais com ventos muito intensos, mas nunca poderemos dizer que um furacão específico se deva às alterações climáticas. No clima referimo-nos a um intervalo de trinta anos e a aumentos na variabilidade dos fenómenos climáticos.

Mas esse acaba por ser o problema principal para convencer a generalidade das pessoas de que as alterações climáticas serão uma realidade. Existe algum sinal concreto que se possa, de uma forma directa, ligar ao aquecimento global?

Talvez o exemplo mais eloquente seja a redução sistemática da área de gelo oceânico no Árctico. Com algumas variações interanuais, tem-se observado um decréscimo médio da ordem dos cem mil quilómetros quadrados por ano da área de gelo nesta região no final do Verão. É uma área superior ao território de Portugal.

Que consequências terá esse degelo?

O gelo apenas absorve cerca de cinco por cento da radiação solar, enquanto a água retém sessenta por cento. Logo, haverá uma maior absorção de calor, um efeito de retroacção positiva que fará aumentar ainda mais a tendência de aquecimento global.

O filme O Dia Depois de Amanhã retrata os efeitos desse degelo, mas paradoxalmente em vez de um aquecimento surge um arrefecimento rápido de certas regiões. Isso é ficção ou há algo verdadeiro nesse cenário que, aliás, Al Gore também refere no documentário Uma Verdade Inconveniente?

Nesta região existe uma corrente marítima chamada termoalina, perto da Islândia, onde se verifica um encontro de águas quentes e muito salgadas com a atmosfera mais fria. Essas águas perdem o calor e afundam-se por via da sua maior salinidade.

De uma forma simplificada, em situação normal este fenómeno permite que o clima da Europa seja, em comparação com regiões da mesma latitude na América do Norte, mais temperado. Com a fusão dos gelos oceânicos e o eventual aumento da precipitação, a água do mar nessa região diminui a salinidade e a corrente termoalina pode enfraquecer-se, interrompendo-se. Seria um cenário de colapso abrupto, muito rápido, mas os modelos climáticos têm apontado ser hipótese pouco provável de suceder.

Em 2006 e 2007, as alterações climáticas estiveram na ordem do dia por via do documentário de Al Gore, acrescido do Prémio Nobel da Paz que recebeu. A crise financeira mundial veio, contudo, arrefecer esta questão do ponto de vista mediático e político...

A actual crise financeira está absolutamente ligada a outras crises, além das ambientais. No início do século XXI estamos confrontados com vários sinais de insustentabilidade. O desenvolvimento sustentável é um conceito que tem de passar do discurso à prática. Temos hoje iniquidades de desenvolvimento que não atinge só os países pobres mas também algumas faixas populacionais dos países mais ricos.

Temos também problemas de segurança e disponibilidade alimentar de que não se fala muito. Hoje temos mais de mil milhões de pessoas com fome; falhámos os objectivos do Milénio das Nações Unidas. A água, sobretudo nos países de climas sub-húmidos secos, semiáridos e áridos também implica carências para parte substancial da população e uma sobreexploração das reservas hídricas subterrâneas. E a energia tem problemas de sustentabilidade, para além da questão de segurança e acesso. Por exemplo, a Europa está dependente do abastecimento que vem do exterior.

Para mim, o maior perigo da crise financeira mundial é que possa conduzir a formas de proteccionismo, pois julgo que estamos condenados à globalização. É essencial que cada vez haja mais trocas comerciais e maior solidariedade internacional, de modo a tentar diminuir as diferenças de desenvolvimento.

A crise financeira também já se faz sentir a nível dos projectos relacionados com as alterações climáticas?

Não tenho dados concretos sobre isso, mas é evidente que numa crise a investigação científica sofre sempre. No entanto, aquilo que tenho observado é que vários países, confrontados com a necessidade de desenvolver a economia, relaxam as suas exigências ambientais.

E Portugal está nesse lote, agora que se anunciou a redução das coimas por violações às leis ambientais...

Pois, eu não consigo compreender as razões invocadas para baixar as coimas. Não ficaram bem explícitas as motivações. Para mim é descabido que se possa ver nessa medida uma forma de incentivar o desenvolvimento económico.

Durante o ano de 2008, pela primeira vez desde o protocolo de Quioto, as emissões de dióxido de carbono diminuíram à escala planetária. Foi tudo devido à crise financeira ou foi já um contributo de medidas estruturais de combate ao aquecimento global?

Duvido que o contributo das medidas estruturais seja muito significativo. E a redução que venha a observar-se neste ano vai ser também devido ao arrefecimento da economia. Mesmo assim, as metas globais de Quioto não vão ser cumpridas. Na Europa talvez, mas não no Canadá e, como se sabe, os Estados Unidos não ratificaram este protocolo e cresceram quase vinte por cento as suas emissões em relação a 1990. Aliás, os valores que, num estudo de 1991, se projectaram para a actualidade estão muito próximos da realidade. Ou seja, como se nada tivesse acontecido.

Que esperanças poderemos então ter na muito falada conferência de Copenhaga, em Dezembro próximo, se o protocolo de Quioto acabou por ser apenas um conjunto de boas intenções?

O protocolo de Quioto foi muito importante, mas já se sabia que o seu impacte seria diminuto, até por apenas abranger os países desenvolvidos e por os Estados Unidos – que emitem 25 por cento do total dos gases – terem recusado a ratificação. Mas foi um acordo internacional em que se estabeleceram, pela primeira vez, metas obrigatórias, embora não estejam bem definidas as consequências pelo incumprimento.

Em que medida pode então Copenhaga ser diferente de Quioto?

Sobretudo se for possível estabelecer um diálogo com a China, que não está abrangida pelo protocolo de Quioto. Em termos absolutos, está a aproximar-se das emissões dos Estados Unidos, mas em termos médios um norte-americano emite quatro ou cinco vezes mais dióxido de carbono que um chinês. E a China já anunciou que pretende ter o direito de se desenvolver e prevê-se uma aposta crescente no uso de carvão.

O que se pode esperar dos Estados Unidos em matéria de alterações climáticas agora que Bush foi substituído por Barack Obama?

Os Estados Unidos têm, na sua história, alguma relutância e dificuldade em ratificar tratados e convenções internacionais. É um facto, eles não têm essa tradição europeia. E depois uma coisa são as intenções do presidente, outra aquilo que é aceite pelo Senado e pela Câmara dos Representantes.

Quando em 1997 Al Gore, como vice-presidente, foi a Quioto e desbloqueou as negociações já havia uma proibição, decretada por unanimidade pelas duas câmaras, de serem ratificados quaisquer documentos que não incluíssem os países em desenvolvimento, particularmente a China. Al Gore estava já de mãos atadas. Mas penso que a situação actual já será diferente.

Nos últimos anos, os lobbies das centrais nucleares e das barragens apresentam-se em Portugal como a solução para evitar os efeitos das alterações climáticas. Ou seja, como se este fosse a única questão em jogo em matéria de ambiente...

Discordo dessa ideia. Temos também, para além de outros problemas globais de que já falei, a perda da biodiversidade, os resíduos, a degradação das zonas costeiras e o desordenamento territorial.

A ideia que passa para a opinião pública é de que essas soluções energéticas são amigas do ambiente. Por exemplo, as barragens causam perda de biodiversidade, provocam erosão costeira, destoem os habitats de rios e de áreas marginais. No entanto, quem vê a recente campanha publicitária da EDP fica com outra ideia completamente diferente...

Isso é quase publicidade enganosa. Enfim, acho que é deplorável estar a misturar-se estas coisas porque muitas pessoas não têm, provavelmente, a formação suficiente para saber o jogo que se está a fazer ali.

E o nuclear é preciso em Portugal?

O nuclear faz parte do mix de fontes energéticas e cabe aos países decidir que opções tomar. Julgo que é possível no futuro assegurar as necessidades de electricidade na Europa sem recurso ao nuclear, apostando como se tem feito nas energias renováveis.

Em matéria de ambiente, tem visto sinais positivos de um antigo ministro do Ambiente ser agora primeiro-ministro, algo que raramente sucedeu a nível internacional?

Acho que este governo tem feito um bom esforço na diversificação das fontes de energia promovendo as renováveis, particularmente a eólica e a solar. E, em certa medida, no sector das águas. Mas nos outros assuntos específicos de ambiente – por exemplo, na gestão das áreas protegidas, nos transportes, no ordenamento – não se vê aquilo que seria de esperar de alguém que foi ministro do Ambiente.


Perfil


Dos átomos ao ambiente

Aos 67 anos, Filipe Duarte Santos já conheceu planetas, já estudou átomos, já ensinou em algumas das mais prestigiadas universidades norte-americanas, do Reino Unido e da Alemanha. Mas nas últimas duas décadas tem vindo a dedicar-se, quase em exclusivo, aos temas ambientais. Nos anos noventa coordenou o Livro Branco do Ambiente em Portugal e, mais recentemente, liderou uma vasta equipa de cientistas que realizou um estudo inédito dos efeitos das alterações climáticas no nosso país.

Actual professor catedrático de Física na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, viu os seus pares reconhecerem-lhe o seu contributo social laureando-o no mês passado com o Prémio Universidade de Lisboa.