REPORTAGENS AMBIENTAIS

ESTRAGO DA NAÇÃO

sábado, junho 06, 2009

O Al Gore português

por Pedro Almeida Vieira, fotografia Pedro Loureiro, publicada na revista NS do dia 6 de Junho de 2009


Professor universitário e especialista em ambiente, Filipe Duarte Santos teme que a crise financeira leve os países a refugiarem-se no proteccionismo prejudicando a solidariedade internacional, e explica porque devemos preocupar-nos com as alterações climáticas, cujos efeitos prevê que venham a afectar a humanidade para além do século XXI.


A RECENTE atribuição a Filipe Duarte Santos do Prémio Universidade de Lisboa foi motivo para uma conversa do catedrático de Física com a NS’ sobre o ambiente. Curiosamente, a entrevista decorreu num edifício da Faculdade de Ciências envolto em tapumes que escondem a sua degradação estrutural. Aliás, uma imagem do planeta.

Durante muitos anos desenvolveu a sua actividade na física nuclear e na astrofísica. Agora dedica-se sobretudo ao ambiente e às alterações climáticas. O que é mais complexo: a astrofísica e a física nuclear ou as relações entre o homem e a natureza?

Todas essas áreas têm a sua complexidade específica, são diferentes nessa complexidade. Na astrofísica e na física nuclear isso resulta da tentativa de, com informação limitada, encontrar leis e relações e, a partir daí, construir teorias e interpretações.


São explicadas por equações, pela matemática, de uma forma quase linear. Mas o ambiente parece não funcionar assim...

O ambiente tem, de facto, uma «natureza» diferente porque o homem interage, tem que ver muito com as relações sociais e daí a complexidade ser maior. Ou melhor, diria antes que a incerteza é maior.

Torna-se mais fácil explicar como se comporta um átomo ou um planeta longínquo do que as relações do homem com o ambiente...

Sim, sem dúvida. Embora no caso do estudo dos sistemas planetários, por exemplo, estejamos a usar a fronteira da tecnologia e os meios de observação. E com um número muito reduzido de dados tentamos reconstruir o que lá se passa.

No caso dos problemas ambientais temos de ter em conta que envolvemos 6,7 mil milhões de pessoas, todas diferentes, embora algo semelhantes em certas coisas, com estereótipos e modelos de desenvolvimento globalizados. E daí termos uma complexidade maior.

Desde a Revolução Industrial surgiram várias crises ambientais consideradas graves: a poluição atmosférica em cidades, as chuvas ácidas, o buraco de ozono... Em que medida o aquecimento global pode ser classificado como a maior crise ambiental de sempre?

O aquecimento global põe em causa um dos principais pilares do nosso paradigma civilizacional: a energia e o consumo de combustíveis fósseis. Cerca de oitenta por cento das fontes primárias a nível mundial provêm do carvão, petróleo e gás natural, cuja combustão liberta dióxido de carbono responsável pelo aquecimento global, embora haja outras causas importantes como a desflorestação. O aquecimento global e as alterações climáticas daí decorrentes confrontam-nos com um problema planetário que vai ao cerne do nosso paradigma de desenvolvimento.

Mas já tivemos outras crises ambientais que foram resolvidas ou estão em vias de o ser, como as chuvas ácidas e o buraco de ozono. Por que razão existem tantos alertas e receios sobre os efeitos do aquecimento global?

Por ser de maior complexidade de resolução. É impensável mudarmos, de repente, a nossa dependência energética dos combustíveis fósseis. Por exemplo, no caso do buraco de ozono foi relativamente fácil encontrar uma solução.

Os CFC [usados nos sistemas de refrigeração, como frigoríficos, e de propulsão de sprays] provinham sobretudo de um grande produtor, a DuPont, que aceitou, depois de negociações nas Nações Unidas, descontinuá-los e optar por substitutos. Por isso, está em vias de ser resolvido, prevendo-se que em redor de 2075-2080 regressemos aos níveis de protecção dos raios ultravioletas dos anos oitenta do século passado.

Com o aquecimento global, contudo, estamos a afectar todo o sistema climático, que inclui a atmosfera, a hidrosfera e a biosfera, que têm uma resposta lenta quer a fazer-se sentir quer a desaparecer. Os efeitos do aquecimento global vão acompanhar-nos ao longo dos próximos séculos.

Mesmo que hoje estancássemos as emissões de dióxido de carbono?

Teríamos, nesse caso, sempre efeitos ao longo de cem anos. Mas como isso não é possível, mesmo com medidas de combate às alterações climáticas, os seus efeitos prolongar-se-ão para além do século XXI.

Podem ser irreversíveis?

Evidentemente que a uma escala de dezenas de milhares de anos houve variações climáticas, mas não tão rápidas. E isso pode ter efeitos a nível da biodiversidade e da extinção de espécies que são irreversíveis. Contudo, não está em causa a sobrevivência do homem, que tem uma capacidade de adaptação e resistência notáveis.

Mesmo nos cenários mais gravosos, a humanidade cá ficará, mas em certas zonas a qualidade de vida de grande parte da população diminuirá. Haverá migrações humanas muito significativas.

Mas nunca terá efeitos devastadores como sucedeu noutras épocas da humanidade, como por exemplo com a peste negra na Idade Média...

Isso não. Os impactes das alterações climáticas são sobretudo insidiosos numa perspectiva humana. Não existirão episódios dramáticos de mortandade. Mesmo no caso do furacão Katrina, em 2005, não podemos logo associar às alterações climáticas. Aquilo que se sabe é que o aquecimento global está a aumentar a percentagem de ciclones tropicais com ventos muito intensos, mas nunca poderemos dizer que um furacão específico se deva às alterações climáticas. No clima referimo-nos a um intervalo de trinta anos e a aumentos na variabilidade dos fenómenos climáticos.

Mas esse acaba por ser o problema principal para convencer a generalidade das pessoas de que as alterações climáticas serão uma realidade. Existe algum sinal concreto que se possa, de uma forma directa, ligar ao aquecimento global?

Talvez o exemplo mais eloquente seja a redução sistemática da área de gelo oceânico no Árctico. Com algumas variações interanuais, tem-se observado um decréscimo médio da ordem dos cem mil quilómetros quadrados por ano da área de gelo nesta região no final do Verão. É uma área superior ao território de Portugal.

Que consequências terá esse degelo?

O gelo apenas absorve cerca de cinco por cento da radiação solar, enquanto a água retém sessenta por cento. Logo, haverá uma maior absorção de calor, um efeito de retroacção positiva que fará aumentar ainda mais a tendência de aquecimento global.

O filme O Dia Depois de Amanhã retrata os efeitos desse degelo, mas paradoxalmente em vez de um aquecimento surge um arrefecimento rápido de certas regiões. Isso é ficção ou há algo verdadeiro nesse cenário que, aliás, Al Gore também refere no documentário Uma Verdade Inconveniente?

Nesta região existe uma corrente marítima chamada termoalina, perto da Islândia, onde se verifica um encontro de águas quentes e muito salgadas com a atmosfera mais fria. Essas águas perdem o calor e afundam-se por via da sua maior salinidade.

De uma forma simplificada, em situação normal este fenómeno permite que o clima da Europa seja, em comparação com regiões da mesma latitude na América do Norte, mais temperado. Com a fusão dos gelos oceânicos e o eventual aumento da precipitação, a água do mar nessa região diminui a salinidade e a corrente termoalina pode enfraquecer-se, interrompendo-se. Seria um cenário de colapso abrupto, muito rápido, mas os modelos climáticos têm apontado ser hipótese pouco provável de suceder.

Em 2006 e 2007, as alterações climáticas estiveram na ordem do dia por via do documentário de Al Gore, acrescido do Prémio Nobel da Paz que recebeu. A crise financeira mundial veio, contudo, arrefecer esta questão do ponto de vista mediático e político...

A actual crise financeira está absolutamente ligada a outras crises, além das ambientais. No início do século XXI estamos confrontados com vários sinais de insustentabilidade. O desenvolvimento sustentável é um conceito que tem de passar do discurso à prática. Temos hoje iniquidades de desenvolvimento que não atinge só os países pobres mas também algumas faixas populacionais dos países mais ricos.

Temos também problemas de segurança e disponibilidade alimentar de que não se fala muito. Hoje temos mais de mil milhões de pessoas com fome; falhámos os objectivos do Milénio das Nações Unidas. A água, sobretudo nos países de climas sub-húmidos secos, semiáridos e áridos também implica carências para parte substancial da população e uma sobreexploração das reservas hídricas subterrâneas. E a energia tem problemas de sustentabilidade, para além da questão de segurança e acesso. Por exemplo, a Europa está dependente do abastecimento que vem do exterior.

Para mim, o maior perigo da crise financeira mundial é que possa conduzir a formas de proteccionismo, pois julgo que estamos condenados à globalização. É essencial que cada vez haja mais trocas comerciais e maior solidariedade internacional, de modo a tentar diminuir as diferenças de desenvolvimento.

A crise financeira também já se faz sentir a nível dos projectos relacionados com as alterações climáticas?

Não tenho dados concretos sobre isso, mas é evidente que numa crise a investigação científica sofre sempre. No entanto, aquilo que tenho observado é que vários países, confrontados com a necessidade de desenvolver a economia, relaxam as suas exigências ambientais.

E Portugal está nesse lote, agora que se anunciou a redução das coimas por violações às leis ambientais...

Pois, eu não consigo compreender as razões invocadas para baixar as coimas. Não ficaram bem explícitas as motivações. Para mim é descabido que se possa ver nessa medida uma forma de incentivar o desenvolvimento económico.

Durante o ano de 2008, pela primeira vez desde o protocolo de Quioto, as emissões de dióxido de carbono diminuíram à escala planetária. Foi tudo devido à crise financeira ou foi já um contributo de medidas estruturais de combate ao aquecimento global?

Duvido que o contributo das medidas estruturais seja muito significativo. E a redução que venha a observar-se neste ano vai ser também devido ao arrefecimento da economia. Mesmo assim, as metas globais de Quioto não vão ser cumpridas. Na Europa talvez, mas não no Canadá e, como se sabe, os Estados Unidos não ratificaram este protocolo e cresceram quase vinte por cento as suas emissões em relação a 1990. Aliás, os valores que, num estudo de 1991, se projectaram para a actualidade estão muito próximos da realidade. Ou seja, como se nada tivesse acontecido.

Que esperanças poderemos então ter na muito falada conferência de Copenhaga, em Dezembro próximo, se o protocolo de Quioto acabou por ser apenas um conjunto de boas intenções?

O protocolo de Quioto foi muito importante, mas já se sabia que o seu impacte seria diminuto, até por apenas abranger os países desenvolvidos e por os Estados Unidos – que emitem 25 por cento do total dos gases – terem recusado a ratificação. Mas foi um acordo internacional em que se estabeleceram, pela primeira vez, metas obrigatórias, embora não estejam bem definidas as consequências pelo incumprimento.

Em que medida pode então Copenhaga ser diferente de Quioto?

Sobretudo se for possível estabelecer um diálogo com a China, que não está abrangida pelo protocolo de Quioto. Em termos absolutos, está a aproximar-se das emissões dos Estados Unidos, mas em termos médios um norte-americano emite quatro ou cinco vezes mais dióxido de carbono que um chinês. E a China já anunciou que pretende ter o direito de se desenvolver e prevê-se uma aposta crescente no uso de carvão.

O que se pode esperar dos Estados Unidos em matéria de alterações climáticas agora que Bush foi substituído por Barack Obama?

Os Estados Unidos têm, na sua história, alguma relutância e dificuldade em ratificar tratados e convenções internacionais. É um facto, eles não têm essa tradição europeia. E depois uma coisa são as intenções do presidente, outra aquilo que é aceite pelo Senado e pela Câmara dos Representantes.

Quando em 1997 Al Gore, como vice-presidente, foi a Quioto e desbloqueou as negociações já havia uma proibição, decretada por unanimidade pelas duas câmaras, de serem ratificados quaisquer documentos que não incluíssem os países em desenvolvimento, particularmente a China. Al Gore estava já de mãos atadas. Mas penso que a situação actual já será diferente.

Nos últimos anos, os lobbies das centrais nucleares e das barragens apresentam-se em Portugal como a solução para evitar os efeitos das alterações climáticas. Ou seja, como se este fosse a única questão em jogo em matéria de ambiente...

Discordo dessa ideia. Temos também, para além de outros problemas globais de que já falei, a perda da biodiversidade, os resíduos, a degradação das zonas costeiras e o desordenamento territorial.

A ideia que passa para a opinião pública é de que essas soluções energéticas são amigas do ambiente. Por exemplo, as barragens causam perda de biodiversidade, provocam erosão costeira, destoem os habitats de rios e de áreas marginais. No entanto, quem vê a recente campanha publicitária da EDP fica com outra ideia completamente diferente...

Isso é quase publicidade enganosa. Enfim, acho que é deplorável estar a misturar-se estas coisas porque muitas pessoas não têm, provavelmente, a formação suficiente para saber o jogo que se está a fazer ali.

E o nuclear é preciso em Portugal?

O nuclear faz parte do mix de fontes energéticas e cabe aos países decidir que opções tomar. Julgo que é possível no futuro assegurar as necessidades de electricidade na Europa sem recurso ao nuclear, apostando como se tem feito nas energias renováveis.

Em matéria de ambiente, tem visto sinais positivos de um antigo ministro do Ambiente ser agora primeiro-ministro, algo que raramente sucedeu a nível internacional?

Acho que este governo tem feito um bom esforço na diversificação das fontes de energia promovendo as renováveis, particularmente a eólica e a solar. E, em certa medida, no sector das águas. Mas nos outros assuntos específicos de ambiente – por exemplo, na gestão das áreas protegidas, nos transportes, no ordenamento – não se vê aquilo que seria de esperar de alguém que foi ministro do Ambiente.


Perfil


Dos átomos ao ambiente

Aos 67 anos, Filipe Duarte Santos já conheceu planetas, já estudou átomos, já ensinou em algumas das mais prestigiadas universidades norte-americanas, do Reino Unido e da Alemanha. Mas nas últimas duas décadas tem vindo a dedicar-se, quase em exclusivo, aos temas ambientais. Nos anos noventa coordenou o Livro Branco do Ambiente em Portugal e, mais recentemente, liderou uma vasta equipa de cientistas que realizou um estudo inédito dos efeitos das alterações climáticas no nosso país.

Actual professor catedrático de Física na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, viu os seus pares reconhecerem-lhe o seu contributo social laureando-o no mês passado com o Prémio Universidade de Lisboa.

terça-feira, março 11, 2008

Artigo (não editado) publicado na revista Notícias Sábado de 8 de Março de 2008
AQUI CRESCEU PORTUGAL

A menos de três décadas de fazer meio milhar de anos, a Universidade de Coimbra quer manter-se jovem e activa, olhando para o passado e mostrando aos turistas que é mais do que um centro de ensino. A candidatura à Unesco ser classificada como Património Mundial é agora o maior desafio desta centenária instituição.


Se Coimbra é uma lição de sonho e tradição – como diz o mais conhecido fado académico –, também será, e talvez ainda mais, de História e de Património. Pelo menos é este argumento principal que implicitamente está subjacente à recente candidatura da Universidade de Coimbra a Património Mundial da Unesco, apresentada em sessão solene no final de Janeiro.

De muitas histórias, de muitas obras magníficas, está cheio, de facto, o local onde nasceu, cresceu e (se) vive a Universidade de Coimbra. No local onde se situa se fizeram guerras, nasceram infantes, se coroaram reis, se tomaram decisões políticas, se formaram estudiosos, se construíram obras de eminentes arquitectos. Se Guimarães reivindica o berço da Nação, então Coimbra – e particularmente o centro nevrálgico onde se situa a sua Universidade – é a cidade que fortificou a Nação, à sombra de um património que agora aguarda reconhecimento internacional.
São estas histórias, e o património onde estas ocorreram ao longo de quase mil anos, que agora se pretende conservar e divulgar, de modo a potenciar o turismo numa interacção perfeita com o buliço do mundo académico. «Com a candidatura e a consequente classificação como Património Mundial conseguiremos projectar ainda mais as potencialidades turísticas da Universidade», salienta António Filipe Pimentel, pró-reitor e doutorado em História de Arte, acrescentando que, mesmo na situação actual, «o número de visitantes atinge os cerca de 200 mil, apenas ultrapassado pelo Museu dos Coches».

A Universidade de Coimbra é, de facto, um manancial de História e Arquitectura em movimento. Quem hoje entra pela famosa Porta Férrea – magnífico pórtico construído no século XVI – para os Paços da Escola, centro nevrálgico da Universidade, talvez desconheça que está no coração de uma antiga fortificação muçulmana, ainda existente quando Fernando Magno, em meados do século XI, conquistou Coimbra aos mouros e a entregou a Sesnando Davides, um moçárabe que seria o último Conde de Coimbra – antes da sua integração no Condado Portucalense – e que aí tratou logo de construir uma igreja cristã.
Antes de ser local de ensino, a antiga alcáçova islâmica foi sendo profundamente alterada – ao ponto de hoje apenas existirem vestígios arqueológicos no interior dos actuais edifícios –, passando a ser um paço real, ainda no tempo do Condado Portucalense. Aí terão nascido, com excepção de D. Pedro I, todos os reis da primeira dinastia, incluindo D. Afonso Henriques.
Foi, porém, com D. João I – aí coroado, nas famosas Cortes de 1385 – que começaram a implantar-se edifícios mais condignos, mas que viriam a ser demolidos por ordem do seu filho, D. Pedro, então Duque de Coimbra. Este infante da Ínclita Geração preferiu construir um novo edifício perpendicular ao primitivo recinto, mandando também edificar uma nova igreja que sucessivas alterações tornariam na actual Capela de São Miguel. Foi, no entanto, nos reinados de D. Manuel e de D. João III que os edifícios começam a tomar a forma actual, em forma de U, em volta do terreiro, tornando-se num autêntico palácio.
Quem acabou por beneficiar com tudo isto foi a Universidade de Coimbra. Embora a cidade tivesse tido academia por várias ocasiões desde 1290 – ano em que foram criados os estudos superiores pelo rei D. Dinis –, só em 1537 se fixou definitivamente em Coimbra por decisão de D. João III, seguindo a lógica renascentista de privilegiar a criação das universidades em pequenos centros urbanos e não em grandes cidades.
Com esse novo desígnio, o novo Paço das Escolas viria então a ser sucessivamente enriquecido, mas como um maior ímpeto no século XVIII. Primeiro no reinado de D. João V, com a construção da Casa da Livraria – a famosa biblioteca joanina com um riquíssimo espólio – e da Torre da Universidade, pela mão de António Canevari, o primeiro arquitecto do Aqueduto das Águas Livres. E, numa segunda fase, de forma mais estruturante, no reinado de D. José, como consequência da denominada Reforma Pombalina dos Estudos Superiores. Com efeito, depois da expulsão dos jesuítas, o Marquês de Pombal quis encetar, imbuído do espírito iluminista da Europa, uma profunda remodelação ao nível do ensino que necessitava também de novos edifícios. Num curto prazo de cinco anos – entre 1772 e 1775 – foram então construídos, entre outros, o Laboratório Químico, o Gabinete de Física Experimental, o Observatório Astronómico e o Museu de História Natural, ao qual ficou acoplado o magnífico Jardim Botânico. Foi a partir deste momento que a Universidade de Coimbra se consagrou como o centro de ensino por excelência do país, que manteve até à Primeira República.
Porém, do ponto de vista de arquitectura, apenas a partir do Estado Novo surgiram mais edifícios emblemáticos na zona alta de Coimbra, designadamente as novas Faculdades de Letras, Medicina, Ciências, Economia e Engenharia, dentro de uma lógica de arquitectura de poder. Depois do 25 de Abril, houve mais intervenções, mas já em outras zonas de Coimbra. Mesmo assim destaca-se o edifício destinado ao curso de Direito, concebido pelo arquitecto Fernando Távora.

O grande desafio dos promotores da candidatura (Universidade e autarquia de Coimbra) é agora articular todo este manancial de património ligado ao ensino com o turismo, simultaneamente salvaguardando e melhorando os edifícios e a sua envolvente. Um trabalho que não se circunscreve aos edifícios universitários. Com efeito, a área candidata, incluindo a zona de protecção, engloba não só o Paço das Escolas – que inclui a Biblioteca Joanina e os antigos Colégios – como também o Jardim Botânico, o Museu Nacional Machado de Castro e Igreja de São João de Almedina, a Sé Nova e o Colégio de Jesus, a Igreja de Santa Cruz, o Jardim da Manga e o Jardim da Sereia, o Laboratório Químico, a Sé Velha, as repúblicas da Alta de Coimbra e os edifícios universitários do século XX.
Para uma correcta integração deste património, bem como para uma melhoria da componente turística dos espaços, está previsto um conjunto de obras de arquitectura. «Convidámos vários arquitectos conhecidos para estes projectos, porque queremos fazer a interligação entre a arquitectura antiga e a moderna», salienta António Filipe Pimentel. Assim, por exemplo, Gonçalo Byrne foi encarregue do enquadramento paisagístico do terreiro dos Paços das Escolas, enquanto Souto Moura desenhará o edifício que constituirá o Centro de Interpretação na zona adjacente à biblioteca joanina. No antigo Colégio da Trindade, actualmente em ruína, está também previsto um novo edifício para a Faculdade de Direito, da autoria do arquitecto Alves Costa.
Outro tipo de medidas passará por algumas melhorias nos edifícios do Paço das Escolas. O pórtico com a estátua de D. José já está de cara lavada e seguir-se-á agora outras intervenções, nomeadamente a ligação de todos os edifícios – incluindo a possibilidade de entrada pelo interior para a Torre da Universidade, que beneficiará de obras de restauro para permitir visitas turísticas – e a colocação de vidros nas varandas da famosa Sala dos Capelos, onde se realizam os doutoramentos. «Isso permitirá manter as visitas mesmo quando se realizam as provas», refere António Filipe Pimentel. «Queremos criar, para o exterior, uma Universidade activa mas também um museu vivo de portas abertas», sintetiza.


Caixa
Uma luta pelo lugar ao sol

Não será fácil o percurso até que o sonho da autarquia e da Universidade de Coimbra se concretize. Portugal conseguiu, desde 1983, que a UNESCO classificasse 13 bens nacionais (vd. mapa ao lado) como o estatuto de Património Mundial. Um bom ritmo português que a própria Comissão Nacional desta instituição das Nações Unidas admite que «não é susceptível de se repetir, seja pela dificuldade em individualizar bens com idêntico carácter de excepcionalidade dos restantes bens portugueses incluídos.
Além disso, a candidatura da Universidade de Coimbra tem de convencer a UNESCO a dar-lhe preferência, em vez de classificar antes os outros bens portugueses que actualmente aspiram pelo mesmo estatuto: Arrábida, Baixa Pombalina de Lisboa, Cerca dos Carmelitas Descalços do Buçaco, Costa Sudoeste, Fortificações de Elvas, Convento e Tapada de Mafra, e ainda Marvão.
Em todo o caso, nenhum tem garantias de aprovação nos próximos anos, pois os critérios da UNESCO têm vindo a ser cada vez mais apertados. Por exemplo, cada país não pode apresentar mais do que uma candidatura de cada vez, num conjunto de 30 candidaturas a apreciar entre as que possam ser submetidas ao Comité do Património Mundial pelos 182 Estados que ratificaram a Convenção para a Protecção do Património Mundial. Por outro, a UNESCO concede preferência aos países com poucos bens classificados e a categorias de património pouco salvaguardadas.
Neste último aspecto, a Universidade de Coimbra, mais do que o seu valor patrimonial, até tem uma vantagem sobre as demais. Actualmente, só duas universidades (Caracas e Alcalá de Henares) constam da Lista do Património Mundial da UNESCO. E um dos fundamentos para a classificação da universidade espanhola foi a sua importância para a consolidação da língua castelhana. Por certo algo que Coimbra também pode, e deve, reivindicar face a uma língua que está, há séculos, disseminada nos quatro cantos do Mundo.

domingo, fevereiro 24, 2008

Entrevista integral (não editada) publicada na edição de 23 de Fevereiro de 2008 da revista Notícias Sábado
GONÇALO RIBEIRO TELES

«As cheias são o resultado de erros de urbanismo»


É o pai da Reserva Ecológica Nacional, que conseguiu aprovar, quando foi ministro da Qualidade de Vida, nos últimos dias do Governo AD, já passaram quase duas décadas e meia. Mas é também o «pai» da escola da moderna arquitectura paisagista e das bases do planeamento em Portugal, que lamenta não ser ouvida nem achada nos momentos de decisão. Aos 85 anos, Gonçalo Ribeiro Teles, um defensor da Monarquia, foi já tudo: professor, construtor de jardins e corredores ecológicos, ministro e vereador, mas mantém ainda uma vivacidade e tenacidade que causa inveja aos mais jovens, temperado com o seu peculiar humor perante a comédia da vida.


P – As cheias desta semana na Grande Lisboa surpreenderam-nos?

R – Nada, absolutamente nada. E vão repetir-se, porque se tem aumentado a impermeabilização devido ao excesso de construção e continua a fazer-se más obras que impedem a circulação da água. E não se diga que a culpa é da intensidade das chuvas, nem é das alterações climáticas. Mesmo que assim fosse, é urgente adaptarmo-nos. As cheias são o resultado de erros de urbanismo. Não se podem continuar a cometer erros de planeamento e as autarquias têm de aplicar Planos Verdes. Alguns estão feitos, como em Loures, Sintra e Seixal, mas estão na gaveta. E em Lisboa estou à espera que a autarquia aprove as medidas cautelares para que possa ser aplicado.

P – As constantes inundações em Alcântara são inevitáveis?

R – Não. A autarquia tem mesmo um projecto, da minha autoria e do Instituto Superior Técnico, para solucionar aquele problema, que consiste basicamente em destruir o caneiro, renaturalizando a ribeira de Alcântara desde a Amadora e construindo duas pequenas barragens de retenção e recepção, de modo a conseguir-se amortecer os caudais mais intensos. Isso deveria ser feito noutras zonas da Grande Lisboa, como no Vale do Jamor. Mas há anos que está na gaveta.

P – Quatro anos depois das mortíferas cheias de 1967, disse na RTP que a culpa dessa catástrofe era, e digo textualmente, «a falta de planeamento, a inépcia, a ignorância e a incompetência». E agora?

R – É a mesma coisa. Talvez pior ainda. Não aprendemos nada com as catástrofes e continuamos a fazer intervenções erradas nos rios, com betão. Ainda agora no rio Sorraia fizeram-se canais de betão que aumentam a velocidade de escoamento e assim chega a água mais rápida aos pontos críticos, propiciando as cheias. Mesmo o serviço oficial que trata destas matérias [Instituto da Ágiua] não aprendeu, ainda está na rotina antiga. Mas não é por causa dos técnicos, é por causa das chefias.

P – Curiosamente, as cheias não afectariam muito os bens materiais se fosse aplicada, com rigor, o regime da Reserva Ecológica Nacional (REN). Mas este regime de protecção é muito mal amada no nosso país...

R – Não é só a REN, também acontece com a Reserva Agrícola Nacional (RAN). São poucas as pessoas que entendem o seu alcance, a importância que tem, para a comunidade, a preservação do território e da paisagem. O conceito de desenvolvimento aparece erradamente associado à produção de dinheiro a curto prazo, o que não é compatível com a boa gestão dos recursos naturais nem com a necessidade da sua renovação permanente.

P – Em que aspectos, em concreto, a REN tem sido essencial?

R – Tanto a REN como a RAN, que estão interligadas, e pese embora tenham sido mal interpretadas e também mal aplicadas – é uma velha história – têm sido fundamentais para termos até hoje um mínimo de paisagem rural e agrícola, de preservação do litoral e de protecção de zonas sensíveis.

P – E então as críticas, sobretudo de autarcas, devem-se a quê?

R – De certo modo, a REN contrariou a especulação, a transferência do uso do solo, do solo rural, para zonas urbanas e industriais. Funcionou como um travão, um obstáculo àquilo que se julgava ser o desenvolvimento.

P – Mas, por exemplo, um concelho com mais de 70% da sua área inserida em REN fica assim bastante condicionado...

R – Esse concelho não se deve suicidar, tanto mais que essa área da REN, esse obstáculo é afinal a sua sustentabilidade. Tem é de se adaptar a essa situação, dentro do contexto nacional.

P – Ou seja, não pode ambicionar a ter muitas casas, muitos empreendimentos turísticos, muitas zonas industriais...

R – Muitos autarcas vivem num mundo virtual. Aquilo que um autarca tem de exigir, de ambicionar, é que as pessoas que aí vivam tenham a mesma dignidade dos restantes habitantes do país. Mas o país não pode ser um puzzle em que tudo é igual e com o mesmo tipo de desenvolvimento. Acho espantoso que haja pessoas que pensam ser isso possível.

P – Acusa-se o regime da REN de ser demasiado fundamentalista, de proibir tudo e mais alguma coisa. Apresenta-se, por regra, do pobre agricultor que não pode fazer uma casa de banho por causa da REN...

R – Isso é uma falácia que determinadas pessoas com responsabilidade lançaram de que tudo é proibido. Mas, na verdade, tudo se pode fazer, mas não na REN. Há espaço noutros locais. Não podemos admitir que todo o país possa ser loteado de prédios, moradias e indústrias. A REN é uma estrutura biofísica que permite que o desenvolvimento se verifique noutras áreas.

P – Mas depois surgem alguns empreendimentos privados de grandes dimensões e conseguem-se desafectações por regimes especiais, como acontece com os Projectos de Interesse Nacional (PIN). Isso estava no espírito da lei?

R – Não estava nada. O espírito era olhar para o território de uma forma sustentável e não fazer-se especulação, transformando solo rural em urbano. Não é legítimo que um Governo faça isso. Temos de reconhecer a importância da REN e da RAN para o país. Repare naquilo que se está a fazer, por exemplo, na Arábia Saudita. Eles têm deserto e uma população a aumentar por causa do petróleo, estão ricos mas não têm solo. E estão a fazê-lo, estão a criar, do zero, solo, terra agrícola, as suas REN e RAN, usando água dessalinizada e resíduos orgânicos, sobretudo provenientes dos lixos urbanos. Começam já a fazer agricultura, para garantir o seu futuro, porque um dia o petróleo acaba. Aqui, a REN e a RAN são consideradas empecilhos.

P – Após a instauração da democracia, a agricultura em Portugal era vista como sinónimo de subdesenvolvimento...

R – Pois, e ainda hoje se pensa assim. Só não é sinónimo quando aparece por aí a agricultura intensiva, como a que veio, há uns anos, para Odemira [na Herdade do Brejão, do empresário Thierry Roussel, que produziu morangos em regime intensivo e entrou em falência, deixando os campos contaminado]. Ou como está agora a acontecer com os olivais.

P – Por causa da rega intensiva e das grandes densidades?

R – Sim. Aquilo é apenas negócio e falta de conhecimento de quem aprova estes projectos. Aquela olivicultura dura 10 anos, é uma espécie de eucaliptal de azeitona. Depois os empresários, que são sobretudo de Espanha e que trazem de lá os trabalhadores, vendem aquilo quando até as produções estão no auge. Mas depois caem abruptamente. Fazem como os alemães fizeram com os laranjais em Angola. Não podemos cair num jogo desses.

P – Qual o caminho então para a nossa agricultura?

R – Esta na produção baseada nas culturas mediterrânicas e feita de forma sustentável, mas sobretudo para consumo interno, não para exportação, para competição internacional. Mas para isso tem de se recuperar as aldeias, a massa de trabalhadores rurais que está envelhecida e não foi renovada.

P – Voltando à REN, este mês surgiu a intenção do Governo de entregar definitivamente às autarquias a delimitação destas áreas. Que significará isto, caso avance?

R – Julgo que as autarquias não têm um passado exemplar para se acreditar que compreendem um instrumento de nível nacional. E, portanto, basta olhar para as notícias na comunicação social para saber o que elas querem: fazer dinheiro com aqueles terrenos.

P – Mas já não era assim, na prática? Na esmagadora maioria dos PDM, embora a carta da REN fosse da responsabilidade da Administração Central, a delimitação era feita, na verdade, pela autarquia e depois aprovada pelas Comissões de Coordenação Regional...

R – Por isso, essas cartas da REN são um desastre completo, mal delimitadas, com erros. Basta, aliás, ver que até as legendas dessas cartas, que deveriam integrar-se no todo nacional, variam de concelho para concelho.

P – No contexto actual, julga que uma legislação como a do regime da REN poderia ser aprovada agora?

R – Não faço ideia. Se eu fosse ministro do Ambiente sim. Mas até poderia não haver condições políticas, mas havia uma necessidade tremenda. O país não pode continuar a ser destruído, a assistir ao fim do mundo rural, ao fecho de escolas, à concentração nas cidades e crescer em desordem. No interior não é com balões de oxigénio, como o baixar o IRS, que se resolve isto.

P – Como conseguiu, em 1983, aprovar uma legislação tão vanguardista numa altura em que as questões ambientais não estavam tanto na ordem do dia?

R – A situação já então era grave. Tinha então vingado a ideia da floresta industrial, que ameaçava entrar em determinadas zonas sensíveis. Existiam já problemas de erosão e de destruição dos sistemas hídricos, além das cheias e inundações.

P – A lei da REN foi aprovada poucos dias antes do Governo Balsemão cessar funções, em Junho de 1983. Os seus colegas de Governo tinham consciência daquilo que estavam a aprovar?

R – Não posso dizer que o Conselho de Ministros fosse uma «matilha» a pensar da mesma forma, embora estivesse no subconsciente de todos que esta legislação era basilar para o país. Também já se sabia que a Aliança Democrática (PSD/CDS/PPM) ia sair e daí não existiam tantas pressões. Foram condições muito favoráveis para a lei ser aprovada.

P – De entre os governantes que aprovaram a lei da REN, consta Basílio Horta, então ministro da Agricultura. Ou seja, o actual presidente da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) é um padrinho da lei da REN; logo ele que agora tanto tem batalhado para permitir grandes empreendimentos imobiliários e industriais nessas áreas. Não acha isso estranho?

R – Tem de perguntar a ele (risos).

P – Mais de três dezenas de Projectos de Interesse Nacional (PIN) já aprovados sob o patrocínio de Basílio Horta obrigaram à desanexação de áreas de REN. Será que em 1983 essas áreas eram importantes e agora já não são?

R – Tem de perguntar ao Basílio Horta. Ele não percebeu o que era aquilo, calculo. Não sei, não sei (risos).

P – Como vê o desempenho ambiental deste Governo? É diferente dos outros Governos, tendo em conta que é liderado por um antigo ministro do Ambiente?

P – Não existe desempenho. Vê-o? Não se vê política de ambiente! Veja-se o que está a acontecer com o Plano Nacional de Ordenamento do Território. E no que resultou o Plano Regional de Ordenamento do Território [aprovado em Fevereiro de 2002, quando José Sócrates era ministro do Ambiente]? Nada. E nada porque é um plano sem consistência.

P – Portugal tem uma tradição de fazer planos, que deveriam ser a base prévia para o planeamento das grandes obras públicas. Porém, na prática, os planos nada mandam, como se viu agora na escolha do novo aeroporto de Lisboa...

R – As coisas funcionam por lobbies ou por visões sectoriais. E avança quem tem mais força política ou económica.

P – Faz sentido que tenha sido o LNEC a fazer uma avaliação comparada das alternativas de local para o aeroporto e esteja agora a fazer um estudo sobre o traçado da terceira ponte sobre o Tejo, enquanto o Ministério do Ambiente, que tutela o ordenamento, está afastado?

R – Não faz sentido nenhum. Então agora é o LNEC que faz ordenamento do território em Portugal? Usar o LNEC agora é uma moda, como foi há uns anos a Parque Expo, que fez os Polis.

P – Foi professor no Instituto Superior de Agronomia e na Universidade de Évora, formando inúmeros técnicos de ordenamento. Estão a servir para alguma coisa?

R – Grande parte deles teve o mesmo travão que a REN. Muitos chegaram às autarquias e nunca lhes deram funções relevantes. Nas autarquias há uma grande rotina e um tipo que entra e vai contra a rotina está feito. Os autarcas lá vão arranjando uns engenheiros que lhes façam o que querem. Os tipos mais novitos, que querem fazer pela vida, sujeitam-se e há também os que se acomodam.

P – A década de 90 foi o período em que se começaram a aprovar planos de ordenamento que pretendiam conter a especulação e a construção maciça. Porém, nunca se construiu tanto como nessa década. Afinal, porque aconteceu isso?

R – Muitos planos eram maus, porque foram obrigados a adaptar-se ao meio. Antes do 25 de Abril até se fez algum bom planeamento – como nos Olivais e em Alvalade –, mas depois parou-se. Agora só se encontram alguns poucos casos de PDM que salvaram algumas coisas.

P – Consegue nomear um concelho modelo em termos de planeamento e ordenamento?

R – Eu não consigo falar de todos, mas escolher um concelho é difícil. Há casos pontuais de boas recuperações, como nos centros de Guimarães ou Braga, mas depois os arredores são uma vergonha. Constrói-se em leitos de cheia.

P – E concelhos desastrosos?

R – Isso encontra-se por todo o lado. Difícil é descobrir um concelho que não seja desastroso.

P – E os Polis, que foram apresentados como o paradigma do novo urbanismo?

R – Alguns têm interesse, mas estão desligados do contexto regional. Constituíram mais um embelezamento e uma decoração do que urbanismo.

P – Já falámos do mundo rural, e quanto às metrópoles? Lisboa e Porto perdem população que engrossa os subúrbios, sempre em crescente expansão urbana...

R – Aproximamo-nos muito do que acontece em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo com os bairros dos subúrbios cada vez mais problemáticos. Já se deveria estar a demolir muitos prédios dos anos 70, em zonas como Cacém e Odivelas, e construir aí em vez de abrir novas frentes urbanas. Os espanhóis já estão a fazer isso nas Baleares.

P – E julga possível fazer-se demolições em massa nessas zonas?

R – Se não se demolir, caem ou são abandonados, aumentando os problemas sociais. Quem alimenta a construção na Margem Sul são as pessoas que viviam melhor na Linha de Sintra e já não aguentam aquilo.

P – Ao longo das décadas de intervenção política e cívica sentiu-se, por certo, incompreendido muitas vezes. Por exemplo, em relação à sua defesa das hortas nas cidades, muitos achavam isso algo exótico ou mesmo esotérico...

R – Agora já não acham. Começaram finalmente a compreender a importância da agricultura junto dos centros populacionais. Aqui na zona de Lisboa já existem hortas, mas que é necessário fomentar e disciplinar.

P – Essa produção agrícola pode ter algum relevo, para além do auto-consumo ou do recreio?

R – Sim. Por exemplo, em 2006, a cidade de Chicago inaugurou 26 mercados só para escoar a produção local de produtos agrícolas.

P – Há quem diga que está à frente do tempo. O que sente quando se confirma o que diz?

R – Depois da catástrofe, não sinto nada. Agora, antes disso, vou insistindo.

P – A generalidade das pessoas fica possessa ao ver algo mal feito. Mas o senhor tem uma característica peculiar nessas circunstâncias: ri-se sempre, mesmo quando depois faz uma crítica demolidora...

R – Eu também fico possesso, mas depois rio-me. A vida tem muito de comédia e nós gostamos de comediantes. Eu rio-me dos outros, que se levam muito a sério. Ainda há pouco tempo fui convidado para visitar um espaço verde na Figueira da Foz e aquilo que vi foi um parque ridículo no meio do relvado, cortaram os arbustos todos só para ficarem uns penachos (risos). Cortaram o cabelo curto, à inglesa (risos).

P – Fazem-se bons jardins em Portugal?

R – Há de tudo. É das coisas mais heterogéneas. Mas a ideia do jardim público desapareceu. Ninguém já lá vai, querem os centros comerciais. Há sim uma procura maior pela grande paisagem, pelos corredores verdes, até porque hoje as pessoas têm maior mobilidade.

P – Fundou o Partido Popular Monárquico e sempre se assumiu como monárquico. Porquê?

R – Por uma questão de conceito e de princípio e também por experiência. O rei é uma referência histórica e de continuidade, é o transportador da bandeira da Nação, que só é substituído por morte, a não ser que se porte mal, o que não acontece com um presidente da República. Um rei não depende de ninguém, pode-se discutir tudo, enquanto um presidente da República está comprometido, foi apoiado por partidos.

P – Pensa que agora, em regime democrático, a República pode dar lugar de novo à Monarquia?

R – Tudo é reversível, desde que haja um consenso. Por razões históricas, estamos ligados a países com Monarquia, que são exactamente os países da Europa que têm melhores relações com o Mundo, como a Espanha e o Reino Unido. E isso não ocorre com outros três colossos europeus que são Repúblicas: a Itália e a Alemanha não têm ligações ao Mundo e a França está tendencialmente a perder influência internacional.

P – Se houvesse um referendo, julga que haveria hipótese dessa tese vingar?

R – Se existisse um debate sério e esclarecido, estou convencido que sim. A instituição democrática e a nossa projecção no Mundo vão precisar disso.

P – Foi professor, governante, autarca, construtor de jardins, elaborou planos. O que mais lhe agradou, nestas tarefas?

R – A vida (risos)! Eu misturei tudo. Esta variedade é que é boa.

P – Tem 85 anos. Não sente ser tempo para descansar da sua constante intervenção cívica e técnica?

R – Não conseguia viver sem isso (risos).

P – O que está fazendo agora?

R – Um projecto de enquadramento paisagístico para a Fundação Oriente e a participar num documentário sobre a vida do último rei de Portugal, D. Manuel II, para o Canal História.


Caixa
A mal-amada REN?

Prevista desde 1983, a Reserva Ecológica Nacional (REN), que é inserida nos planos directores municipais através de cartografia específica, serve sobretudo para impor regras em sítios de grande sensibilidade, designadamente zonas costeiras (dunas, falésias, arribas, etc.), margens de rios (incluindo leitos de cheia), áreas de máxima infiltração (para protecção de aquíferos) ou de interesse biológico (habitats específicos). Nestas áreas fica interdito todo o tipo de usos que implique ocupação artificial e movimentações de solos, o que na prática inviabiliza construções.
Desde o seu início que esta legislação foi alvo de críticas sobretudo pelos autarcas que assim ficavam sem possibilidades de expandir zonas urbanas, turísticas e industriais, mas também das populações, já que as ampliações de casas já existentes poderiam não ser autorizadas caso se estendessem para zonas de REN.
A legislação permite, porém, que estas zonas sejam desanexadas por razões de interesse público. Por regra, isso aplicava-se para as obras de saneamento básico, infra-estruturas rodoviárias e hidráulicas, mas nos últimos anos começaram a surgir desanexações para projectos privados (turismo e indústria, sobretudo), intensificando-se com a instituição dos Projectos de Interesse Municipal. Estes expedientes têm, contudo, que merecer a concordância da Administração Central, algo que a Associação Nacional dos Municípios Portugueses pretende mudar. Num parecer, a ANMP refere que «deverão ser drasticamente reduzidas as acções e projectos sujeitos a parecer das Comissões de Coordenação Regional», pretendendo também que «peso proibicionista» seja eliminado, passando a ser apenas uma carta de valores e de riscos, sem carácter vinculativo. os autarcas advogam também que deveriam os municípios a elaborarem estas cartas, pois «os técnicos das câmaras são tão competentes quanto os das comissões de coordenação».
Como óbice a esta mudança está a especulação que isso provocaria. Uma área de REN, sem possibilidades de construção, vale muito pouco dinheiro. Mudar para zona urbana provoca, de imediato, uma valorização enorme. Aliás, por regra, enriquece-se de um dia para o outro quando um terreno não urbano consegue passar a ter aptidão para a construção.

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

UMA LUZ QUE SE APAGA
Artigo (não editado) publicado na revista Notícias Sábado de 9 de Fevereiro de 2008

A Aldeia da Luz foi inaugurada há seis anos e prometeram-se mundos e fundos para dinamizar o mais novo povoado do país. Mas em política, as promessas ficam, muitas vezes, no papel. E hoje, nas margens do Grande Lago, os luzenses andam apagados e desmoralizados. Pelo andar dos tempos, em breve, poder-se-á visitar uma aldeia deserta e, paradoxalmente, novinha em folha.


Para o ano, caso se confirmem as pretensões do Ministério da Educação, já não será possível assistir ao passeio carnavalesco dos miúdos da escola básica do primeiro ciclo da Aldeia da Luz, que mascarados percorrem as ruas largas e desertas da mais nova povoação do país, construída de raiz por causa da albufeira de Alqueva. Para o ano, já não haverá um polícia, um cozinheiro, uma sevilhana, um palhaço, um mimo, um músico, uma hippie, um acordeonista e um mandarim, pois estes irão folgar para outras paragens. A escola, novinha em folha, cinco anos feitos, com duas salas que dão para 30 crianças, deverá encerrar no final deste ano lectivo, porque as crianças escasseiam. As crianças, os adultos e até os velhos…
Dir-se-á que estamos perante os sinais dos tempos, em que a desertificação do interior tudo extingue, tudo faz desaparecer, mas na Aldeia da Luz deveria ter sido diferente. Foi dito que seria diferente. Mas não foi. Quando em Fevereiro de 2002 se inaugurou, com pompa e circunstância, a trasladação da velha aldeia para o novo aglomerado, prometerem-se mundos e fundos para a revitalização deste pequeno povoado do concelho de Mourão que perdeu quase dois terços da sua área, engolidos pelas dolentes águas do Guadiana agora represado. Deram-se novas casas aos seus habitantes, um aglomerado espaçoso e supostamente moderno, garantiram-se apoios para compensar as perdas económicas de uma aldeia que, isolada, vive apenas da terra e da agricultura.
Porém, volvidos meia dezena de anos, entrar na nova Aldeia da Luz transmite uma estranha sensação ao visitante. Logo à entrada, na esquina da primeira rua, baptizada com o nome do antigo malogrado primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro – um indicador de ser esta freguesia um dos poucos bastiões sociais-democratas em terras alentejanas –, o Café Lanterna está fechado. Não é o único. No Largo 25 de Abril, encontra-se outro encerrado. Mais adiante, na Rua da Igreja, o Taskas Bar está também de portas encerradas. Sobrevivem agora somente dois – o Café Batista e o Café da Lousa, embora este último arrisque fechar nos próximos tempos.
Mas isto é apenas um pequeno sinal da fraca dinâmica económica da aldeia. Na verdade, os sinais exteriores de deserto ficam patentes, desde logo, quando se percorre o aglomerado. As portadas da esmagadora maioria das casas estão fechadas, não se vêem pessoas, mesmo que sejam apenas velhos, na rua – e que são uma das imagens de marca das aldeias despovoadas do Alentejo. Na Luz, o cenário é quase surrealista – olha-se para uma aldeia deserta, mas simultaneamente novinha em folha.

As «culpas» desta situação são variadas, mas têm a sua causa na forma como decorreu todo o processo de migração da antiga Aldeia da Luz para o novo aglomerado. «Perdeu-se o espírito de comunidade, de partilha que existia entre a população», salienta Maria João Lança, directora do Museu da Luz, gerido pela EDIA – a empresa responsável por todas as obras globais da barragem de Alqueva. Com efeito, a solução arquitectónica da nova Aldeia da Luz parece não ter sido a mais adequada. Ao invés de ruas estreitas e sinuosas – que permitiam estreitavam os laços de vizinhança –, a nova Aldeia da Luz tem agora autênticas avenidas gizadas a régua e esquadro que estão longe da tipicidade do Alentejo mais rural. Mas além disso, a forma como decorreu a distribuição das habitações não foi consensual e acabou mesmo por causar alguns atritos, animosidades e invejas. Por exemplo, houve quem não tivesse levado a bem que alguns vizinhos tivessem conseguido da EDIA alguns extras nas suas habitações somente porque tiveram maior poder de reivindicação. Ou ainda quem viu, por razões arquitectónicas insondáveis, a porta da sua casa dar logo para a estrada, enquanto que os vizinhos da frente ficaram com um passeio de três metros de largura, como acontece na Rua da Igreja. Acresce a tudo isto, os sucessivos problemas de má construção, sobretudo da rede de esgotos ou mesmo na estrutura das casas, fruto de obras atabalhoadas.
Contudo, para a actual situação, também ajudou a forma como, num projecto arquitectónico de raiz, não se procurou conciliar as vivências antigas para o novo aglomerado. Num trabalho publicado no ano passado pela antropóloga brasileira Clara Saraiva, investigadora do Instituto de Investigação Científica Tropical de Lisboa, sobre o impacte da mudança da Aldeia da Luz refere-se que «o Alqueva veio revolucionar as vivências e devassar intimidades», destacando que não foram previstas no projecto urbanístico a manutenção dos aspectos ancestrais que faziam parte da vida dos luzenses. Assim, os rituais da matança do porco, do fumeiro, do fazer do vinho e da preparação da azeitona, que faziam parte de um modo de vida, não foram consignados nas soluções de arquitectura. Como se se tivesse criado uma aldeia bonitinha para os visitantes, mas disfuncional e estranha para os habitantes.
Além disso, com a submersão do antigo povoado, outros hábitos deixaram de ser possíveis, como foi o caso das idas diárias de homens e mulheres até às nascentes de água – milagrosa para muitos –, que sempre permitiam, e sobretudo, dois dedos de conversa. «As pessoas tinham uma grande ligação ao rio e a albufeira não lhes diz nada», refere Maria João Lança, que tenta dinamizar, com o museu que dirige, formas de preservar a memória daqueles tempos, que agora parecem longínquos e que jamais poderão regressar.

Durante o processo de construção da nova Aldeia da Luz e nas primeiras fases após o abandono do antigo aglomerado, os luzenses viveram, em certa medida, anestesiados pelas luzes da ribalta. Não foi apenas por causa da animação devida às hordas de trabalhadores de construção civil que inundaram durante anos aquelas paragens, mas sobretudo pelo interesse de estudiosos, da comunicação social e de turistas. A Aldeia da Luz era então um corrupio de gentes de todos os cantos que, por vezes, causavam entupimentos no tráfego rodoviário. Por exemplo, o Museu da Luz chegou a ter mais de 20 mil visitantes por mês. Criaram-se muitas expectativas, o imaginário de que a albufeira de Alqueva criaria riquezas sem fim palpitava forte nos corações e cabeças de todos. Depois, bem depois tudo se esfumou com o tempo. «Estamos numa zona com falta de massa crítica e com algumas dificuldades de dinamização, as pessoas em certa medida acomodaram-se e não se conseguiu manter a projecção que a nova Aldeia da Luz teve no início», lamenta Maria João Lança. Mas não foi apenas isso. Faltou também, e sobretudo, a concretização de muitas promessas que os sucessivos Governos foram, ao longo dos anos, fazendo aos luzenses.
«Foi uma grande falsidade que nos fizeram», lamenta-se Ana Pimenta da Silva, uma reformada de 63 anos que tem saudades dos tempos em que «eram todos uma grande família» na antiga Aldeia da Luz. «Só se preocuparam em dar-nos casas, que estão mal construídas e apenas beneficiaram os mais ricos», acrescenta, referindo que «não há empregos e assim os mais jovens abalam todos».
Francisco Oliveira, presidente da Junta de Freguesia da Luz, é particularmente crítico sobre a forma como a aldeia tem sido tratada pelos poderes políticos. E não tem calado a revolta. «Arrependo-me de ter gasto tanto esforço, e dei a cara, para que o processo de migração corresse bem e sinto-me agora enganado. Sentimo-nos todos enganados. Estamos como as laranjeiras que plantaram nas ruas», salienta, fazendo alusão às raquíticas árvores que ladeiam a Rua Francisco Sá Carneiro e que ao fim de cinco anos ainda não ultrapassam, na maior parte dos casos, mais de um metro. Já no seu quarto mandato à frente dos destinos dos luzenses, este social-democrata sente-se cansado do rol de queixas que os seus munícipes se fazem chegar. Não apenas por causa da má construção das habitações, mas sobretudo pelo desleixo de muitas obras públicas da aldeia, que nunca chegaram a ser bem concluídas. Exemplo disso encontra-se no lavadouro público, que nunca funcionou por erros de concepção e que ameaça mesmo, tantas são as brechas, por fazer ruir o miradouro que lhe está por cima. Ou ainda da praça de touros, cujas bancadas estão também mal construídas. E, já agora, da praça central que está agora novamente em obras, porque o piso se levantou todo e não havia mais do que uma oliveira para fazer sombra nas quentes tardes de Verão.
Porém, Francisco Oliveira até já dá de barato estas anomalias. O pior, para ele, são os estrangulamentos económicos por não se terem concretizado as compensações prometidas aquando da construção da barragem de Alqueva. «Prometerem-nos um marina na albufeira, um centro artesanal, a construção de um largo para a feira e mercado, um centro de recolha de uva e azeitona e uma adega, mas nada disto foi feito; sinto que nos roubaram», insurge-se. «No próximo ano, começaremos a produzir azeitona nos novos olivais e não temos hipóteses de escoar, a bom preço, esses produtos que poderiam ser por nós produzidos, possibilitando também a criação de emprego que tanta falta faz para evitar a saída da população», acrescenta. Além disto, também a elaboração dos projectos e consequente apoio para a florestação de algumas áreas, que o Ministério da Agricultura prometeu fazer, ficaram como as águas da albufeira, ou seja, tudo parado. E a finalização de todo o processo de emparcelamento ainda não teve um fim. Para agravar, a zona industrial está também parada, porque não foram feitas as infra-estruturas e, portanto, ninguém se pode lá instalar. «Tive que mudar a minha loja e oficina de electrodomésticos para Mourão, porque aqui não a poderia fazer», refere Francisco Oliveira.
A fuga de população da Aldeia da Luz parece assim quase inevitável e a única coisa que, no futuro, se pode esperar, sem grandes surpresas. Tanto mais por a sangria parecer agora ainda mais galopante. «Entre as últimas legislativas e as recentes presidenciais, perdemos cerca de 30 eleitores num universo de pouco mais de 300», destaca Francisco Oliveira. Uns porque morreram, outros porque tiveram de sair por não terem possibilidades de emprego ou de se fixarem na aldeia. É que, por uma situação ridícula, não é possível construir mais uma casa sequer na Aldeia da Luz, devido a uma indefinição sobre a titularidade dos lotes. «A EDIA tem 50 lotes de terrenos, mas desconheço a razão porque não os vende, e mesmo a Junta de Freguesia, que possui 16, está impedida de os comercializar, uma vez que não os tem ainda registados em seu nome», adianta Francisco Oliveira. «Nos últimos anos já cerca de 20 casais foram viver para Mourão ou Reguengos de Monsaraz por causa disto, ainda mais grave porque tinham filhos», acrescenta.
Em suma, o deserto avança mesmo a passos de galope sobre a Aldeia da Luz, ironicamente por causa de um imenso mar de água doce. E da falta de vontade política.


Inundações (caixa)

A barragem de Alqueva não foi a primeira infra-estrutura hidráulica do país a submergir uma povoação inteira. No início da década de 70, no Gerês, a construção da barragem de Vilarinho das Furnas obrigou ao desalojamento daquela aglomerado populacional. No entanto, não foi construída nenhuma nova aldeia e as pessoas desalojadas foram dispersas por vários locais. Além disso, ao contrário da antiga Aldeia da Luz – que foi completamente demolida –, durante os períodos de estio naquela barragem minhota conseguem-se ver as antigas casas, muros e estradas.
Por todo o Mundo, a construção de barragens implicam, muitas vezes, a retirada de populações das áreas a submergir, por vezes causando tumultos. No Brasil, por exemplo, existe mesmo um organismo denominado Movimento dos Atingidos por Barragens, criado nos anos 90 do século passado – depois de vários projectos terem obrigado ao desalojamento de várias dezenas de milhares de pessoas – que instituiu mesmo o 14 de Março como o Dia Nacional de Luta contra as Barragens.
O número de desalojados por barragens a nível mundial foi, recentemente, aumentado de forma espantosa devido à construção da barragem chinesa das Três Gargantas, concluída em 2006 no rio Yangtze, que obrigou à saída de suas casas de, pelo menos, 2,3 milhões de habitantes.

segunda-feira, janeiro 28, 2008

Artigo (não editado) publicado na edição de 26 de Janeiro de 2008 na revista Notícias Sábado


Silenciosa, invisível, inodora e... letal. Porventura, será por causa destas características e a radioactividade suscita tantos medos e tamanhos cuidados. E está agora, mais uma vez, na ordem do dia das preocupações das autoridades internacionais. A culpa, sabe-se, é dos terroristas, que se «inovaram», já não ameaçam apenas com explosivos. Já não basta que receemos uma guerra atómica – risco sempre omnipresente com a proliferação de armas nucleares em alguns países particularmente belicosos. Nem tão-pouco temos apenas de temer a repetição de catástrofes humanas e ambientais como a que aconteceu há cerca de duas décadas em Chernobyl, na Ucrânia. A ameaça paira por aí, e quase se pode dizer ao virar da esquina.

Mesmo países como Portugal, que optaram por prescindir de centrais nucleares para a produção de electricidade, não podem dormir descansados. A vizinha Espanha tem, actualmente, quase uma dezena destas centrais em funcionamento, uma das quais (Almaraz, que produz 9% da energia eléctrica daquele país), muito próxima da fronteira portuguesa, em Cáceres. E, além disso, em Sacavém está instalado um reactor nuclear para investigação. Acresce a isto as reservas de urânio, armazenadas na Urgeiriça. Porém, não se julgue que acabam aqui os riscos de exposição de radiações ionizantes. Na verdade, uma quantidade muito significativa de materiais emissores de radiações é usada comummente em terapias médicas, sobretudo em tratamentos oncológicos e radiológicos, mas também na indústria – especialmente na metalomecânica e siderurgia, bem como na prospecção petrolífera –, na irradiação de alimentos e mesmo em edifícios, designadamente em sistemas de detecção de incêndios. Em tempos, chegou-se até a usar material radioactivo nos pára-raios.

Por esses motivos, face aos incidentes e acidentes que já ocorreram um pouco por todo o Mundo (ver caixa), a vigilância e monitorização destes equipamentos constitui uma das tarefas fundamentais das várias entidades oficiais. No caso dos instrumentos médicos que usam radiações, essa tarefa cabe ao Ministério da Saúde – que tem como tarefa fiscalizar a calibração para evitar sobredosagens, enquanto todos os restantes equipamentos caem na alçada do Instituto Tecnológico e Nuclear. «As empresas, algumas milhares, que necessitam destes equipamentos pedem-nos uma licença que fica registada, entregando-nos a fonte emissora já usada, que armazenamos nas nossas instalações», refere Montalvão e Silva, responsável máximo desta entidade, que tem também a gestão o reactor de investigação de Sacavém.

Mas como o seguro morreu de velho, o Instituto Tecnológico e Nuclear tem também montado um sistema de rasteio em todo o país. «Realizamos todos os anos um conjunto vasto de análises ao ar, à água, aos peixes, às plantas e aos alimentos em vários pontos do país», diz Montalvão e Silva, garantindo que «os valores de radiação são muito baixos, típicos de países sem centrais nucleares»

Em paralelo a este sistema de controlo, o Gabinete de Emergências e Riscos Ambientais da Agência Portuguesa do Ambiente tem também em funcionamento uma rede de monitorização com estações fixas nas diversas regiões do país (Bragança, Porto, Penhas Douradas, Coimbra, Castelo Branco, Portalegre, Elvas, Beja, Lisboa, Sines, Faro, Ponta Delgada e Funchal). «A função desta rede é sobretudo detectar valores anómalos em contínuo, 24 horas por dia, de modo a se poder accionar de imediato as entidades responsáveis pela protecção civil», salienta Maria do Carmo Palma, chefe de divisão deste gabinete tutelado pelo Ministério do Ambiente.

No entanto, estas precauções podem não ser suficientes para enfrentar as novas e perigosas ameaças que pairam sobre os países do Ocidente. Há cerca de dois anos, Gregory Schulte, embaixador norte-americano junto da Agência Internacional de Energia Atómica alertava para as sucessivas tentativas de grupos terroristas em adquirirem materiais radioactivos para a produção de engenhos, salientando que alguns deles tinham conhecimentos científicos e de engenharia para os conseguir produzir.

E, de facto, somente no período desde os anos 90 do século passado registaram-se mais de duas dezenas de incidentes envolvendo tráfico de plutónio, urânio enriquecido ou outros produtos radioactivos apenas nos países que integram a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Alguns deles foram abortados, mas casos houve que nunca se soube do paradeiro desse material. E não se pense que esses roubos ou tráficos foram perpetrados apenas nos países da antiga União Soviética.

Por exemplo, em Março de 1998 foram roubados 19 tubos de césio radioactivo de um hospital norte-americano da Carolina do Norte que jamais apareceram. E ainda há cerca de dois anos foi preso um norte-americano que roubara um conjunto de detectores de incêndio com material radioactivo, que poderia ser suficiente para produzir uma «bomba suja» - ou seja, constituída por um explosivo convencional envolto em material radioactivo, que poderia contaminar uma cidade de média dimensão. «Este é um perigo bem real para o mundo ocidental», salienta Delgado Domingos, professor jubilado do Instituto Superior Técnico.

A possibilidade de ataques terroristas com materiais radioactivos é agora talvez maior do que a de um acidente numa central nuclear. Quem é diz é a Union of Concerned Scientists – uma organização não governamental criada no Massachusetts Institute of Technology (MIT) e que congrega cerca de 20 mil cientistas e cidadãos – que refere que «de todas as ameaças de terrorismo contra os Estados Unidos e o Mundo, talvez a mais grave será a possibilidade de terroristas construírem ou obterem armas nucleares e detonarem-na numa cidade» acrescentando que «se se conseguir explodir apenas uma dessas bombas, centenas de milhares de pessoas podem morrer». Esta organização é particularmente crítica da forma como se olha para este problema no Mundo Ocidental, afirmando mesmo que, pior ainda, «e prosseguem políticas que aumentam o risco dos terroristas adquirirem armamento nuclear». Aliás, em teoria, material não lhes falta, sabendo-se que são suficientes apenas quatro quilogramas de plutónio para produzir uma bomba nuclear.

De acordo com a Union of Concerned Scientists existem mais de 230 toneladas métricas de plutónio – um «resíduo» radioactivo que resulta da fissão do urânio nas centrais nucleares – apenas na Bélgica, França, Alemanha, Índia, Japão, Reino Unido e Rússia. Além disso, são conhecidos os problemas de falta de segurança no armazenamento deste material sobretudo neste último país. E mesmo em países como a França, Japão e Estados Unidos, segundo a Union of Concerned Scientists, «as medidas de segurança contra roubos são provavelmente inadequados para protecção contra as ameaças terroristas contemporâneas».

Mas não é apenas o plutónio que merece especial preocupação. O envenenamento por polónio-231 do antigo agente da KGB, Alexander Litvinenko, em Novembro de 2006, na capital do Reino Unido – e que está longe de ter sido inédito –, veio apenas confirmar que os materiais radioactivos podem mesmo vir a ser uma arma de extermínio selectivo. Ainda mais no caso do polónio que, devido às suas características, não é detectável pelos habituais sistemas dos aeroportos, podendo assim ser mais facilmente transportado.

Por estes motivos, «as questões da protecção radiológica devem ser dinâmicas, não apenas circunscreverem-se ao que está previsto na legislação mas sim acompanhar os novos tempos», advoga João Quintela de Brito, presidente Sociedade Portuguesa de Protecção Contra Radiações, destacando a necessidade de um controlo mais apertado das pessoas que possam ter acesso aos materiais radioactivos. «Quando estive em funções na antiga Junta de Energia Nuclear tinha esta preocupação. Consideravam isso uma chatice, mas agora sabe-se que esse tipo de controlo é fundamental», refere este especialista agora reformado, que lamenta a falta de divulgação destas questões junto opinião pública.

Perante estes cenários, que risco corre Portugal perante um eventual atentado terrorista envolvendo material radioactivo. No caso do reactor de investigação de Sacavém – que é um ponto nevrálgico –, Montalvão e Silva, presidente do Instituto Tecnológico e Nuclear, garante que «existem condições de segurança mais que suficientes». «Além de vigilância privada, há também o policiamento da PSP e o acesso ao reactor é praticamente impossível para um estranho», salienta.

Mas em relação aos assaltos a locais que detenham material radioactivo – como hospitais, clínicas ou indústrias –, aparentemente as coisas não são assim tão lineares. «A sorte de Portugal é sermos um povo pacífico, não muito desenvolvido e que, portanto, não chama muito a atenção dos grupos terroristas», salienta Delgado Domingos. «Caso contrário, teríamos de reforçar muito as medidas de segurança para evitar roubos de material radioactivo», acrescenta. Esperemos que assim seja.


OS 10 MAIS MORTÍFEROS ACIDENTES EM TEMPO DE PAZ

As bombas atómicas norte-americanas, lançadas sobre as cidades japonesas de Hiroshima a Nagasaki em Agosto de 1945, no apogeu da II Guerra Mundial, que mataram mais de 200 mil pessoas, são hoje o paradigma da destruição causada pela radioactividade. Mas desde o início do século XX sucedem-se incidentes, acidentes, actos negligentes e criminosos envolvendo materiais ionizantes.

De acordo com uma base de dados elaborada por Robert Johnston, investigador da Universidade do Texas, excluindo a mortandade das bombas nucleares da II Guerra Mundial, contabilizam-se 383 ocorrências graves a nível mundial desde o início do século XX, que causaram 236 mortos e 1475 feridos graves. A região mundial com maior incidência é a Europa do Leste. Enquanto existiu a União Soviética somaram-se 168 casos, mas depois do desmantelamento desta federação os problemas até recrudesceram. Só na Rússia, desde 1990, verificaram-se mais 28 situações graves com um saldo de 10 mortos e 37 feridos. Mas também o Ocidente não esteve livre deste tipo de situações. A França registou nove casos e o Reino Unido 12, enquanto os Estados Unidos tiveram 53. Neste último país, o saldo global cifrou-se em 42 mortos e 298 afectados.

As causas destes problemas são muito diversas, mas ao contrário daquilo que se pode julgar os acidentes envolvendo centrais ou reactores nucleares nem são a maioria. Na verdade, grande parte dos casos envolveram material radioactivo usado para fins médicos, quer por uso indevido quer por exposição de pessoas em situações de abandono ou roubo. Mas também estão reportados quase três dezenas de actos criminosos envolvendo material radioactivo, dos quais um pouco mais de metade consistiram em roubos, havendo também casos de homicídio, ou tentativa, e até de suicídios.

4 de Julho de 1961 – Acidente no submarino nuclear soviético K-19

Devido a uma avaria no sistema de arrefecimento, a tripulação deste submarino foi obrigada a improvisar uma alternativa, mas ficou exposta a doses elevadas de radioactividade. Oito tripulantes morreram em menos de 20 dias e 31 foram hospitalizados com gravidade. Dois dos reactores deste submarino foram depois submersos no Mar de Kara, a norte da Sibéria.

Março de 1962 – Contaminação por cobalto na cidade do México

Um rapaz de 10 anos encontrou abandonada uma fonte radioactiva de cobalto uado para radiografia industrial tendo-a levada para sua casa. Em resultado, quatro membros dessa família morreram no espaço de menos meio ano.

24 de Maio de 1968 – Acidente no submarino nuclear soviético K-27

No decurso de exercícios navais, o sistema de arrefecimento do submarino nuclear entrou em colapso, provocando a fusão parcial do reactor. A exposição às radiações dos tripulantes causou nove mortos e afectou outros 83. O submarino seria posteriormente afundado na baía de Stepovogo.

1974-1976 – Acidente com cobalto em Columbus (Estados Unidos)

Durante um período de 22 meses, um erro na calibração da teleterapia usando cobalto radioactivo causou uma gradual sobredosagem nos pacientes. O médico responsável falsificou documentos para esconder esta anomalia e uma subsequente investigação apurou que dos 426 pacientes tratados nos 16 meses anteriores à identificação do problema, cerca de 300 tinham morrido. No entanto, oficialmente, apenas foram reportadas 10 mortes e 78 pessoas gravemente afectadas.

Março de 1984 – Contaminação por irídio em Casablanca (Marrocos)

Uma unidade industrial perdida, contendo irídio radioactivo, foi levada para casa por um agricultor marroquino e colocada numa mesa do quarto da família durante semanas. A exposição à radiação causou a morte de oitos pessoas, incluindo quatro crianças. Outras três pessoas foram gravemente afectadas.

26 de Abril de 1986 – Acidente na central nuclear de Chernobyl (Ucrânia)

Foi o mais grave desastre ocorrido numa central nuclear. Durante testes de segurança, um dos reactores explodiu, seguindo-se uma segunda explosão. O incêndio apenas seria extinto duas semanas depois, tendo sido libertada uma nuvem radioactiva que afectou sobretudo as cidades de Prypyat (com cerca de 45 mil habitantes) e de Chernobyl (12,5 mil habitantes), mas que foi detectada por toda a Europa. Foram reportadas 31 mortes directas nas primeiras semanas após o acidente e pelo menos 238 pessoas sofreram afecções graves sobretudo ao nível da tiróide.

Setembro de 1987 – Acidente com césio em Goiânia (Brasil)

Um contentor de aço foi roubado de uma antiga clínica por dois brasileiros que o venderam a um ferro-velho. Desconhecendo ser uma unidade de radioterapia contendo sais de césio, retiraram antes as cápsulas radioactivas, levando-as para casa. Os sais dessa cápsula foram expostos a um elevado número de pessoas devido atraídos pela sua luminosidade azul. Em resultado disto, 129 pessoas foram contaminadas, cinco morreram e 20 necessitaram de hospitalização.

Dezembro de 1990 – Acidente com raios X em Saragoça (Espanha)

Um erro na manutenção e calibração de um aparelho de radioterapia da Clínica Universitária de Saragoça, combinado com violações de procedimentos clínicos, fizeram com que 27 pacientes em tratamento oncológico sofressem uma sobredosagem de entre 200% e 700% acima do recomendável. Até Março de 1991 tinham já morrido, devido a esta situação, 10 doentes, um número que aumentaria para 18 nos meses seguintes. Outras nove pessoas ficaram gravemente afectadas pelas radiações.

Agosto-Setembro de 1996 – Acidente com cobalto em San Jose, Costa Rica

Mais um erro de calibração, de um equipamento de radioterapia com cobalto, desta feita resultando numa sobredosagem de cerca de 60% nos pacientes oncológicos. Entre sete e 17 doentes, conforme as fontes, morreram directamente por via desta sobredosagem e outros 81 registaram efeitos catastróficos na sua saúde.

Agosto de 2000-Março de 2001 – Instituto Oncológico de Panamá (Panamá)

Uma modificação errada do sistema computadorizado de tratamento por radioterapia do principal hospital oncológico do Panamá levou a que, durante mais de meio ano, os pacientes ficassem sujeitos a sobredosagem de radioactividade. Em resultado desta anomalia, faleceram 17 pessoas e outras 11 sofreram danos graves.

sábado, janeiro 19, 2008

Entrevista (não editada) a Silvino Pompeu dos Santos, investigador-coordenador do LNEC, publicada na revista Notícias Sábado na edição de 19 de Janeiro de 2008

«Novo aeroporto deve ir para o Pinhal Novo»


Embora seja um dos maiores especialistas do Laboratório Nacional de Engenharia Civil em estruturas e de planeamento de obras públicas, Silvino Pompeu dos Santos não integrou o grupo de trabalho daquela entidade que foi incumbido de comparar a Ota e Alcochete para a escolha do futuro aeroporto de Lisboa. Não se importou com esse «esquecimento» e optou por elaborar um plano integrado que enviou ao Ministro das Obras Públicas. Uma das suas propostas foi até acolhida pelo Governo quando anunciou a mudança do aeroporto para o Campo de Tiro de Alcochete: a construção da ponte Chelas-Barreiro com rodovia, linha de TGV e de comboio convencional. Mas espera ainda que seja «afinada» a localização do aeroporto para a zona de Pinhal Novo, sobretudo por razões económicas e de melhor articulação com a rede de transportes.

P – Surpreendeu-o a decisão do Governo de mudar a localização do futuro aeroporto de Lisboa, abandonando definitivamente o projecto para a Ota?

R – Não me surpreendeu muito. Talvez um pouco por o Governo ter assumido e defendido com muita força durante muito tempo a opção Ota, mas acabou por perceber que seria melhor arrepiar caminho perante o coro de críticas que se foi avolumando.

P – O Governo teve então de engolir o sapo…

R – Eu não diria que teve de engolir um sapo, tanto mais que a opção Ota era de um Executivo socialista mas não do actual Governo. E este Governo teve a humildade de reconhecer que a Ota não era a solução mais conveniente.

P – E a escolha dos terrenos do Campo de Tiro de Alcochete é, na sua opinião, a mais conveniente?

R – É uma solução melhor do que a Ota, mas não é a solução certa como localização para o futuro aeroporto. Fiz um estudo, a título pessoal, que enviei para o ministro das Obras Públicas – e que depois o endereçou ao grupo de trabalho coordenado pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) – em que preconizava a localização na zona de Pinhal Novo, junto à auto-estrada A12. Esta proposta que defendo faz parte de um plano integrado de transportes para a Área Metropolitana de Lisboa que tem em conta a terceira travessia do Tejo, no corredor Chelas-Barreiro, e a rede de alta velocidade (TGV). Essa zona do Pinhal Novo fica mais perto de Lisboa (25 quilómetros contra mais de 35 quilómetros na opção do Campo de Tiro de Alcochete) e com a vantagem de estar exactamente no enfiamento da saída da futura ponte Chelas-Barreiro.

P – Isso evitaria, portanto, um desvio da linha do TGV relativamente ao que está projectado…

R – Sim. Aliás, é estranho que o Governo tenha acabado por decidir avançar com a terceira travessia do Tejo, que terá a linha do TGV, e depois obrigar a um desvio para nordeste de mais 10 ou 12 quilómetros para apanhar o futuro aeroporto se for construído na zona do Campo de Tiro de Alcochete. Não é preciso, já que a zona de Pinhal Novo tem condições para se construir o aeroporto.

P – Fez alguma estimativa económica relativamente à opção Pinhal Novo?

R – Fiz uma comparação com Ota que apontava para uma poupança da ordem dos 3 mil milhões de euros, dos quais metade respeitante aos custos do aeroporto e a outra por ser dispensável a entrada do TGV pelo norte de Lisboa. Em relação à opção Alcochete é mais complexo de se fazer, porque o plano proposto pela Confederação da Indústria Portuguesa (CIP), no caso das acessibilidades, é diferente daquilo que foi aprovado no Governo. A CIP sugeria uma travessia fluvial Poço do Bispo-Montijo e duas derivações, uma para o Barreiro e outra para o aeroporto, que era uma solução tecnicamente muito complexa e com impactes ambientais muito significativos por atravessar zonas de conservação da natureza.

P – A alternativa no Pinhal Novo, que defende, fica muito próxima, um pouco mais a norte, da opção Rio Frio, que perdeu contra a Ota quando em 1988 se fizeram estudos comparativos, devido aos impactes ambientais. Nessa zona do Pinhal Novo os impactes não são importantes?

R – Em primeiro lugar é preciso dizer que Rio Frio não perdeu por razões ambientais. O que houve em 1999 foi uma decisão política. O estudo preliminar de impacte ambiental não apresentou nenhuma razão impeditiva de um aeroporto naquela zona. Depois, estamos a falar de uma zona ampla, entre a A12 e o Poceirão, que tem cerca de 10 mil hectares, com áreas de características diferenciadas, umas com montado, outras com minifúndio. É certo que existem ali impactes ambientais nos montados de sobro, no aquífero, de alterações do meio físico, mas são impactes que também existem na zona do Campo de Tiro de Alcochete. E mesmo na Ota também existiam impactes. Para mim, a questão essencial é saber se os impactes previstos colidem com alguma legislação ou regime de protecção ambiental de carácter nacional e comunitário que sejam impeditivos da localização do aeroporto. Se não existem, então há que definir e adoptar medidas de mitigação que terão um custo financeiro que deve ser incorporado no custo global da obra. Esta, aliás, parece ter sido a estratégia do grupo de trabalho nomeado pelo Governo.

P – Não teria feito mais sentido que se tivessem estudado mais localizações na Margem Sul em redor do Campo de Tiro, incluindo também a zona de Pinhal Novo?

R – Por aquilo que sei, o grupo de trabalho coordenado pelo LNEC foi incumbido de comparar apenas duas localizações específicas: Ota e a zona do Campo de Tiro de Alcochete, local sugerido pela CIP. Mas acaba por ser interessante que no relatório do grupo de trabalho seja recomendado deslocar o aeroporto o mais possível para sudoeste, por razões de sustentabilidade do sistema de transportes, de economia e de consumos energético. Em certa medida, vai ao encontro da minha proposta de o aeroporto se localizar na zona do Pinhal Novo.

P – O primeiro-ministro foi taxativo ao afirmar a escolha do Campo de Tiro de Alcochete para o futuro aeroporto. Espera que haja ainda uma rectificação?

R – O Governo anunciou que vai decorrer agora uma consulta pública. Logo veremos se acatará a recomendação do grupo de trabalho e a minha proposta. Tal como mostrou abertura para estudar uma alternativa à Ota, penso que está em condições de afinar – que é disso que se trata – a localização na Margem Sul. Tanto mais que é importante salientar que a localização do aeroporto no sítio agora anunciado implicará também a transferência das actividades militares do Campo de Tiro de Alcochete – fala-se em levá-lo para o Alentejo – e a desactivação da pista da Base Aérea do Montijo. Para além das outras questões que referi, são duas consequências com custos adicionais muito fortes. Mas se for escolhida a zona de Pinhal Novo para o futuro aeroporto pode-se manter as actividades quer o Campo de Tiro de Alcochete quer a Base Aérea do Montijo, pois são compatíveis.

P – Questões que não foram equacionados pelo grupo de trabalho do LNEC, que estava condicionado ao que lhe foi pedido pelo Governo…

R – O grupo de trabalho tinha os seus termos de referência e terá feito o melhor trabalho possível. Não lhe pediram a integração de planos. E eu julgo que a questão do aeroporto deve estar associado a um plano mais vasto. Em várias intervenções públicas ao longo dos últimos anos sempre defendi que, em relação ao aeroporto, não se deveria comparar apenas sítios, mas sim planos integrados que tenham em conta não só o aeroporto, como a rede do TGV e as respectivas acessibilidades, porque só assim se consegue encontrar uma solução mais eficiente e com economias de escala. Em 1999 só se estava a discutir a localização do aeroporto, enquanto que agora temos também a rede de alta velocidade e as acessibilidades. Temos agora a felicidade de podermos planear em conjunto. Não está em causa quando vamos implantar os projectos, quando vão ser construídos, mas sim a necessidade do seu planeamento conjunto.

P – Tendo em consideração que é um investigador-coordenador do LNEC, um prestigiado especialista internacional em estruturas e já tinha tomado publicamente posições sobre o aeroporto, qual foi a razão para não integrar o grupo de trabalho do LNEC indigitado pelo Governo?

R – Não sei. Terá de perguntar à direcção do LNEC. Ela é que decidiu escolher as pessoas que entendeu serem as que estavam em melhores condições para executar essa tarefa. Em todo o caso, eu já estou muito satisfeito porque uma das propostas do meu plano integrado – a ponte Chelas-Barreiro com as três componentes: rodoviário, comboio convencional e TGV – foi adoptado pelo Governo. E se estivesse integrado nesse grupo de trabalho já não poderia ter enviado ao ministro das Obras Públicas essas propostas. Agora, falta que consiga que se deslocalize o aeroporto mais para sudoeste e que a linha de alta velocidade que vem do Porto, em vez de entrar pelo norte de Lisboa, venha pelo leste do Tejo e se junte à linha de Madrid na zona do aeroporto. E aí, a entrada em Lisboa far-se-á pela ponte Chelas-Barreiro. Isso traria poupanças enormes.

P – A ponte Chelas-Barreiro foi uma das alternativas, nos anos 90, preterida pelo Governo, que optou pelo corredor Sacavém-Montijo (Ponte Vasco da Gama). Sendo agora necessária, pode dizer-se que a Ponte Vasco da Gama foi um erro?

R – Eu penso que a escolha nos anos 90 do corredor Sacavém-Montijo foi uma solução acertada tendo em conta que era uma ponte estruturante porque ligava a CRIL à Margem Sul. A ponte Chelas-Barreiro serve sobretudo como travessia urbana.

P – Julga necessário tanta travessia, mais ainda quando se fala numa quarta, que ligará Belém à Trafaria?

R – Sim, elas têm objectivos diferentes e complementares.

P – E o país não tem recursos ilimitados…

R – Estou a falar de projectos, de intenções, não de quando se deve avançar para as obras.

P – Mas em Portugal rapidamente os lobbies da construção civil tentam que se avance logo para as obras…

R – Se estivermos num país organizado como deve ser, isso não acontece. Eu penso que as travessias fluviais no Tejo são um assunto muito sério, que deve ser bem ponderado, mas que são essenciais ao desenvolvimento da Área Metropolitana de Lisboa. Só com travessias fáceis é possível um desenvolvimento urbano harmónico. Naturalmente são investimentos avultados, mas são sujeitas ao pagamento de portagens. São os utilizadores que as pagam para sua comodidade. Além disso, com o novo aeroporto na Margem Sul haverá um aumento muito significativo de tráfego, tal como haveria no corredor Lisboa-Carregado se a opção fosse a Ota. Por isso, justificam-se novas travessias do Tejo.

P – As novas travessias implicam criação de novas frentes urbanas maciças. Aconteceu isso depois da década de 60 em Almada, com a ponte 25 de Abril; acontece actualmente em Alcochete e Montijo com a Ponte Vasco da Gama. Mais uma ponte vai contribuir para a desertificação de Lisboa. Isso não o preocupa?

R – Com franqueza, não estou muito preocupado com isso nem julgo que se corra esse risco. As pessoas só irão viver para a Margem Sul se venderem as casas na Margem Norte, porque não têm, por regra, dinheiro para ter duas casas. E os promotores imobiliários só vão construir na Margem Sul se tiverem mercado, se houver procura.

P – Se não é então previsível um aumento populacional na Margem Sul, então por que construir mais pontes sobre o Tejo?

R – As pontes têm várias funções. A ligação Chelas-Barreiro é essencial para a coesão da Área Metropolitana de Lisboa porque a península do Barreiro e da Moita não tem ainda ligação directa a Lisboa, ao contrário de Alcochete e Almada, que são servidas pelas pontes Vasco da Gama e 25 de Abril. E agora, com o futuro aeroporto de Lisboa, há uma razão acrescida.

P – Voltando à questão do aeroporto, qual a sua opinião sobre a solução Portela+1?

R – Sempre tive alguma dificuldade em perceber o conceito Portela+1. Aliás, nunca houve uma ideia muito clara sobre isso. Eu julgo que o que está em causa é saber se Portela deve ou não ser desactivada a partir de 2017. Ao contrário do que se poderia tecnicamente fazer na Ota, o aeroporto na Margem Sul pode fazer-se por fases.

P – Ou seja, Portela pode continuar a funcionar e teremos dois aeroportos em funcionamento…

R – Até 2017 pode acontecer muita coisa neste sector da aviação. Eu penso que seria sensato começar a construção de apenas uma pista e de uma parte da aerogare relativamente ao projecto global. Depois, perto da inauguração se analisaria se se seguia logo para uma segunda fase, se se mantinha activa a Portela ou se esta seria desactivada. Mas à partida, eu defendo que o aeroporto da Portela não deve existir naquele local por razões de segurança.

P – Um aspecto sempre polémico em relação às grandes obras públicas diz respeito ás derrapagens orçamentais e às estimativas de custos que se mudam e nunca acabam por bater certo quando se acaba a obra. Julga isso normal?

R – Não. E infelizmente no caso do futuro aeroporto já se está a associar a esse fenómeno. Até há pouco tempo, quando se falava no aeroporto em Alcochete a estimativa de custos era da ordem dos 2 mil milhões de euros, que é sensivelmente o custo que o Airport de Paris estimou para a opção Rio Frio em finais da década passada acrescido da taxa de inflação. E agora os números que aparecem nos jornais já apontam para os 3,2 mil milhões de euros.

P – Qual a razão para isso?

R – Isso terá que perguntar a quem indicou esse número. Mas arrepia-me que as nossas obras públicas tenham sempre tendência a ficar bastante caras. E dou o exemplo da Ponte Vasco da Gama em relação à nova Ponte da Lezíria, no Carregado. A Ponte Vasco da Gama, obra pública, custou um pouco mais de mil milhões de euros, a preços actuais, enquanto a Ponte da Lezíria, que foi paga pela Brisa, custou 200 milhões de euros. Eu estaria à espera que, tendo em conta a dimensão e diferenças estruturais, que a Ponte da Lezíria custasse 40% a 50% da Ponte Vasco da Gama, mas custou apenas 20%. Ou seja, muito menos do que seria suposto. Recentemente, um administrador da Brisa justificou, numa sessão pública, este bom preço da Ponte da Lezíria com uma frase lapidar: “É o que acontece quando é o dono da obra a fixar o preço»!

P – Como é vista a engenharia das grandes obras públicas feita pelos portugueses a nível internacional?

R – Julgo que está ao nível das boas engenharias estrangeiras. Temos bons profissionais e excelentes construtoras. Por exemplo, o aeroporto da Madeira foi galardoado em 2004 com o prémio de melhor obra de engenharia a nível mundial, tendo sido projectado e construído essencialmente por técnicos portugueses.

P – Mas sempre que se está em fase de construção de grandes obras públicas se discute muito os riscos de segurança. Acumulam-se acidentes e incidentes…

R – Há sempre bons, médios e também maus profissionais em engenharia, como em todas as áreas. Mas se tivemos já alguns casos de acidentes e incidentes, julgo também que há um certo exagero, empolamento por parte da comunicação social, porque isso acontece em todos os países. Ao contrário do que as pessoas pensam, não há obras 100% seguras. Nós trabalhamos com risco e incerteza. A nossa obrigação é garantir que uma obra construída tenha uma probabilidade de ruína muito baixa, da ordem de um para 100 mil, mas se ocorrer uma situação imprevista, o risco aumenta. As normas estão feitas para garantir uma segurança adequada, mas é sempre possível aumentá-la, mas aumentando, por vezes muito, os custos da obra.

P – Mas o problema em Portugal também está sobretudo na segurança das infra-estruturas antigas. Veja-se o caso da queda da ponte de Entre-os-Rios…

R – É um facto que, durante muito tempo, não houve em Portugal uma cultura de conservação e, particularmente, no período de mais intensa construção nova, nos anos 80 e 90. Em resultado desse acidente, há agora uma maior atenção à conservação e a situação actual das infra-estruturas parece-me melhor.

domingo, janeiro 06, 2008

Entrevista (não editada) publicada na revista Notícias Sábado ao Prof. José Delgado Domingos, professor jubilado do Instituto Superior Técnico

P – Nos últimos tempos, temos assistido a tribunais a mandarem encerrarem linhas de alta tensão e um eclodir de manifestações contra a Rede Eléctrica Nacional (REN). Do ponto de vista científico, justifica-se este alarido?

R – Eu fico um pouco surpreendido, e acho mesmo preocupante, quando os juízes começam a pronunciar-se sobre temas científicos que claramente não dominam; só serve para desacreditar a Justiça. Parte dos argumentos invocados não têm base científica nem de bom senso. É evidente que uma linha de alta tensão, tal como uma linha de baixa tensão – em suma, uma linha que transporte corrente eléctrica – é perigosa. Mas dizer que há um perigo sem o quantificar não faz sentido. Reduzir o perigo a zero é o mesmo que não ter electricidade. O risco existe sempre e deve ser minimizado com a aplicação rigorosa das normas, que neste caso até existem legalmente . Na minha opinião, o ataque à REN é uma tentativa de arranjar um bode expiatório.

P – A REN não tem responsabilidades nesta situação?

R – Não tendo uma procuração da REN, julgo serem absurdas as acusações, sobretudo quando dizem que ela pretende as linhas aéreas por serem mais lucrativas. A partir do momento em que a REN detém, por lei, o monopólio natural do transporte de electricidade acima dos 110 mil volts não é livre de fixar as tarifas. Estas são determinadas pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE). Em consequência, a REN é remunerada em função dos investimentos aprovados pela ERSE, pelo que nunca perde se for obrigada a enterrar as linhas. Pode mesmo ganhar. A REN, por isso, é o último dos responsáveis por esta situação.

P – Até porque a REN acaba por necessitar de autorizações para executar as linhas…

R – Exacto. E aqui reside o problema do planeamento das linhas de transporte de energia. A maior parte delas foram definidas ainda no tempo da EDP monopolista. Mas depois tiveram de ser aprovadas em concreto pelo Ministério do Ambiente – no âmbito da avaliação de impacte ambiental – e pela Direcção-Geral de Geologia e Energia. Só depois disto a REN pode avançar para a construção. Por isso, do ponto de vista legal não há nada que se possa apontar à REN. A questão acaba por ser de ordenamento do território. Quando se prevêem urbanizações sabe-se que é necessário construir infra-estruturas de água, de esgotos e de electricidade. E se é necessária a electricidade é necessário prever por onde passam as linhas de alta tensão. Em muitos casos, foi depois de estarem previstas as linhas de alta tensão, que as autarquias aprovaram planos directores municipais que permitiram a construção nos corredores de protecção e exclusão impostos por essas linhas. Na discussão actual a pergunta que se deve colocar é: quem autorizou as construções nos locais que agora contestam a passagem das linhas ?. A autorização para construir as linhas teve ou não em conta eventuais licenciamentos prévios de construção? O traçado das linhas é matéria do PROT( Plano Regional de Ordenamento do Território) que deve ser absolutamente cumprido pelas autarquias. De facto, ou responsabilizamos as pessoas e entidades pelos seus actos, ou acabamos por ter de pagar os seus disparates. Se os encargos de investimento da REN aumentarem, a consequência será um aumento das tarifas de electricidade, goste-se ou não se goste.

P – Surgiram notícias de que o aumento da tarifa, por causa do enterramento de linhas de alta tensão, pode atingir os 40%...

R – Vai depender do que se enterrar. Portugal possui cerca de sete mil quilómetros de linhas de alta tensão. Será impensável estar a enterrá-las todas, mas se assim se decidir, depois ninguém se pode queixar que a electricidade subiu muito ou que deixa de existir dinheiro para outras coisas, como hospitais. Isto é o cerne da decisão política. Haverá casos em que será melhor enterrar, sobretudo quando estamos a falar de atravessamento de povoações, noutros talvez saia até mais barato indemnizar e realojar pessoas.

P – Mas existe mesmo um perigo real relativamente às habitações que estão sob as linhas de alta tensão?

R – Há um perigo efectivo, de facto, e tais habitações são contra as normas legais. Sempre que existe uma linha de muito alta tensão são gerados campos eléctricos e electromagnéticos. O perigo depende da voltagem, da distância e da sensibilidade das pessoas, embora não existam estudos absolutamente conclusivos. Mas é bom salientar que um perigo significativo só existe se não forem tomadas as precauções necessárias, como as que são recomendadas por organismos internacionais. A própria REN as divulga no seu site e é obrigada por lei a aplicá-las.

P – Que não são cumpridas…

R – Nós começámos o disparate há muito tempo e continuamos. As autarquias não cumprem as zonas de exclusão, depois querem vetar as linhas mas querem a electricidade. Tem que existir planeamento e um compromisso. Portugal não é um conglomerado de principados ou baronatos. As manifestações mostram também que as populações perderam confiança nos poderes políticos, o que é gravíssimo. Como o cidadão comum se sente enganado inúmeras vezes acaba por perder a visão de conjunto, acarretando individualismos egoístas.

P – Os receios com as linhas de alta tensão tem também a ver com questões psicológicas: o medo invisível. Como ocorre com as radiações nucleares…

R – No caso das radiações nucleares, os efeitos são mais devastadores, porque são ionizantes e perduram, enquanto as radiações não ionizantes, – como os da electricidade ou a dos telemóveis – terminam logo que se desliga a corrente. Quanto aos efeitos é como se as radiações não ionizantes – como as emitidas pelas linhas de electricidade, pelos telemóveis ,pelos micro-ondas, etc– queimam, as radiações ionizantes dão uma martelada, pois provocam a rotura de ligações a nível molecular.

P – Na década de 70 foi um dos cientistas que se destacaram em Portugal contra a construção da central nuclear em Ferrel. Os pressupostos mantém-se, agora que se fala de novo na possibilidade da energia nuclear no nosso país?

R – Claro, não existe nenhuma diferença. Fico mesmo admirado ao constatar que aquilo que escrevi nos anos 70 se mantém actual. O meu combate ao nuclear em Portugal foi, e ainda é, primeiro que tudo, de natureza económica. É um absurdo económico. Do ponto de vista da perigosidade, agora ainda é mais evidente, por causa da proliferação das armas nucleares associada à construção dos reactores civis.

P – Como assim? Está a defender que sem energia nuclear para fins civis, para a produção de electricidade, não haveria tantos países com armas nucleares?

R – Sem dúvida. Sem existência de centrais nucleares, que produzem plutónio como resíduo, apenas países muito desenvolvidos do ponto de vista tecnológico as poderiam ter. Países como a Índia, o Paquistão e a Coreia do Norte não possuiriam armamento nuclear, pois é imprescindível a existência de plutónio. E por dia, uma central de 1000 MW produz quatro a cinco quilogramas de plutónio, suficiente para uma bomba atómica. E nessas circunstâncias, havendo plutónio disponível, a tecnologia posterior não precisa de ser tão apurada. Hoje sabe-se que existe um contrabando de plutónio e inúmeras tentativas de o transaccionar, algo que é dramático sabendo-se também da possibilidade de se criarem bombas sujas, que não são mais do que explosivos clássicos revestidos de produtos radioactivos, e que podem contaminar vastas regiões. As explosões não fazem o tradicional cogumelo, mas têm um elevado poder de destruição, de contaminação.

P – E existe, claro, o problema de segurança, como o que aconteceu em Chernobyl…

R – Sim e também na gestão dos resíduos. O recente incidente na central espanhola de Almaraz, na fronteira com Portugal, foi o resultado de um problema global no nuclear, que é o de se estar no limite da capacidade de armazenamento dos resíduos. Tendo em consideração a inexistência de uma solução final, estes têm de ser continuamente arrefecidos e se não houver muito cuidado desencadear-se-á uma reacção crítica devido à compactação.

P – Esse incidente em Almaraz poderia ter tido consequências catastróficas?

R – Foi um incidente pequeno porque se conseguiu controlar, mas poderia ter sido algo de muito grave. Foi um aviso. E no nuclear, uma pequena coisa pode transformar-se numa coisa enorme.

P – Em todo o caso, se as promessas do empresário Patrick Monteiro Barros de não ser necessário investimento público se confirmarem, Portugal pode vir a ter condições para ter uma central nuclear?

R – Se for por uma questão de natureza económica, repito, não é viável sem que haja um contributo importante dos nossos impostos. Não é só a questão do investimento da central que está em causa, mas também da rede de transporte. Além disso, uma central nuclear tem períodos de paragem, programadas e não programadas, e a nossa ligação a Espanha não suporta uma situação em que necessitássemos de energia nesses períodos. Ter-se-ia que fazer também aí um elevado investimento.

P – Mas imaginemos que os promotores pagavam tudo isso…

R – Ou seja, Portugal apenas assumia o seguro do risco de um desastre. Isto era assumirmos um dumping ambiental, o que seria impensável, típico de um país não do Terceiro Mundo mas sim do Quarto Mundo. Mas há quem pense nisso. Na fase actual do país, em que o grande capital manda, tudo é possível. Mas fique-se desde já a saber que se isso acontecer está alguém a ser vendido barato ou há corrupção da grande.

P – E desactivar todas as centrais nucleares do Mundo, é possível ou viável?

R – Não, não sou irrealista. Os países com pretensões militares, como a China e a Índia, continuarão a apostar. Não por razões energéticas, mas de defesa. Ou seja, o nuclear pode dar um contributo importante mas nunca resolverá todas as necessidades de electricidade. Além disso, existe outro problema que tem a ver com a escassez de urânio. E isso pode levar a que se insista em centrais a plutónio.

P – Que são ainda mais perigosas…

R – Sim. Até agora todas as experiências com estas centrais falharam, como foi o caso do Superphenix, na França.

P – Em 2007 falou-se bastante em energia em Portugal. Ao longo de 2008 está prevista a aprovação do Plano Nacional de Barragens e será anunciado o resultado do concurso para a ampliação dos parques eólicos. Será 2008 o ano da energia?

R – Talvez sim, mas espero que não seja pelas más razões. Em Portugal estamos a viver numa realidade virtual no campo da produção energética. E acho serem necessárias algumas advertências muito sérias. Por exemplo, penso que não se devem espalhar parques eólicos sem nexo. Eu sou defensor da energia eólica, mas não de qualquer maneira, sem disciplina. E aquilo a que estamos a assistir é um negócio puramente financeiro, só com vista para o lucro imediato. Em Portugal, os produtores de energia eólica beneficiam de uma situação económica altamente favorável, protegida e sem contrapartidas. E depois não existem estudos aprofundados do potencial eólico e das localizações mais adequadas, que salvaguardem algumas serras e apostem na hipótese dos parques off-shore.

P – O concurso está feito, de facto, de modo esquisito: os candidatos propõem locais e o que for vencedor quase automaticamente terá aprovadas todas as localizações, independentemente dos impactes…

R – Esse concurso foi feito para dar as regalias aos grandes monopólios. A energia eólica, que tem grandes méritos se for descentralizada e feita numa escala disseminada, acaba por ser concebida em concentrações, sem contrapartidas. A energia eólica é paga em Portugal de um forma exageradamente favorável às empresas, pois tem prioridade absoluta de entrada na rede e garantia de compra pela REN sem qualquer obrigatoriedade de previsibilidade do fornecimento dessa energia e sem penalizações previstas. Isto é chocante, porque afecta todo o sistema eléctrico nacional, obrigando a ter centrais em stand-by, com custos enormes. Nos países em que a eólica não é um puro negócio financeiro, o preço da electricidade eólica está ligado às previsões de produção e do respectivo cumprimento. Isto estimula o sistema de previsão e a gestão do sistema eléctrico. Faz-se assim na Espanha e nos países nórdicos, por exemplo.

P – Os transportes são uma das questões energéticas mais prementes da actualidade, ainda mais agora com a galopante subida dos preços do petróleo. Que solução teremos de seguir?

R – Tem-se falado muito no hidrogénio, no uso das pilhas de combustível, mas não me parece ser a solução. O hidrogénio é como a electricidade: a sua armazenagem em grande escala tem custos enormes. A Economia do Hidrogénio, de que se fala, implicaria uma rede autónoma muito complexa, porque sendo um gás muito leve não pode ser transportado com a mesma facilidade do gás natural. Por outro lado, o hidrogénio não é uma fonte mas um meio de transporte de energia, como a rede eléctrica. O hidrogénio tem de ser previamente produzido, consumindo sobretudo electricidade. Na minha opinião, o futuro está no uso de veículos eléctricos, sem meter de permeio o hidrogénio.

P – E os biocombustíveis?

R – Os biocombustíveis são outro disparate, pois nunca podem ter um papel mais do que marginal. A Terra tem 6,5 mil milhões de habitantes, que estão em crescimento, e usamos já entre 40% e 60% da fotossíntese disponivel. Pensar que podemos usar o que resta para produzir biocombustíveis é utópico. Actualmente só são viáveis com grandes subsídios, para além de entrarem em competição com as necessidades de alimentação no que respeita à disponibilidade de solos ferteis.

P – Ou seja, os preços de alguns produtos alimentares aumentarão, como já acontece com o milho…

R – Pois, estamos mais uma vez perante um negócio apenas financeiro. No Instituto Superior Técnico fez-se um estudo para o caso do milho que demonstrou que não existiriaa qualquer vantagem. A menos que se recorra a resíduos vegetais, os biocombustíveis não trazem efeitos positivos, e nunca será possível resolver a problema dos transportes nem a meta europeia de se usar 10% de biocombustíveis de origem nacional.

P – Este projecto é, como muitos, apresentado com uma capa de defesa do ambiente…

R – É absolutamente vital desmontar isso. Os únicos que não perderão são os que entram nesses negócios. E isso acontece porque em Portugal não temos uma cultura científica sólida, exigente e independente – vai tudo a reboque. Acha que eu, por estar a dizer isto, vou amanhã ser financiado na investigação destes temas? Pelo contrário…

P – Qual será, enfim, então a via para o paradigma energético? Consumir menos ou ser mais eficiente e assim consumir melhor?

R – Consumir menos, até porque há limites para a eficiência energética. Há limites termodinâmicos que nenhuma tecnologia ultrapassará.

P – Está muito céptico. A ciência e tecnologia têm evoluído de uma forma impensável no último século…

R – Teríamos de falar então na diferença entre ciência e tecnologia. Por exemplo, nós sabemos que existe fusão nuclear, basta olhar para o sol, e como funciona. Mas não conseguimos fazer com que esse fenómeno ocorra de forma estável e aproveitável pela sociedade.

P – Voltando a Portugal, por que razão continuamos a ser um dos piores países em termos de eficiência energética?

R – É uma questão cultural, vivemos acima das nossas possibilidades e grande parte da energia que gastamos é em actividades não produtivas. Por exemplo, actualmente gastamos, per capita, apenas menos 10% de energia do que um dinamarquês, mas gastamos cerca do dobro para produzir a mesma unidade de riqueza.

P – A Conferência de Bali sobre alterações climáticas foi ou não um sucesso?

R – Considerou-se um sucesso por se ter conseguido colocar no texto final uma nota de rodapé que faz referência a um estudo do Painel Internacional para as Alterações Climáticas (IPCC). Mas essa nota de rodapé remete, por sua vez, para outras duas notas que, na prática, a anulam, porque, na verdade, não são fixadas quaisquer metas, mas apenas indicações que são questionáveis.

P – Em todo o caso parece consensual que as alterações climáticas são já agora uma evidência, tanto assim que em 2007 se falou imenso do assunto…

R – Existem alterações climáticas mensuráveis mas existe também uma enorme manipulação ao reduzir tudo ao CO2 e equivalentes. O principal gás com efeito de estufa é o vapor de água. O alarmismo actual quanto às alterações climáticas é um instrumento de controlo social, pretexto para grandes negócios e combate político. Transformou-se numa ideologia, o que é preocupante

P – Há uns anos falava-se que eram as petrolíferas a financiarem cientistas para negarem as alterações climáticas…

R – Agora é um pouco ao contrário.

P – Onde está então a verdade? Onde está a realidade?

R – Há três realidades: uma científica – que mostra os dados observados –, outra de realidade virtual – que se baseia em modelos computacionais – e outra pública. Entre as três, por vezes, há grandes contradições.

P – Mas afinal, na sua opinião, existe ou não aquecimento global provocado pelas emissões de dióxido de carbono das actividades humanas?

R – O último relatório científico do IPCC refere, por exemplo, que na Antártida o aumento da temperatura precedeu o aumento das emissões de dióxido de carbono, mas depois isso é omitido no relatório para os decisores políticos. Recentemente descobriu-se que afinal houve um erro em considerar que 1998 foi o ano mais quente no EUA desde que existem registos; de facto, o ano mais quente foi o de 1934. E agora sabe-se, depois de um grande escândalo, que no século XV ocorreu um crescimento abrupto de temperaturas idêntico ao que se verifica actualmente.

P – Então em ficamos? Existe ou não aquecimento global, na sua opinião?

R – Tem ocorrido um aumento da temperatura, até 1998, mas não se pode garantir que, nos próximos anos, continue e que esteja apenas associado às emissões de dióxido de carbono.

P – Nesse âmbito, a aplicação do protocolo de Quioto servirá para algo?

R – Tudo o que seja feito para diminuir as emissões de dióxido de carbono é positivo, porque implicará redução dos consumos energéticos. Mas criar uma ideologia agarrada ao dióxido de carbono é um perigoso disparate. Será preferível prepararmo-nos para as naturais evoluções do clima. Adaptarmo-nos, e estarmos preparados, caso aconteçam, o que significa, entre outras coisas, não destruir as dunas a pretexto de PIN, não contruir em leitos de cheia, não impermeabilizar solos para não agravar os efeitos das potenciais e naturais ondas de calor, etc

P – Em suma, advoga então que se siga a política preconizada pela Administração Bush…

R – Não se pode continuar a diabolizar os Estados Unidos. Os norte-americanos têm dos melhores estudos e especialistas nesta área. Basta dizer que o UCAR ( University Corporation for Atmosferic Research) – um organismo norte-americano que estuda os fenómenos climáticos e meteorológicos – tem um orçamento de 200 milhões de dólares, enquanto o IPCC tem apenas 10 milhões, para além de que mais de 50% dos cientistas que elaboraram os relatórios do IPCC são americanos.

P – Nos últimos tempos, temos assistido a tribunais a mandarem encerrarem linhas de alta tensão e um eclodir de manifestações contra a Rede Eléctrica Nacional (REN). Do ponto de vista científico, justifica-se este alarido?

R – Eu fico um pouco surpreendido, e acho mesmo preocupante, quando os juízes começam a pronunciar-se sobre temas científicos que claramente não dominam; só serve para desacreditar a Justiça. Parte dos argumentos invocados não têm base científica nem de bom senso. É evidente que uma linha de alta tensão, tal como uma linha de baixa tensão – em suma, uma linha que transporte corrente eléctrica – é perigosa. Mas dizer que há um perigo sem o quantificar não faz sentido. Reduzir o perigo a zero é o mesmo que não ter electricidade. O risco existe sempre e deve ser minimizado com a aplicação rigorosa das normas, que neste caso até existem legalmente . Na minha opinião, o ataque à REN é uma tentativa de arranjar um bode expiatório.

P – A REN não tem responsabilidades nesta situação?

R – Não tendo uma procuração da REN, julgo serem absurdas as acusações, sobretudo quando dizem que ela pretende as linhas aéreas por serem mais lucrativas. A partir do momento em que a REN detém, por lei, o monopólio natural do transporte de electricidade acima dos 110 mil volts não é livre de fixar as tarifas. Estas são determinadas pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE). Em consequência, a REN é remunerada em função dos investimentos aprovados pela ERSE, pelo que nunca perde se for obrigada a enterrar as linhas. Pode mesmo ganhar. A REN, por isso, é o último dos responsáveis por esta situação.

P – Até porque a REN acaba por necessitar de autorizações para executar as linhas…

R – Exacto. E aqui reside o problema do planeamento das linhas de transporte de energia. A maior parte delas foram definidas ainda no tempo da EDP monopolista. Mas depois tiveram de ser aprovadas em concreto pelo Ministério do Ambiente – no âmbito da avaliação de impacte ambiental – e pela Direcção-Geral de Geologia e Energia. Só depois disto a REN pode avançar para a construção. Por isso, do ponto de vista legal não há nada que se possa apontar à REN. A questão acaba por ser de ordenamento do território. Quando se prevêem urbanizações sabe-se que é necessário construir infra-estruturas de água, de esgotos e de electricidade. E se é necessária a electricidade é necessário prever por onde passam as linhas de alta tensão. Em muitos casos, foi depois de estarem previstas as linhas de alta tensão, que as autarquias aprovaram planos directores municipais que permitiram a construção nos corredores de protecção e exclusão impostos por essas linhas. Na discussão actual a pergunta que se deve colocar é: quem autorizou as construções nos locais que agora contestam a passagem das linhas ?. A autorização para construir as linhas teve ou não em conta eventuais licenciamentos prévios de construção? O traçado das linhas é matéria do PROT( Plano Regional de Ordenamento do Território) que deve ser absolutamente cumprido pelas autarquias. De facto, ou responsabilizamos as pessoas e entidades pelos seus actos, ou acabamos por ter de pagar os seus disparates. Se os encargos de investimento da REN aumentarem, a consequência será um aumento das tarifas de electricidade, goste-se ou não se goste.

P – Surgiram notícias de que o aumento da tarifa, por causa do enterramento de linhas de alta tensão, pode atingir os 40%...

R – Vai depender do que se enterrar. Portugal possui cerca de sete mil quilómetros de linhas de alta tensão. Será impensável estar a enterrá-las todas, mas se assim se decidir, depois ninguém se pode queixar que a electricidade subiu muito ou que deixa de existir dinheiro para outras coisas, como hospitais. Isto é o cerne da decisão política. Haverá casos em que será melhor enterrar, sobretudo quando estamos a falar de atravessamento de povoações, noutros talvez saia até mais barato indemnizar e realojar pessoas.

P – Mas existe mesmo um perigo real relativamente às habitações que estão sob as linhas de alta tensão?

R – Há um perigo efectivo, de facto, e tais habitações são contra as normas legais. Sempre que existe uma linha de muito alta tensão são gerados campos eléctricos e electromagnéticos. O perigo depende da voltagem, da distância e da sensibilidade das pessoas, embora não existam estudos absolutamente conclusivos. Mas é bom salientar que um perigo significativo só existe se não forem tomadas as precauções necessárias, como as que são recomendadas por organismos internacionais. A própria REN as divulga no seu site e é obrigada por lei a aplicá-las.

P – Que não são cumpridas…

R – Nós começámos o disparate há muito tempo e continuamos. As autarquias não cumprem as zonas de exclusão, depois querem vetar as linhas mas querem a electricidade. Tem que existir planeamento e um compromisso. Portugal não é um conglomerado de principados ou baronatos. As manifestações mostram também que as populações perderam confiança nos poderes políticos, o que é gravíssimo. Como o cidadão comum se sente enganado inúmeras vezes acaba por perder a visão de conjunto, acarretando individualismos egoístas.

P – Os receios com as linhas de alta tensão tem também a ver com questões psicológicas: o medo invisível. Como ocorre com as radiações nucleares…

R – No caso das radiações nucleares, os efeitos são mais devastadores, porque são ionizantes e perduram, enquanto as radiações não ionizantes, – como os da electricidade ou a dos telemóveis – terminam logo que se desliga a corrente. Quanto aos efeitos é como se as radiações não ionizantes – como as emitidas pelas linhas de electricidade, pelos telemóveis ,pelos micro-ondas, etc– queimam, as radiações ionizantes dão uma martelada, pois provocam a rotura de ligações a nível molecular.

P – Na década de 70 foi um dos cientistas que se destacaram em Portugal contra a construção da central nuclear em Ferrel. Os pressupostos mantém-se, agora que se fala de novo na possibilidade da energia nuclear no nosso país?

R – Claro, não existe nenhuma diferença. Fico mesmo admirado ao constatar que aquilo que escrevi nos anos 70 se mantém actual. O meu combate ao nuclear em Portugal foi, e ainda é, primeiro que tudo, de natureza económica. É um absurdo económico. Do ponto de vista da perigosidade, agora ainda é mais evidente, por causa da proliferação das armas nucleares associada à construção dos reactores civis.

P – Como assim? Está a defender que sem energia nuclear para fins civis, para a produção de electricidade, não haveria tantos países com armas nucleares?

R – Sem dúvida. Sem existência de centrais nucleares, que produzem plutónio como resíduo, apenas países muito desenvolvidos do ponto de vista tecnológico as poderiam ter. Países como a Índia, o Paquistão e a Coreia do Norte não possuiriam armamento nuclear, pois é imprescindível a existência de plutónio. E por dia, uma central de 1000 MW produz quatro a cinco quilogramas de plutónio, suficiente para uma bomba atómica. E nessas circunstâncias, havendo plutónio disponível, a tecnologia posterior não precisa de ser tão apurada. Hoje sabe-se que existe um contrabando de plutónio e inúmeras tentativas de o transaccionar, algo que é dramático sabendo-se também da possibilidade de se criarem bombas sujas, que não são mais do que explosivos clássicos revestidos de produtos radioactivos, e que podem contaminar vastas regiões. As explosões não fazem o tradicional cogumelo, mas têm um elevado poder de destruição, de contaminação.

P – E existe, claro, o problema de segurança, como o que aconteceu em Chernobyl…

R – Sim e também na gestão dos resíduos. O recente incidente na central espanhola de Almaraz, na fronteira com Portugal, foi o resultado de um problema global no nuclear, que é o de se estar no limite da capacidade de armazenamento dos resíduos. Tendo em consideração a inexistência de uma solução final, estes têm de ser continuamente arrefecidos e se não houver muito cuidado desencadear-se-á uma reacção crítica devido à compactação.

P – Esse incidente em Almaraz poderia ter tido consequências catastróficas?

R – Foi um incidente pequeno porque se conseguiu controlar, mas poderia ter sido algo de muito grave. Foi um aviso. E no nuclear, uma pequena coisa pode transformar-se numa coisa enorme.

P – Em todo o caso, se as promessas do empresário Patrick Monteiro Barros de não ser necessário investimento público se confirmarem, Portugal pode vir a ter condições para ter uma central nuclear?

R – Se for por uma questão de natureza económica, repito, não é viável sem que haja um contributo importante dos nossos impostos. Não é só a questão do investimento da central que está em causa, mas também da rede de transporte. Além disso, uma central nuclear tem períodos de paragem, programadas e não programadas, e a nossa ligação a Espanha não suporta uma situação em que necessitássemos de energia nesses períodos. Ter-se-ia que fazer também aí um elevado investimento.

P – Mas imaginemos que os promotores pagavam tudo isso…

R – Ou seja, Portugal apenas assumia o seguro do risco de um desastre. Isto era assumirmos um dumping ambiental, o que seria impensável, típico de um país não do Terceiro Mundo mas sim do Quarto Mundo. Mas há quem pense nisso. Na fase actual do país, em que o grande capital manda, tudo é possível. Mas fique-se desde já a saber que se isso acontecer está alguém a ser vendido barato ou há corrupção da grande.

P – E desactivar todas as centrais nucleares do Mundo, é possível ou viável?

R – Não, não sou irrealista. Os países com pretensões militares, como a China e a Índia, continuarão a apostar. Não por razões energéticas, mas de defesa. Ou seja, o nuclear pode dar um contributo importante mas nunca resolverá todas as necessidades de electricidade. Além disso, existe outro problema que tem a ver com a escassez de urânio. E isso pode levar a que se insista em centrais a plutónio.

P – Que são ainda mais perigosas…

R – Sim. Até agora todas as experiências com estas centrais falharam, como foi o caso do Superphenix, na França.

P – Em 2007 falou-se bastante em energia em Portugal. Ao longo de 2008 está prevista a aprovação do Plano Nacional de Barragens e será anunciado o resultado do concurso para a ampliação dos parques eólicos. Será 2008 o ano da energia?

R – Talvez sim, mas espero que não seja pelas más razões. Em Portugal estamos a viver numa realidade virtual no campo da produção energética. E acho serem necessárias algumas advertências muito sérias. Por exemplo, penso que não se devem espalhar parques eólicos sem nexo. Eu sou defensor da energia eólica, mas não de qualquer maneira, sem disciplina. E aquilo a que estamos a assistir é um negócio puramente financeiro, só com vista para o lucro imediato. Em Portugal, os produtores de energia eólica beneficiam de uma situação económica altamente favorável, protegida e sem contrapartidas. E depois não existem estudos aprofundados do potencial eólico e das localizações mais adequadas, que salvaguardem algumas serras e apostem na hipótese dos parques off-shore.

P – O concurso está feito, de facto, de modo esquisito: os candidatos propõem locais e o que for vencedor quase automaticamente terá aprovadas todas as localizações, independentemente dos impactes…

R – Esse concurso foi feito para dar as regalias aos grandes monopólios. A energia eólica, que tem grandes méritos se for descentralizada e feita numa escala disseminada, acaba por ser concebida em concentrações, sem contrapartidas. A energia eólica é paga em Portugal de um forma exageradamente favorável às empresas, pois tem prioridade absoluta de entrada na rede e garantia de compra pela REN sem qualquer obrigatoriedade de previsibilidade do fornecimento dessa energia e sem penalizações previstas. Isto é chocante, porque afecta todo o sistema eléctrico nacional, obrigando a ter centrais em stand-by, com custos enormes. Nos países em que a eólica não é um puro negócio financeiro, o preço da electricidade eólica está ligado às previsões de produção e do respectivo cumprimento. Isto estimula o sistema de previsão e a gestão do sistema eléctrico. Faz-se assim na Espanha e nos países nórdicos, por exemplo.

P – Os transportes são uma das questões energéticas mais prementes da actualidade, ainda mais agora com a galopante subida dos preços do petróleo. Que solução teremos de seguir?

R – Tem-se falado muito no hidrogénio, no uso das pilhas de combustível, mas não me parece ser a solução. O hidrogénio é como a electricidade: a sua armazenagem em grande escala tem custos enormes. A Economia do Hidrogénio, de que se fala, implicaria uma rede autónoma muito complexa, porque sendo um gás muito leve não pode ser transportado com a mesma facilidade do gás natural. Por outro lado, o hidrogénio não é uma fonte mas um meio de transporte de energia, como a rede eléctrica. O hidrogénio tem de ser previamente produzido, consumindo sobretudo electricidade. Na minha opinião, o futuro está no uso de veículos eléctricos, sem meter de permeio o hidrogénio.

P – E os biocombustíveis?

R – Os biocombustíveis são outro disparate, pois nunca podem ter um papel mais do que marginal. A Terra tem 6,5 mil milhões de habitantes, que estão em crescimento, e usamos já entre 40% e 60% da fotossíntese disponivel. Pensar que podemos usar o que resta para produzir biocombustíveis é utópico. Actualmente só são viáveis com grandes subsídios, para além de entrarem em competição com as necessidades de alimentação no que respeita à disponibilidade de solos ferteis.

P – Ou seja, os preços de alguns produtos alimentares aumentarão, como já acontece com o milho…

R – Pois, estamos mais uma vez perante um negócio apenas financeiro. No Instituto Superior Técnico fez-se um estudo para o caso do milho que demonstrou que não existiriaa qualquer vantagem. A menos que se recorra a resíduos vegetais, os biocombustíveis não trazem efeitos positivos, e nunca será possível resolver a problema dos transportes nem a meta europeia de se usar 10% de biocombustíveis de origem nacional.

P – Este projecto é, como muitos, apresentado com uma capa de defesa do ambiente…

R – É absolutamente vital desmontar isso. Os únicos que não perderão são os que entram nesses negócios. E isso acontece porque em Portugal não temos uma cultura científica sólida, exigente e independente – vai tudo a reboque. Acha que eu, por estar a dizer isto, vou amanhã ser financiado na investigação destes temas? Pelo contrário…

P – Qual será, enfim, então a via para o paradigma energético? Consumir menos ou ser mais eficiente e assim consumir melhor?

R – Consumir menos, até porque há limites para a eficiência energética. Há limites termodinâmicos que nenhuma tecnologia ultrapassará.

P – Está muito céptico. A ciência e tecnologia têm evoluído de uma forma impensável no último século…

R – Teríamos de falar então na diferença entre ciência e tecnologia. Por exemplo, nós sabemos que existe fusão nuclear, basta olhar para o sol, e como funciona. Mas não conseguimos fazer com que esse fenómeno ocorra de forma estável e aproveitável pela sociedade.

P – Voltando a Portugal, por que razão continuamos a ser um dos piores países em termos de eficiência energética?

R – É uma questão cultural, vivemos acima das nossas possibilidades e grande parte da energia que gastamos é em actividades não produtivas. Por exemplo, actualmente gastamos, per capita, apenas menos 10% de energia do que um dinamarquês, mas gastamos cerca do dobro para produzir a mesma unidade de riqueza.

P – A Conferência de Bali sobre alterações climáticas foi ou não um sucesso?

R – Considerou-se um sucesso por se ter conseguido colocar no texto final uma nota de rodapé que faz referência a um estudo do Painel Internacional para as Alterações Climáticas (IPCC). Mas essa nota de rodapé remete, por sua vez, para outras duas notas que, na prática, a anulam, porque, na verdade, não são fixadas quaisquer metas, mas apenas indicações que são questionáveis.

P – Em todo o caso parece consensual que as alterações climáticas são já agora uma evidência, tanto assim que em 2007 se falou imenso do assunto…

R – Existem alterações climáticas mensuráveis mas existe também uma enorme manipulação ao reduzir tudo ao CO2 e equivalentes. O principal gás com efeito de estufa é o vapor de água. O alarmismo actual quanto às alterações climáticas é um instrumento de controlo social, pretexto para grandes negócios e combate político. Transformou-se numa ideologia, o que é preocupante

P – Há uns anos falava-se que eram as petrolíferas a financiarem cientistas para negarem as alterações climáticas…

R – Agora é um pouco ao contrário.

P – Onde está então a verdade? Onde está a realidade?

R – Há três realidades: uma científica – que mostra os dados observados –, outra de realidade virtual – que se baseia em modelos computacionais – e outra pública. Entre as três, por vezes, há grandes contradições.

P – Mas afinal, na sua opinião, existe ou não aquecimento global provocado pelas emissões de dióxido de carbono das actividades humanas?

R – O último relatório científico do IPCC refere, por exemplo, que na Antártida o aumento da temperatura precedeu o aumento das emissões de dióxido de carbono, mas depois isso é omitido no relatório para os decisores políticos. Recentemente descobriu-se que afinal houve um erro em considerar que 1998 foi o ano mais quente no EUA desde que existem registos; de facto, o ano mais quente foi o de 1934. E agora sabe-se, depois de um grande escândalo, que no século XV ocorreu um crescimento abrupto de temperaturas idêntico ao que se verifica actualmente.

P – Então em ficamos? Existe ou não aquecimento global, na sua opinião?

R – Tem ocorrido um aumento da temperatura, até 1998, mas não se pode garantir que, nos próximos anos, continue e que esteja apenas associado às emissões de dióxido de carbono.

P – Nesse âmbito, a aplicação do protocolo de Quioto servirá para algo?

R – Tudo o que seja feito para diminuir as emissões de dióxido de carbono é positivo, porque implicará redução dos consumos energéticos. Mas criar uma ideologia agarrada ao dióxido de carbono é um perigoso disparate. Será preferível prepararmo-nos para as naturais evoluções do clima. Adaptarmo-nos, e estarmos preparados, caso aconteçam, o que significa, entre outras coisas, não destruir as dunas a pretexto de PIN, não contruir em leitos de cheia, não impermeabilizar solos para não agravar os efeitos das potenciais e naturais ondas de calor, etc

P – Em suma, advoga então que se siga a política preconizada pela Administração Bush…

R – Não se pode continuar a diabolizar os Estados Unidos. Os norte-americanos têm dos melhores estudos e especialistas nesta área. Basta dizer que o UCAR ( University Corporation for Atmosferic Research) – um organismo norte-americano que estuda os fenómenos climáticos e meteorológicos – tem um orçamento de 200 milhões de dólares, enquanto o IPCC tem apenas 10 milhões, para além de que mais de 50% dos cientistas que elaboraram os relatórios do IPCC são americanos.